É apenas uma resposta a um comentário
sobre o texto de José Manuel
Fernandes a respeito do posicionamento de Mário Centeno dentro do Governo. Mas julgo que ainda
a procissão vai no adro e nem os andores nos vão salvar. José Manuel Fernandes não é o
único pessimista na questão dos dinheiros da nação, de resto. Uma geringonça mal
atamancada não pode deixar de ruir. Mas quem dera que o comentador Conde do Cruzeiro tivesse
razão.
Não há dinheiro. Qual das três palavras
não percebeu? /premium
Mário Centeno pertence ao passado,
António Costa já começou a descartá-lo. Ambos sabem que não há mesmo dinheiro
para as expectativas que criaram, mas um vai-se embora mal possa, o outro
sabe-se lá.
JOSÉ MANUEL FERNANDES
OBSERVADOR, 29 nov 2019
Poucos
dias depois das eleições do passado mês de Outubro o primeiro-ministro foi
pagar uma promessa a um café da Margem Sul do Tejo. Em campanha tinha garantido
lá voltar se ganhasse pois as empregadas prometeram votar nele – e por isso
voltou, com as televisões atrás, para que pudessem ouvi-las dizer que antes
eram eleitoras do PSD mas agora tinham votado PS. Enquanto Costa beberricava a
sua bica, ela agarravam-se a ele para lhe arrancar outra promessa: a de que
conservasse Mário Centeno no Governo. Costa tentou prometer sem se comprometer,
e hoje já todos percebemos porquê: este Governo já não é de Mário Centeno, ele
já não é a mais valia para falar das “contas certas”, ele é o empecilho que só
atrapalha e contra quem já se colocam notícias nos
jornais.
Na
hierarquia do Executivo, o “Ronaldo das Finanças” passou a ser apenas o
quarto entre quatro ministros de Estado, uma óbvia despromoção até porque para
primeiro lugar passou o ministro da Economia, Siza Vieira, e à sua frente
também está uma ministra novata e que tem apenas funções de coordenação
política, Mariana Vieira da Silva. Uma humilhação, um sinal de que as relações
entre António Costa e o seu homem do cofre já conheceram melhores dias. Muito
melhores dias.
Até
porque se imagina – eu até diria: se sabe – que por estes exactos dias Mário
Centeno deve andar a repetir aos seus colegas de Governo (e agora são muito
mais os colegas de Governo) aquilo que um dia Vítor Gaspar teve de dizer
alto e bom som aos seus pares: “Não há dinheiro. Qual destas três palavras é
que não percebeu?”.
O
episódio que já transpirou para os jornais – o braço de ferro com Eduardo
Cabrita sobre o reforço orçamental de 80
milhões para pagar às forças de segurança – é apenas um sinal
de como as contas de Centeno são cada vez mais impossíveis. Impossíveis de
fazer e impossíveis de explicar.
Reparem
só neste paradoxo. Na concertação social o Governo propôs que os patrões do
sector privado dessem aos seus trabalhadores aumentos superiores à soma da
inflação e dos ganhos de produtividade, avançando com 2,7% para 2020. Ao mesmo
tempo, à mesa das negociações com os trabalhadores da Administração Pública, o
que é que esse exacto Governo está a propor? Que em vez de considerar a
inflação prevista para 2020 (1,6%), se tenha como referência para os aumentos a
inflação de 2019 (0,4%).
Quem
me costuma ler sabe que não irei defender que o Estado, com os impostos de nós
todos, pague aos funcionários públicos aquilo que não pode pagar, tal como sabe
que denunciei vezes sem conta os privilégios relativos dos trabalhadores do
Estado por comparação com os trabalhadores do sector privado. Mas não deixo de
ficar boquiaberto com o descaramento de querer que os patrões suportem nas suas
empresas aumentos de 2,7% em 2020 quando, no Estado, Mário Centeno diz que só
pode pagar 0,4%.
E porque que é que só pode pagar 0,4%? Porque ao contrário da
propaganda não houve nenhum milagre de “consolidação das finanças públicas”. Eu
sei que este ano deveremos ter défice zero, ou perto disso, mas importa saber
como é que lá chegámos para percebermos a ilusão que nos venderam.
Primeiro, o ponto de partida era um
défice de 3%. Ou seja, Centeno teve de cortar três pontos percentuais no
défice, e ainda bem que o fez. Mas o governo anterior teve de trazer o défice
de 9% para 3%, ou seja, cortou seis pontos percentuais, o dobro.
Depois,
dois dos três pontos percentuais que Centeno cortou qualquer um cortaria,
porque decorreram directamente das políticas do Banco Central Europeu: o
Tesouro paga em juros o equivalente a menos 1,4 p.p. e o Orçamento recebe em
dividendos e em IRC do Banco de Portugal mais 0,5 p.p. do que recebia há quatro
anos. Só estes efeitos financeiros representaram dois terços da nossa
consolidação orçamental. O resto veio do crescimento económico e, sobretudo, da
descida do desemprego.
O
que é que vai acontecer daqui para a frente? Os juros já não podem descer mais.
O desemprego muito dificilmente diminuirá algo que se veja. O crescimento
económico está a arrefecer. E entretanto houve alguns travões à despesa
pública, como as progressões nas carreiras, que foram soltos.
Não
surpreende pois que o Ministério das Finanças só possa estar a dizer-se: “Não
há dinheiro”.
E,
no entanto, tem de haver dinheiro. Pelo menos tem de, politicamente, haver
algum dinheiro.
É possível enganar alguns todo
o tempo, é possível enganar todos algum tempo, não é possível enganar todos o
tempo todo. Na
legislatura anterior já estávamos a chegar àquela fase em que uma parte do
“todos” estava a ser voluntariamente cega, e nessa sua cegueira voluntária
fingia que não via a dimensão das cativações, fingia que não reparava que todos
os anos aprovava Orçamentos de Estado com planos de investimento público que
depois não se concretizavam, fingia que umas “conquistas” simbólicas escondiam
a austeridade com outro nome.
Esse tempo acabou e agora, no Parlamento, o Governo vai ter oposição à
direita e oposição à esquerda. O último debate quinzenal foi disso um bom
indicativo: na velha geringonça tiraram-se as luvas de pelica e calçaram-se as
luvas de boxe.
Mas a política parlamentar ainda é o
menos. O pior é mesmo a realidade, a dura realidade, essa coisa terrível que
insiste em saltar todos os dias para os jornais, para as rádios e para as
televisões.
O
ministro Cabrita pede 80 milhões para as polícias com medo do deputado Ventura?
E quanto estará a pedir a ministra Temido agora que já não há forma de esconder
a dramática degradação do SNS, agora
que já não se consegue fazer o número de culpar os privados, agora que todos os
dias há mais uma urgência a fechar, mais uma lista de espera a rebentar, mais
uma equipa médica a demitir-se, mais uma greve anunciada?
No SNS não faltam dezenas de milhões – faltam centenas de milhões.
E
que dirá Centeno ao seu ambicioso colega Pedro Nuno Santos? Ele não pode
continuar a fazer várias cerimónias de lançamento da mesma obra, nem a
justificar outra vez mais outro atraso ou suspensão nos investimentos rodoviários… Isto
sem esquecer que algures terão de estar os cheques para os passes sociais.
Eu podia continuar a fazer listas,
mas basta pensar que os diferentes ministérios vão ter de dar conta dos seus
recados só com mais um por cento nos seus orçamentos, e sabendo o que a todos
foi prometido, ou as expectativas que por aí andaram a ser criadas, para
perceber que não é difícil prever borrasca.
Claro
que há sempre os impostos, e
já aprendemos à nossa custa duas coisas. Primeiro, que o que Costa dá
com uma mão tira com a outra (entre 2016 e 2018, a redução do IRS valeu cerca
de mil milhões de euros, exactamente o mesmo que subiram os impostos indirectos,
sobretudo o imposto sobre os combustíveis). Vem aí mais pancada fiscal, já
todos percebemos.
Depois
que, no fim do dia, ou no fim do ano, quando vamos apurar as contas, chegámos
sempre a um valor record de carga fiscal. Mesmo com cativações,
pouco investimento e maus serviços públicos, este Estado sai muito caro aos
portugueses – sai cada vez mais caro.
Centeno
sabe disto tudo e sabe que não há mais milagres. Pelo contrário. O
que vai haver é mais gente a resistir aos seus “não, não e não”. Sendo que, com a pressão política e social a
aumentar – não há nada pior do que expectativas criadas mas não correspondidas
–, vai haver nervosismo no PS. Um nervosismo que já é vocal — basta ouvir o que
já disseram Carlos César e Ana Catarina Mendes.
Falta
saber como irá António Costa gerir este ambiente – um ambiente onde, pela
primeira vez, os ventos não soprarão a seu favor. Se tivesse de apostar eu
diria que, à pergunta “Não há dinheiro. Qual destas três palavras é que não
percebeu?”, ele acabará por ser o primeiro a responder: “As três, não percebi
as três”.
COMENTÁRIO
Conde do Cruzeiro: Na hierarquia
do Executivo, o “Ronaldo das Finanças” passou a ser apenas o quarto entre
quatro ministros de Estado, uma óbvia despromoção até porque para primeiro
lugar passou o ministro da Economia, Siza Vieira, e à sua frente também está
uma ministra novata e que tem apenas funções de coordenação política, Mariana
Vieira da Silva. Uma humilhação, um sinal de que as relações entre António
Costa e o seu homem do cofre já conheceram melhores dias. Muito melhores dias. Esta é uma opinião de um jornalista
criativo. Que já várias vezes nos brindou com factos irreais. Por esse motivo
acredita quem quiser.
É apenas uma resposta a um comentário
sobre o texto de José Manuel
Fernandes a respeito do posicionamento de Mário Centeno dentro do Governo. Mas julgo que ainda
a procissão vai no adro. E nem os andores nos vão salvar.
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