Passadas, presentes, todas reais, cá
como lá, em Espanha, dando sinais do algo vai mal nos reinos, e não só no da
Dinamarca, mas que a “pena” leve de Maria João Avillez aligeira, com a sua
vivacidade e sensatez próprias.
I -A inspiração /premium
Paulo Branco e Tiago Guedes poderiam ter
lidado com a “Herdade” bem ou mal, melhor ou pior, com arte ou pulso fraco mas
não: foi com esse fôlego que só a grande inspiração permite.
MARIA JOÂO AVILLEZ
OBSERVADOR, 6 nov 2019
1-. Ao princípio achei que era uma surpresa depois
percebi que talvez fosse um milagre. O olhar fito no écran, imóvel na cadeira,
a pressa ausente e a curiosidade alerta, descobri-me inteiramente disponível
para aquela história, que o mesmo é dizer inteiramente disponível para o
milagre.
Era
um filme chamado “A Herdade”. A inspiração tudo tocou no écran, as
palavras e as pessoas, a paisagem, a grande casa e as outras casas, a luz, os
sentimentos, a terra, os olhares, os silêncios e os seus andamentos. Como um
vento forte ela soprou sobre tudo isto como sobre as notas com que se
escrevem as sinfonias e as cantatas. Há tempos ouvi o pianista chinês Lang
Lang a contar-nos no Mezzo, o que mais o deslumbrava na música e como tinha
chegado até ela: a “inspiração” disse ele, “é sempre ela o que mais me
toca, é de onde vem tudo”. (cito de memória).
Estou
pouco habituada a milagres e que me ofereçam, em português, uma história
portuguesa contada tal e qual ela foi, com uma prodigiosa justeza de tom, de
substância e de beleza — ainda menos.
A “Herdade”, estou certa, ficará na
memória, na nossa e na do cinema. O sopro da inspiração escolheu jorrar sobre
aquela grande planície.
2- Quase
tudo o que, desde Abril de 1974, lera na literatura ou vira até agora no cinema
português sobre as grandes propriedades, os latifúndios, os grandes patrões,
foi sempre só metade da história. Parcial, não raro engagé, enviezado.
Militante. Desta vez, não: Tiago Guedes contou-nos “o como era”. Neste caso
deu-nos a ver algumas vidas, entre a década de cinquenta e o quase final do
século passado. Marcelo Caetano, a revolução, a democracia e África, numa
imensa herdade além Tejo. Pertença de um único proprietário como a sua grande
casa branca, regida exclusivamente por ele. Um mundo: a família, o feitor, o
padre, as criadas, as crianças, o pessoal. Os cavalos, os touros, os tractores.
O médico, também “dali”. Um mundo, sim. Aquele, filmado como era e permaneceu
até bem mais tarde do que o seu próprio prazo de validade.
Do
lado de fora, a organização quase feudal que regia as grandes propriedades,
regras estritas e fixas. Inter-muros, uma tensão cerzida de olhares que se
cruzam e não deviam, sorrisos desamparados, vozes que não se soltam, gestos
cortantes, ilusões vãs, palavras rarefeitas sobre a mesa das refeições, choros
de crianças. Dores surdas. Ninguém ali é feliz e todos têm razão. Ao fundo,
o lento crepitar da tragédia que chegará na memorável última meia hora do filme.
Mas paredes dentro ou paredes fora, no campo ou em casa, apesar da rudeza dos
dias e das esperanças calcinadas, há, quase físico, palpável, o veio de uma
inexpugnável (inexplicável?) cumplicidade entre os dois lados desta (falsa)
barricada onde uma aliança nunca escrita sempre dispensou as palavras. Existia.
Era assim. Uma fidelidade. E muitas vezes durou.
Tiago Guedes poderia ter lidado com tudo isto bem ou mal, melhor ou
pior, com bom astral ou pulso fraco, mas não: fê-lo com o fôlego que só pode
ter vindo da inspiração. Essa coisa
indefinível, meio dom, meio segredo, que faz com que todos os elementos se
concertem e tudo esteja certo. Durante três horas a câmara não sai dali,
capturando até ao osso, até ao âmago, cada um daqueles seres. Todos “dali”,
circuito fechadíssimo. Tiago não os larga, mas “olha-os” sem os julgar. Não há preconceito nem animosidade, como se lhes
desse o direito de serem “assim”. O filme raramente sai dos limites da
propriedade e nós não saímos da cadeira do cinema. Não se pode dizer mais.
3- O
sábio Aurélio, no seu dicionário, ensina-nos entre outras coisas que a
inspiração é “qualquer estímulo ao pensamento ou à actividade criadora”. Seja. Mas nunca saberemos o que a faz
decidir-se, onde quer descer ou quem quer possuir. Nem adivinharemos nunca o
que a faz soprar. Os deuses sabem que louvados sejam os que a experimentaram e
mais os que foram por ela postos à prova. Fiquei a saber que foi o caso, agora,
com Paulo Branco e Tiago
Guedes.
4- Paulo Branco produziu
aqui o filme da sua vida, atrevo-me eu a dizer. Há oito anos – contou-me ele um
destes dias – que “pensava nisto”. A vontade de dar vida e “anima” à sua
própria memória nunca lhe saiu da cabeça. Uma geografia social e humana onde
ele próprio brincara, crescera, montara a cavalo, conversara, aprendera algumas
coisas. Ali mesmo, naquela mesmísssima herdade: o pai, forte amigo do
proprietário, era pessoa “da casa”. E ele “passava os dias ali na Barroca…”
Um
dia Paulo foi ter com Rui Cardoso Martins e Tiago Guedes a quem pediu que
escrevessem a história que ele lhes queria contar e durava até hoje. “Aquilo”
inspirava-o. Passou tempo mas o filme não se fazia. Arrancava sem arrancar,
enrolado em sugestões, alterações, concordâncias e discordâncias. Foi preciso
passar mais tempo e correr muita água sob várias pontes até chegar à luz do
dia. Oito anos. Mas o dia e a luz chegaram com brilho radioso o que, como se
sabe, nunca ofusca a tragédia. Ela lá está. Quase Grega, talvez antes
Siciliana.
Paulo
Branco continua ainda hoje a ir por aqueles caminhos, a montar aqueles cavalos,
a sentar-se à mesa com os filhos e netos daquela gente. Amigos do peito é isto,
atravessam-se gerações. Não que o filme as conte ou biografe. Mas colhe e
recolhe o que Paulo Branco viu, ouviu, observou e reteve. Daí a verosimilhança,
o tom justo, o sentido. O tratamento das personagens. E a mais despojada
ausência de clichés.
5- Albano
Jerónimo carrega o filme como se levasse uma mochila às costas. A sua
própria mochila. Mais impressivo é difícil, um animal de cinema. A inspiração
caiu sobre ele como um raio, num personagem bigger than life. Mas… e que dizer
dos outros, no caso, todos os outros? Sandra Faleiro, Ana Vilela da
Costa, João Pedro Mamede, Teresa Madruga, João Miguel Borges… e aqueles que conheço menos. Um leque de actores
cuja inspiração lhes colou à pele densas e tensas personagens. Raro luxo.
Quando saí do cinema pensei em como se pode agradecer um filme assim. No teatro
bate-se palmas, na pintura podem comprar-se as telas, no futebol trocam-se as
cordas vocais por golos, mas na penumbra silenciosa da sala de cinema, na
matinée das 14 horas, vendo o genérico a sumir-se do écran, pensei que era um
quase dever agradecer a quem nos serviu o banquete da Herdade.
PS: Político
mais desinspirado que Pedro Sanchez deve ser impossível. Pouca sorte para quem terá que liderar e lidar com
um enredo sem solução. Após o debate televisivo de segunda à noite, foi como se
alguém tivesse escrito no tecto do estúdio que dali não sairá nada. Apesar da
desenvoltura daquele quinteto, da fluidez do seu discurso, do manuseio de
dossiers, alguma coisa meteu medo. Talvez o sabermos o fim, como nos maus
filmes. Quem poderá inspirar a Espanha a sair deste alçapão?
COMENTÁRIOS
José Montargil: O filme é formidável. Uma observação justa
sem demagogias e piscar de olhos a este e àquele. É àquele ou aquele? Acho que
é o primeiro mas não tenho a certeza.
Domingas
Coutinho: Vi o filme e gostei muito. Boa
realização e bons actores.
II -A
previsibilidade do erro /premium
Sinalizou-se a diferença para pior: o
futuro espanhol não terá a consistência nem a decência de uma aliança com
valores e objectivos comuns. Essa trivialidade está a cair em desuso.
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR, 13 nov 2019
1. Não
deixa de espantar a dificuldade exibida por Pedro Sánchez no lidar com a previsibilidade do erro. Nunca
alcançando que os seus gestos politicamente mais relevantes trariam com eles
não o voto ou a glória mas o anúncio do erro e da desvantagem, complexizando
tudo ainda mais. O mestre do jogo desacertou em tudo na sua campanha
eleitoral: que político é este capaz de tamanha amplitude – sísmica – de erro?
Qualquer
observador leigo – não era preciso que fosse graduado da política – sabia ou
antevia que estas eleições não serviriam para nada, desvirtuando a própria
utilidade do acto eleitoral, reduzindo a zero a vantagem de o ter convocado mas
prejudicando ao máximo o país e exasperado os seus habitantes; que as
ambiguidades do poder central e as valsas não menos ambíguas de Sánchez face à
questão catalã originariam factura pesadíssima; que a trasladação dos
restos mortais de Franco seriam sempre vistos como o que foram: uma subido ao
cume mais alto da demagogia com o cobiçoso olhar oportunisticamente posto na
caça ao voto à sua esquerda (e para quê?); que os resultados das quartas
eleições iriam enredar o novelo da insolubilidade e não soltá-lo, cavando mais
o alçapão em que caiu a vida espanhola.
Há
oito dias escrevendo aqui sobre o dom da “inspiração” classifiquei Pedro
Sánchez como alguém politicamente muito “desinspirado” e a situação espanhola
como “metendo medo”. Ficou pior: a acumulação do erro que advém da sua
irresponsável e inútil repetição não pode senão obscurecer as mentes, turvar os
olhares, impacientar os actores políticos, exasperar os eleitores.
Daqui em diante é com gente assim que
a Espanha vai contar, tendo em pano de fundo a Catalunha sempre ao lume (mesmo
quando há ruas calmas, escolas abertas, restaurantes cheios e a vida a parecer
seguir o seu curso.)
2. Os
algarismos eleitorais podem ser doces torrões de açúcar ou facas afiadas. Assassinaram
politicamente Albert Rivera
– que se demitiu – e afiaram bem o Podemos. Para Iglésias porém –apesar do
plano cada vez mais inclinado onde rola o Podemos — foi como se nada fosse. Vestiu-se de cordeiro baixou o tom de voz e
prometeu baixar o tom da exigência política (a arrogância é que nunca baixa), não se sabe é se Sánchez acredita no
cordeiro que até hoje só foi lobo.
Pablo Casado mudou de visual, de discurso e de tom. Parece
que lhe valeu a pena mas ou muito me engano ou não trocará o manter-se o
indiscutível líder da oposição pela partilha (subalterna) do poder com Sánchez
. E o mesmíssimo Sánchez sendo um
politico daquela escola em que tudo o que vier da sua direita é “no!”,
preferirá sempre o falso cordeiro mesmo desconfiando — et pour cause… – dele.
Abascal também, tal como previsto, soma e segue. E como não? Sánchez serviu-lhe a Catalunha, serviu-lhe Franco, e os
outros serviram-lhe insultos e epítetos soezes, de modo que não se compreende
bem o espanto alvoroçado por esta subida à montanha dos votos. Por este andar
escalará outras ainda mais altas. Os ventos correm dessa feição. Mas era
preciso analisar, radiografar, escalpelizar a sério o vento e a feição destas
novas formações para (tentar) perceber o que as move, convence e convoca. Confiná-los
ao insulto onde pobremente se esgota a esquerda é irrelevante. Assegura quando
muito a sua boa consciência através do uso incessante da palavra passe –
“extrema direita” – preferida pela extrema esquerda. Mas o estafado epíteto só
os amplia.
3.
Pouco se sabe ainda a não ser o pior: o recém pré-acordo assinado
pelo PSOE e Podemos. De Pedro
com o novo companheiro Pablo que quer tudo o que a maioria das pessoas racional
e normalmente constituídas não costuma querer nem praticar. Sinalizou-se a
diferença para pior. Ou seja, que o futuro não terá nem a consistência nem a
decência – decência, sim, faz sempre falta e há pouca — de uma aliança
cimentada por valores e objectivos comuns, trivialidade que parece ter caído em
desuso. Viva o poder a qualquer custo mesmo que a Catalunha –
e o resto – acabem mal.
Volto ao início: Sánchez não lida bem
com a previsibilidade. O desastre está escrito nos astros.
4 Já
agora… por falar em responsabilização política e em decência: tenho horror às
meias palavras, meias tintas, ao fazer de conta e ao disfarce. Por isso, com
todas as tintas e palavras: o veto do verbo a três novos partidos no parlamento
cometido pelos deputados da esquerda a três dos seus pares é tão inaceitável
que, estou certa, não ficará por aqui (à hora a que escrevo ainda está no
vermelho).
Trata-se da máxima desclassificação cívica de um cidadão eleito, da
máxima desqualificação de um deputado, do cúmulo da menorização de um político.
Chama-se cuspir no eleito e, logo a seguir, no eleitor. É, eloquentemente, a
democracia deles. Mas, resolva-se ou não, o rasto da arrogância deixou nódoa.
COMENTÁRIOS:
José Ribeiro: Um texto previsível e trivial. De uma
"colunista" trivial e previsível.
victor guerra: Não creio que
Bruxelas e os empresários ,gostem de ver o Podemos no poder, só para satisfazer
a ambição de Sanchez e a teatralidade de Pablo. Esta solução ,culminada com um
abraço ridículo ,não pode durar muito. Antevêem -se nova eleições, com o Vox a
capitalizar
Ana Ferreira: Diria antes,
neste caso, a previsibilidade do acerto. É que atendendo às remanescentes
opiniões da senhora, a Geringonça espanhola tem tudo para vir a ser um sucesso!
Manuel Magalhães > Ana Ferreira: Deixa-me
rir...
Nenhum comentário:
Postar um comentário