quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Esperar para ver



Os textos seguintes têm pontos de vista diferentes na questão das normas educativas que se vão seguir, já referidas na imprensa, e sobre a abolição de exames, mais preocupado o de Santana Castilho, mais optimista o de Luís-Aguiar Conraria, que aponta as questões sócio-económicas como estando na base de maior impreparação, o que é sabido, e isso nos leva por aí fora, para um povo desde sempre pouco escrupuloso, quer sob o ponto de vista educacional quer sob o ponto de vista funcional. Mas não é, evidentemente, reduzindo o grau de exigência - no ensino, que os exames ajudam a conquistar, e no comportamento, que o excesso de liberdade ajuda a destruir - que chegaremos a um nível educativo necessário para uma cidadania de razoável estabilidade.
Há dias, num café, conversávamos, uma amiga e eu, no prazer da bica, quando um grupo de três pessoas se sentou à nossa frente, deixando em liberdade duas crianças, que em breve conquistaram o seu espaço em gritos e ocupação de mesas e cadeiras, tornando impossível a conversa. A minha amiga não deixou de se voltar para os pais, numa discreta chamada de atenção, mas estes, em vez de interpelarem os filhos, ergueram-se da mesa e retiraram-se, numa altivez pedante e um murmúrio agressivo de “estamos a perturbar” – e seguidos ainda pela exuberância ruidosa das crianças, em plena liberdade de actuação, a quem não foi exigida maior compostura.
Hoje as famílias já não têm poder sobre os filhos e as consequências são graves. Que pode, pois, fazer a escola, sem disciplina – que o ministério da educação ajudou a fragilizar e agora mais ainda, sem os exames que poderiam prover a uma certa formação discente, ainda que, para alguns alunos, se verificasse só por essa altura, como chamariz de maior responsabilidade e brio?
Na desordem geral, esta da abolição dos exames é mais um contributo para a deformação de uma sociedade cada vez mais precária em valores. O governo sabe-o, mas talvez lhe convenha.

I - OPINIÃO
Os “meninos” grunhos e os pedagogos do regime
O sistema de ensino, tal como está organizado, destina-se, a partir de determinada fase, a manter na escola jovens que lá não querem estar.
SANTANA CASTILHO
OPINIÃO, 13 de Novembro de 2019
1. Longe de ser exaustivo, recordo o que foi possível ler na imprensa dos últimos dias: uma estudante de 16 anos deu entrada no hospital de Portalegre, em estado grave, depois de ter sido agredida por um colega; aluno de 15 anos foi hospitalizado, em estado grave, depois de ter sido agredido à facada em escola de Matosinhos; homem de vinte anos foi detido por ter agredido um agente da PSP no interior de uma escola, em Viseu; pai agrediu professora no Entroncamento; duas alunas foram agredidas por um colega em Benavente; aluno agrediu três professoras em Coimbra. Tudo isto poderá ser estatisticamente residual. Mas é humanamente intolerável.
O programa Prós e Contras de 3 do corrente, supostamente sobre a indisciplina e a violência que reina nas escolas, mostrou que há muitos professores que aceitam como coisa sua aquilo que é coisa das famílias, dos políticos e do Estado. Quando o programa ia a meio e o objecto do debate se perdera nas retóricas retorcidas e nos egos inchados dos participantes (excepção feita à objectividade digna de Luís Sottomaior Braga), já o meu enjoo superava a dor da “barriguita” da filha do “professor do ano”, muito culto e erudito, mas com alguma dificuldade em distinguir a obra-prima do mestre da prima do mestre-de-obras. Apesar da função dos professores ser promover o conhecimento, ensinando com independência, o programa mostrou ainda que a propaganda oficial os coloniza e leva demasiados a aceitarem que os “meninos” são grunhos e violentos porque as aulas não são motivadoras, “flexíveis” e as escolas não têm teatro.
2. A inutilidade dos “chumbos” voltou a ser tema(chumbar um aluno “não serve para nada”, disse em entrevista a presidente do CNE). A presidente do CNE ajudou a confundir planos de análise que não podem ser confundidos. Se as suas proclamações ficassem sem contraditório, a diletância poderia ser tomada por realidade. E a realidade é bem diferente. Maria Emília Brederode está certa na proposição (fácil é reprovar os alunos, difícil é criar condições para que aprendam) mas erra, com dolo, quanto à solução. Porque sabe bem que as condições não estão nas mãos dos professores mas nas decisões políticas de quem a elegeu. Porque sabe bem que acabar com os chumbos só se consegue baixando o nível de exigência ou criando medidas sociais de erradicação da pobreza e de apoio à destruturação das famílias e medidas educativas sérias (mais tutores, mais professores de apoio, mais psicólogos e técnicos especializados, redução do número de alunos por turma e mais meios e materiais de ensino). A alternativa que implícita e hipocritamente sugere é a primeira. Porque sabe bem que as outras, as sérias, são incompatíveis com as mentes captas dos seus prosélitos e com a limpeza do balanço do Novo Banco (mais 700 milhões).
A “escola-alfaiate” (chavão “neo-eduquês” do Governo) torna-se risível quando o dono do boteco quer que o costureiro faça fatos, sem linhas nem fazenda, a partir do mesmo molde, para 30 corpos diferentes.
O sistema de ensino, tal como está organizado, destina-se, a partir de determinada fase, a manter na escola jovens que lá não querem estar. Em vez de diabolizar as reprovações, seria mais interessante questionar a legitimidade do Estado para obrigar um cidadão de 16 anos a frequentar a escola contra sua vontade e a vontade dos pais. Porque, por muito que esperneiem os pedagogos do regime, sem mudança radical de políticas, a única alternativa ao chumbo é passar sem saber.
3. Na violência, como no insucesso, os pedagogos do regime escondem e desvalorizam as causas e persistem em apontar o dedo aos mesmos de sempre, os professores. Hipocritamente, em nome de uma “autonomia” superiormente autorizada, orientam-nos para uma flexibilidade insensata, uma inclusão forçada e um sucesso a qualquer preço.
Se nas escolas continuarmos a preterir o que verdadeiramente importa a favor de trivialidades aparentemente livres e avançadas, estaremos a breve trecho face a uma sociedade com duas escolas: uma, que valoriza o conhecimento e premeia o estudo e o esforço, para os que a possam pagar e para os filhos e netos dos governantes e dos pedagogos do regime; outra, para o povo, “flexível”, manicomial, carregada de planos e projectos, onde só chumbarão (e cada vez mais) os professores/escravos.
Professor do ensino superior
II - OPINIÃO
Se não aprendem, chumbam. Fácil, não é?
Caro Tiago Brandão Rodrigues, antes de avançar com o plano, garanta que há condições orçamentais e humanas para o levar avante. Se não tiver garantias, deixe-se estar.
LUÍS-AGUIAR CONRARIA
PÚBLICO, 13 de Novembro de 2019
De tempos a tempos, dizem-nos que o ensino público é uma bandalheira facilitista e que todos os alunos passam de ano, saibam ou não. Às vezes, também me deixo levar na onda e assusto-me. O ano 2019 não foi excepção. Em Setembro, apanhei um susto. Fui informado de que, de acordo com novas orientações do Ministério da Educação, os professores deixavam de poder fazer testes de avaliação aos alunos! Ainda por cima, como que a confirmar a informação recebida, vi que a minha filha não tinha testes marcados a quase nenhuma disciplina. Conversei com a minha mulher e, contrariados, lá concluímos que, se iam abandalhar o ensino público, mais não nos restava do que recorrer ao privado.
Informei-me melhor e descobri que o problema era o Decreto-Lei n.º 55/2018, secção III. Mas, ao lê-lo, em lado algum vi que os testes tinham acabado. Recorri aos meus “conselheiros em assuntos educativos”: uma amiga que anda sempre bem informada e o Alexandre Homem Cristo, que escreve semanalmente no Observador e que, quando escreve sobre educação, costuma ser muito sensato. As redes sociais têm destas coisas: permitem-nos conversar com especialistas que, na verdade, mal conhecemos.
Nenhum de nós encontrava qualquer referência a acabar com os tradicionais testes de avaliação e os professores continuavam obrigados a fazer avaliações sumativas no fim de cada período. No entanto, tanto quanto percebi, era deixado um pouco ao critério dos professores e das escolas a forma de fazer essa avaliação, desde que tudo estivesse bem documentado. Não havia, portanto, qualquer motivo para alarme desde, claro, que confiemos no bom senso das escolas e dos professores. Quem, como eu, gosta que as escolas tenham autonomia só podia ver uma mudança destas com bons olhos.
Neste momento, já pude perceber como vai funcionar a avaliação na escola da minha filha. Na grande maioria das disciplinas, continua a haver o tradicional teste sumativo no fim de cada período. O teste intercalar é que foi substituído por outras fontes de informação, nomeadamente uma série de minitestes surpresa. A minha filha já fez vários. Os alunos sabem, portanto, que a qualquer momento podem ter um miniteste e têm de estar sempre preparados para ele. As excepções à regra são duas disciplinas em que se mantêm os habituais dois testes por período. Se alguma coisa, o ensino tornou-se mais exigente e não menos. A preocupação de início de ano não teve razão de ser.
Lembrei-me disto a propósito das notícias que davam conta do fim administrativo dos chumbos previsto no Programa do Governo. Fui lê-lo e nada encontrei nesse sentido. Sendo Portugal um dos países europeus onde há mais chumbos, qualquer pessoa percebe que alguma coisa está a falhar. Se os alunos chumbam é porque não aprenderam e, se não aprenderam, é porque a escola não conseguiu ensiná-los. Podemos, e devemos, responsabilizar os alunos pelo seu (in)sucesso, mas não podemos esquecer-nos de que se trata de crianças e adolescentes, pelo que não podemos culpá-los. É responsabilidade da escola e da sociedade não desistir deles. Encontrar no Programa do Governo a intenção, e passo a citar, de “criar um plano de não retenção no ensino básico, trabalhando de forma intensiva e diferenciada com os alunos que revelem mais dificuldades”, mais não é do que puro bom senso. Preferem o quê? Que não se trabalhe de forma intensiva e diferenciada com os piores alunos?
O mais engraçado neste assunto é muitos nem se darem conta da óbvia contradição do seu discurso fatalista. Ao mesmo tempo que acusam o ensino de ser cada vez menos exigente, vêem num plano de redução de chumbos a confirmação dessa corrida para o facilitismo. Ora, se chumbar muitos alunos fosse sintoma de exigência, então seríamos forçados a concluir que o ensino português era dos mais exigentes que por aí anda.
Os chumbos em Portugal não são um sintoma nem de facilitismo nem de exigência, são antes um sinal das desigualdades socioeconómicas que persistem. Como nos diz Homem Cristo, em Portugal, o melhor preditor do sucesso escolar de um aluno é o seu perfil socioeconómico. Regra geral, são as crianças de famílias com pouca educação que chumbam. Sendo Portugal um dos países mais desiguais da Europa e tendo nós um atraso histórico a nível da educação, a enorme taxa de retenção portuguesa (cerca de um terço dos alunos chumba pelo menos uma vez) é o resultado de um falhanço colectivo em promover a mobilidade social.
Nas escolas privadas que conheço, vejo duas formas de lidar com alunos fracos. Algumas fazem tudo para se verem livres deles. Outras dão-lhes apoio extra, com estudo acompanhado, e não desistem das crianças. E, estudem na pública ou na privada, hoje existe um enorme mercado de explicações; vemos crianças de 7, 8 e 9 anos em explicações para não perderem o pé. Não estou a criticar: se não tivesse disponibilidade ou capacidade para acompanhar as minhas nos seus estudos, se calhar faria o mesmo.
Mas o que fazer com os que têm más notas e não têm um apoio familiar que lhes permita recuperar o atraso? Chumbar para ver se a seguir aprendem? Não funciona, vários estudos o demonstram. O principal efeito destes chumbos generalizados é permitir que os adolescentes acabem o ensino obrigatório, aos 18 anos, sem terem completado o 12.º ano. A única coisa a fazer é o que está no Programa do Governo, trabalhar “de forma intensiva e diferenciada com os alunos que revelem mais dificuldades”.
Eu percebo o medo que as palavras “plano de não retenção no ensino básico” geram. A forma mais fácil de ter um plano de não retenção é proibir as retenções. Mesmo não sendo essa a intenção, acompanho alguns dos receios expressos em várias colunas de opinião sobre o assunto. Nos últimos quatro anos, ficou claro que o peso político do ministro da Educação é mínimo. Temos escolas a fechar rotativamente por falta de funcionários. Não conseguimos pagar aos docentes um salário suficientemente decente que permita preencher todos os horários e, por isso, há vários milhares de estudantes que não têm ainda professores a todas as disciplinas.
Perante este cenário, que não é caótico, mas que é mau, não é muito crível que haja disponibilidade financeira para um bom plano de não retenção que invista verdadeiramente num trabalho intensivo e diferenciado com os piores alunos. E, não havendo disponibilidade financeira, a tentação de, atulhando os professores com ainda mais burocracia, mascarar as estatísticas para não reconhecer o falhanço é grande.
Por isso, caro Tiago Brandão Rodrigues, antes de avançar com o plano, garanta que há condições orçamentais e humanas para o levar avante. Se não tiver garantias, deixe-se estar.
Professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho


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