Os textos seguintes têm pontos de vista diferentes
na questão das normas educativas que se vão seguir, já referidas na imprensa, e
sobre a abolição de exames, mais preocupado o de Santana Castilho, mais optimista o de Luís-Aguiar Conraria, que aponta as questões sócio-económicas como estando na
base de maior impreparação, o que é sabido, e isso nos leva por aí fora, para
um povo desde sempre pouco escrupuloso, quer sob o ponto de vista educacional
quer sob o ponto de vista funcional. Mas não é, evidentemente, reduzindo o grau
de exigência - no ensino, que os exames ajudam a conquistar, e no comportamento,
que o excesso de liberdade ajuda a destruir - que chegaremos a um nível
educativo necessário para uma cidadania de razoável estabilidade.
Há dias, num café, conversávamos, uma
amiga e eu, no prazer da bica, quando um grupo de três pessoas se sentou à
nossa frente, deixando em liberdade duas crianças, que em breve conquistaram o
seu espaço em gritos e ocupação de mesas e cadeiras, tornando impossível a
conversa. A minha amiga não deixou de se voltar para os pais, numa discreta
chamada de atenção, mas estes, em vez de interpelarem os filhos, ergueram-se da
mesa e retiraram-se, numa altivez pedante e um murmúrio agressivo de “estamos a
perturbar” – e seguidos ainda pela exuberância ruidosa das crianças, em plena
liberdade de actuação, a quem não foi exigida maior compostura.
Hoje as famílias já não têm poder sobre
os filhos e as consequências são graves. Que pode, pois, fazer a escola, sem
disciplina – que o ministério da educação ajudou a fragilizar e agora mais ainda,
sem os exames que poderiam prover a uma certa formação discente, ainda que,
para alguns alunos, se verificasse só por essa altura, como chamariz de maior
responsabilidade e brio?
Na desordem geral, esta da abolição dos
exames é mais um contributo para a deformação de uma sociedade cada vez mais
precária em valores. O governo sabe-o, mas talvez lhe convenha.
I - OPINIÃO
Os “meninos” grunhos e os pedagogos do
regime
O sistema de ensino, tal como está
organizado, destina-se, a partir de determinada fase, a manter na escola jovens
que lá não querem estar.
SANTANA CASTILHO
OPINIÃO, 13 de Novembro de 2019
1.
Longe de ser exaustivo, recordo o que foi possível ler na imprensa dos últimos
dias: uma estudante de 16 anos deu entrada
no hospital de Portalegre, em estado grave, depois de ter sido
agredida por um colega; aluno de 15 anos foi
hospitalizado, em estado grave, depois de ter sido agredido à facada
em escola de Matosinhos; homem de vinte anos foi detido por ter agredido um
agente da PSP no interior de uma escola, em Viseu; pai agrediu professora no
Entroncamento; duas alunas foram agredidas por um colega em Benavente; aluno
agrediu três professoras em Coimbra. Tudo isto poderá ser estatisticamente
residual. Mas é humanamente intolerável.
O programa Prós e Contras de 3 do
corrente, supostamente sobre a indisciplina e a violência que reina nas
escolas, mostrou que há muitos professores que aceitam como coisa sua aquilo
que é coisa das famílias, dos políticos e do Estado. Quando o programa ia a
meio e o objecto do debate se perdera nas retóricas retorcidas e nos egos
inchados dos participantes (excepção
feita à objectividade digna de Luís Sottomaior Braga), já o meu enjoo superava a dor da “barriguita” da
filha do “professor do ano”, muito culto e erudito, mas com alguma dificuldade
em distinguir a obra-prima do mestre da prima do mestre-de-obras. Apesar da
função dos professores ser promover
o conhecimento, ensinando com independência, o programa mostrou ainda que a propaganda oficial os coloniza e leva demasiados a aceitarem que os “meninos”
são grunhos e violentos porque as aulas não são motivadoras, “flexíveis” e as
escolas não têm teatro.
2. A
inutilidade dos “chumbos” voltou a ser tema(chumbar um aluno “não
serve para nada”, disse
em entrevista a presidente do CNE). A presidente do CNE ajudou a confundir
planos de análise que não podem ser confundidos. Se as suas proclamações
ficassem sem contraditório, a diletância poderia ser tomada por realidade. E a
realidade é bem diferente. Maria
Emília Brederode está
certa na proposição (fácil é reprovar os alunos, difícil é criar condições para
que aprendam) mas erra, com dolo, quanto à solução. Porque
sabe bem que as condições não estão nas mãos dos professores mas nas decisões
políticas de quem a elegeu. Porque sabe bem que acabar com os chumbos só se
consegue baixando o nível de exigência ou criando medidas sociais de erradicação
da pobreza e de apoio à destruturação das famílias e medidas educativas sérias
(mais tutores, mais professores de apoio, mais psicólogos e técnicos
especializados, redução do número de alunos por turma e mais meios e materiais
de ensino). A alternativa que implícita e hipocritamente sugere é a primeira.
Porque sabe bem que as outras, as sérias, são incompatíveis com as mentes
captas dos seus prosélitos e com a limpeza do balanço do Novo Banco (mais 700
milhões).
A
“escola-alfaiate” (chavão
“neo-eduquês” do Governo) torna-se risível quando o dono do boteco quer que o
costureiro faça fatos, sem linhas nem fazenda, a partir do mesmo molde, para 30
corpos diferentes.
O
sistema de ensino, tal como está organizado, destina-se, a partir de
determinada fase, a manter na escola jovens que lá não querem estar. Em vez de
diabolizar as reprovações, seria mais interessante questionar a legitimidade do
Estado para obrigar um cidadão de 16 anos a frequentar a escola contra sua
vontade e a vontade dos pais. Porque, por muito que esperneiem os pedagogos do
regime, sem mudança radical de políticas, a única alternativa
ao chumbo é passar sem saber.
3. Na violência, como no
insucesso, os pedagogos do regime escondem e desvalorizam as causas e persistem
em apontar o dedo aos mesmos de sempre, os professores. Hipocritamente, em nome
de uma “autonomia” superiormente autorizada, orientam-nos para uma
flexibilidade insensata, uma inclusão forçada e um sucesso a qualquer preço.
Se nas escolas continuarmos a
preterir o que verdadeiramente importa a favor de trivialidades aparentemente
livres e avançadas, estaremos a breve trecho face a uma sociedade com duas
escolas: uma, que valoriza o conhecimento e premeia o estudo e o
esforço, para os que a possam pagar e para os filhos e netos dos governantes e
dos pedagogos do regime; outra, para o povo, “flexível”, manicomial, carregada
de planos e projectos, onde só chumbarão (e cada vez mais) os
professores/escravos.
Professor do ensino superior
II - OPINIÃO
Se
não aprendem, chumbam. Fácil, não é?
Caro Tiago Brandão Rodrigues, antes de
avançar com o plano, garanta que há condições orçamentais e humanas para o
levar avante. Se não tiver garantias, deixe-se estar.
LUÍS-AGUIAR CONRARIA
PÚBLICO, 13 de Novembro de 2019
De tempos a tempos, dizem-nos que o
ensino público é uma bandalheira facilitista e que todos os alunos passam de
ano, saibam ou não. Às vezes, também me deixo levar na onda e assusto-me. O ano
2019 não foi excepção. Em Setembro,
apanhei um susto. Fui informado de que, de acordo com novas orientações do
Ministério da Educação, os professores deixavam de poder fazer testes de
avaliação aos alunos! Ainda por cima, como que a confirmar a informação
recebida, vi que a minha filha não tinha testes marcados a quase nenhuma
disciplina. Conversei com a minha mulher e, contrariados, lá concluímos que,
se iam abandalhar o ensino público, mais não nos restava do que recorrer ao
privado.
Informei-me
melhor e descobri que o problema era o Decreto-Lei n.º 55/2018,
secção III. Mas, ao lê-lo, em lado
algum vi que os testes tinham acabado. Recorri aos meus “conselheiros em
assuntos educativos”: uma amiga que anda sempre bem informada e o Alexandre Homem Cristo, que
escreve semanalmente no Observador e que, quando escreve sobre educação, costuma ser
muito sensato. As redes sociais têm destas coisas: permitem-nos conversar com
especialistas que, na verdade, mal conhecemos.
Nenhum
de nós encontrava qualquer referência a acabar com os tradicionais testes de
avaliação e os professores continuavam obrigados a fazer avaliações sumativas
no fim de cada período. No entanto, tanto quanto percebi, era deixado um pouco
ao critério dos professores e das escolas a forma de fazer essa avaliação,
desde que tudo estivesse bem documentado. Não
havia, portanto, qualquer motivo para alarme desde, claro, que confiemos no bom
senso das escolas e dos professores. Quem, como eu, gosta que as escolas tenham
autonomia só podia ver uma mudança destas com bons olhos.
Neste
momento, já pude perceber como vai funcionar a avaliação na escola da minha
filha. Na grande maioria das disciplinas, continua a haver o tradicional
teste sumativo no fim de cada período. O teste intercalar é que foi substituído
por outras fontes de informação, nomeadamente uma série de minitestes surpresa.
A minha filha já fez vários. Os alunos sabem, portanto, que a
qualquer momento podem ter um miniteste e têm de estar sempre preparados para
ele. As excepções à regra são duas disciplinas em que se mantêm os habituais
dois testes por período. Se alguma coisa, o ensino tornou-se mais exigente e
não menos. A preocupação de início de ano não teve razão de ser.
Lembrei-me
disto a propósito das notícias que davam conta do fim administrativo dos
chumbos
previsto no Programa do Governo. Fui lê-lo e nada encontrei nesse sentido. Sendo
Portugal um dos países europeus onde há mais chumbos, qualquer pessoa percebe
que alguma coisa está a falhar. Se os alunos chumbam é porque não aprenderam e,
se não aprenderam, é porque a escola não conseguiu ensiná-los. Podemos, e
devemos, responsabilizar os alunos pelo seu (in)sucesso, mas não podemos
esquecer-nos de que se trata de crianças e adolescentes, pelo que não
podemos culpá-los. É responsabilidade da escola e da sociedade não
desistir deles. Encontrar no Programa do Governo a intenção, e passo a citar,
de “criar um plano de não retenção no ensino básico, trabalhando de forma
intensiva e diferenciada com os alunos que revelem mais dificuldades”, mais não
é do que puro bom senso. Preferem o quê? Que não se trabalhe de forma intensiva
e diferenciada com os piores alunos?
O mais engraçado neste assunto é muitos nem se darem conta da óbvia
contradição do seu discurso fatalista. Ao
mesmo tempo que acusam o ensino de ser cada vez menos exigente, vêem num plano
de redução de chumbos a confirmação dessa corrida para o facilitismo. Ora, se
chumbar muitos alunos fosse sintoma de exigência, então seríamos forçados a
concluir que o ensino português era dos mais exigentes que por aí anda.
Os chumbos em Portugal não são um
sintoma nem de facilitismo nem de exigência, são antes um sinal das desigualdades
socioeconómicas que persistem.
Como nos diz Homem Cristo, em Portugal, o melhor preditor do sucesso escolar de um aluno é o
seu perfil socioeconómico.
Regra geral, são as crianças de famílias com pouca educação que chumbam. Sendo
Portugal um dos países mais desiguais da Europa e tendo nós um atraso histórico
a nível da educação, a enorme taxa de retenção portuguesa (cerca de um terço
dos alunos chumba pelo menos uma vez) é o resultado de um falhanço
colectivo em promover a mobilidade social.
Nas
escolas privadas que conheço, vejo duas formas de lidar com alunos fracos. Algumas
fazem tudo para se verem livres deles. Outras dão-lhes apoio extra, com
estudo acompanhado, e não desistem das crianças. E, estudem na pública ou
na privada, hoje existe um enorme mercado de explicações; vemos
crianças de 7, 8 e 9 anos em explicações para não perderem o pé. Não estou a criticar: se não tivesse disponibilidade
ou capacidade para acompanhar as minhas nos seus estudos, se calhar faria o
mesmo.
Mas
o que fazer com os que têm más notas e não têm um apoio familiar que lhes
permita recuperar o atraso? Chumbar para ver se a seguir aprendem? Não
funciona, vários estudos o demonstram. O principal efeito destes chumbos
generalizados é permitir que os adolescentes acabem o ensino obrigatório, aos
18 anos, sem terem completado o 12.º ano. A única coisa a fazer é o que está
no Programa do Governo, trabalhar “de forma intensiva e diferenciada com os
alunos que revelem mais dificuldades”.
Eu percebo o medo que as palavras
“plano de não retenção no ensino básico” geram. A forma
mais fácil de ter um plano de não retenção é proibir as retenções. Mesmo não
sendo essa a intenção, acompanho alguns dos receios expressos em várias colunas
de opinião sobre o assunto. Nos últimos quatro anos, ficou claro que o peso
político do ministro da Educação é mínimo. Temos escolas a fechar rotativamente
por falta de funcionários. Não conseguimos pagar aos docentes um salário
suficientemente decente que permita preencher todos os horários e, por isso, há
vários milhares de estudantes que não têm ainda professores a todas as
disciplinas.
Perante
este cenário, que não é caótico, mas que é mau, não é muito crível que haja
disponibilidade financeira para um bom plano de não retenção que invista
verdadeiramente num trabalho intensivo e diferenciado com os piores alunos. E,
não havendo disponibilidade financeira, a tentação de, atulhando os
professores com ainda mais burocracia, mascarar as estatísticas para não
reconhecer o falhanço é grande.
Por
isso, caro Tiago Brandão Rodrigues, antes de avançar com o plano, garanta que
há condições orçamentais e humanas para o levar avante. Se não tiver garantias,
deixe-se estar.
Professor da Escola de Economia e
Gestão da Universidade do Minho
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