quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Vidas



Passadas, presentes, todas reais, cá como lá, em Espanha, dando sinais do algo vai mal nos reinos, e não só no da Dinamarca, mas que a “pena” leve de Maria João Avillez aligeira, com a sua vivacidade e sensatez próprias.
I -A inspiração /premium
Paulo Branco e Tiago Guedes poderiam ter lidado com a “Herdade” bem ou mal, melhor ou pior, com arte ou pulso fraco mas não: foi com esse fôlego que só a grande inspiração permite.
MARIA JOÂO AVILLEZ
OBSERVADOR, 6 nov 2019
1-. Ao princípio achei que era uma surpresa depois percebi que talvez fosse um milagre. O olhar fito no écran, imóvel na cadeira, a pressa ausente e a curiosidade alerta, descobri-me inteiramente disponível para aquela história, que o mesmo é dizer inteiramente disponível para o milagre.
Era um filme chamado “A Herdade”. A inspiração tudo tocou no écran, as palavras e as pessoas, a paisagem, a grande casa e as outras casas, a luz, os sentimentos, a terra, os olhares, os silêncios e os seus andamentos. Como um vento forte ela soprou sobre tudo isto como sobre as notas com que se escrevem as sinfonias e as cantatas. Há tempos ouvi o pianista chinês Lang Lang a contar-nos no Mezzo, o que mais o deslumbrava na música e como tinha chegado até ela: a “inspiração” disse ele, “é sempre ela o que mais me toca, é de onde vem tudo”. (cito de memória).
Estou pouco habituada a milagres e que me ofereçam, em português, uma história portuguesa contada tal e qual ela foi, com uma prodigiosa justeza de tom, de substância e de beleza — ainda menos.
A “Herdade”, estou certa, ficará na memória, na nossa e na do cinema. O sopro da inspiração escolheu jorrar sobre aquela grande planície.
2- Quase tudo o que, desde Abril de 1974, lera na literatura ou vira até agora no cinema português sobre as grandes propriedades, os latifúndios, os grandes patrões, foi sempre só metade da história. Parcial, não raro engagé, enviezado. Militante. Desta vez, não: Tiago Guedes contou-nos “o como era”. Neste caso deu-nos a ver algumas vidas, entre a década de cinquenta e o quase final do século passado. Marcelo Caetano, a revolução, a democracia e África, numa imensa herdade além Tejo. Pertença de um único proprietário como a sua grande casa branca, regida exclusivamente por ele. Um mundo: a família, o feitor, o padre, as criadas, as crianças, o pessoal. Os cavalos, os touros, os tractores. O médico, também “dali”. Um mundo, sim. Aquele, filmado como era e permaneceu até bem mais tarde do que o seu próprio prazo de validade.
Do lado de fora, a organização quase feudal que regia as grandes propriedades, regras estritas e fixas. Inter-muros, uma tensão cerzida de olhares que se cruzam e não deviam, sorrisos desamparados, vozes que não se soltam, gestos cortantes, ilusões vãs, palavras rarefeitas sobre a mesa das refeições, choros de crianças. Dores surdas. Ninguém ali é feliz e todos têm razão. Ao fundo, o lento crepitar da tragédia que chegará na memorável última meia hora do filme. Mas paredes dentro ou paredes fora, no campo ou em casa, apesar da rudeza dos dias e das esperanças calcinadas, há, quase físico, palpável, o veio de uma inexpugnável (inexplicável?) cumplicidade entre os dois lados desta (falsa) barricada onde uma aliança nunca escrita sempre dispensou as palavras. Existia. Era assim. Uma fidelidade. E muitas vezes durou.
Tiago Guedes poderia ter lidado com tudo isto bem ou mal, melhor ou pior, com bom astral ou pulso fraco, mas não: fê-lo com o fôlego que só pode ter vindo da inspiração. Essa coisa indefinível, meio dom, meio segredo, que faz com que todos os elementos se concertem e tudo esteja certo. Durante três horas a câmara não sai dali, capturando até ao osso, até ao âmago, cada um daqueles seres. Todos “dali”, circuito fechadíssimo. Tiago não os larga, mas “olha-os” sem os julgar. Não há preconceito nem animosidade, como se lhes desse o direito de serem “assim”. O filme raramente sai dos limites da propriedade e nós não saímos da cadeira do cinema. Não se pode dizer mais.
3- O sábio Aurélio, no seu dicionário, ensina-nos entre outras coisas que a inspiração é “qualquer estímulo ao pensamento ou à actividade criadora”. Seja. Mas nunca saberemos o que a faz decidir-se, onde quer descer ou quem quer possuir. Nem adivinharemos nunca o que a faz soprar. Os deuses sabem que louvados sejam os que a experimentaram e mais os que foram por ela postos à prova. Fiquei a saber que foi o caso, agora, com Paulo Branco e Tiago Guedes.
4- Paulo Branco produziu aqui o filme da sua vida, atrevo-me eu a dizer. Há oito anos – contou-me ele um destes dias – que “pensava nisto”. A vontade de dar vida e “anima” à sua própria memória nunca lhe saiu da cabeça. Uma geografia social e humana onde ele próprio brincara, crescera, montara a cavalo, conversara, aprendera algumas coisas. Ali mesmo, naquela mesmísssima herdade: o pai, forte amigo do proprietário, era pessoa “da casa”. E ele “passava os dias ali na Barroca…”
Um dia Paulo foi ter com Rui Cardoso Martins e Tiago Guedes a quem pediu que escrevessem a história que ele lhes queria contar e durava até hoje. “Aquilo” inspirava-o. Passou tempo mas o filme não se fazia. Arrancava sem arrancar, enrolado em sugestões, alterações, concordâncias e discordâncias. Foi preciso passar mais tempo e correr muita água sob várias pontes até chegar à luz do dia. Oito anos. Mas o dia e a luz chegaram com brilho radioso o que, como se sabe, nunca ofusca a tragédia. Ela lá está. Quase Grega, talvez antes Siciliana.
Paulo Branco continua ainda hoje a ir por aqueles caminhos, a montar aqueles cavalos, a sentar-se à mesa com os filhos e netos daquela gente. Amigos do peito é isto, atravessam-se gerações. Não que o filme as conte ou biografe. Mas colhe e recolhe o que Paulo Branco viu, ouviu, observou e reteve. Daí a verosimilhança, o tom justo, o sentido. O tratamento das personagens. E a mais despojada ausência de clichés.
5- Albano Jerónimo carrega o filme como se levasse uma mochila às costas. A sua própria mochila. Mais impressivo é difícil, um animal de cinema. A inspiração caiu sobre ele como um raio, num personagem bigger than life. Mas… e que dizer dos outros, no caso, todos os outros? Sandra Faleiro, Ana Vilela da Costa, João Pedro Mamede, Teresa Madruga, João Miguel Borges… e aqueles que conheço menos. Um leque de actores cuja inspiração lhes colou à pele densas e tensas personagens. Raro luxo. Quando saí do cinema pensei em como se pode agradecer um filme assim. No teatro bate-se palmas, na pintura podem comprar-se as telas, no futebol trocam-se as cordas vocais por golos, mas na penumbra silenciosa da sala de cinema, na matinée das 14 horas, vendo o genérico a sumir-se do écran, pensei que era um quase dever agradecer a quem nos serviu o banquete da Herdade.
PS: Político mais desinspirado que Pedro Sanchez deve ser impossível. Pouca sorte para quem terá que liderar e lidar com um enredo sem solução. Após o debate televisivo de segunda à noite, foi como se alguém tivesse escrito no tecto do estúdio que dali não sairá nada. Apesar da desenvoltura daquele quinteto, da fluidez do seu discurso, do manuseio de dossiers, alguma coisa meteu medo. Talvez o sabermos o fim, como nos maus filmes. Quem poderá inspirar a Espanha a sair deste alçapão?
COMENTÁRIOS
José Montargil: O filme é formidável. Uma observação justa sem demagogias e piscar de olhos a este e àquele. É àquele ou aquele? Acho que é o primeiro mas não tenho a certeza.
Domingas Coutinho: Vi o filme e gostei muito. Boa realização e bons actores.
II -A previsibilidade do erro /premium
Sinalizou-se a diferença para pior: o futuro espanhol não terá a consistência nem a decência de uma aliança com valores e objectivos comuns. Essa trivialidade está a cair em desuso.
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR, 13 nov 2019
1. Não deixa de espantar a dificuldade exibida por Pedro Sánchez no lidar com a previsibilidade do erro. Nunca alcançando que os seus gestos politicamente mais relevantes trariam com eles não o voto ou a glória mas o anúncio do erro e da desvantagem, complexizando tudo ainda mais. O mestre do jogo desacertou em tudo na sua campanha eleitoral: que político é este capaz de tamanha amplitude – sísmica – de erro?
Qualquer observador leigo – não era preciso que fosse graduado da política – sabia ou antevia que estas eleições não serviriam para nada, desvirtuando a própria utilidade do acto eleitoral, reduzindo a zero a vantagem de o ter convocado mas prejudicando ao máximo o país e exasperado os seus habitantes; que as ambiguidades do poder central e as valsas não menos ambíguas de Sánchez face à questão catalã originariam factura pesadíssima; que a trasladação dos restos mortais de Franco seriam sempre vistos como o que foram: uma subido ao cume mais alto da demagogia com o cobiçoso olhar oportunisticamente posto na caça ao voto à sua esquerda (e para quê?); que os resultados das quartas eleições iriam enredar o novelo da insolubilidade e não soltá-lo, cavando mais o alçapão em que caiu a vida espanhola.
Há oito dias escrevendo aqui sobre o dom da “inspiração” classifiquei Pedro Sánchez como alguém politicamente muito “desinspirado” e a situação espanhola como “metendo medo”. Ficou pior: a acumulação do erro que advém da sua irresponsável e inútil repetição não pode senão obscurecer as mentes, turvar os olhares, impacientar os actores políticos, exasperar os eleitores.
Daqui em diante é com gente assim que a Espanha vai contar, tendo em pano de fundo a Catalunha sempre ao lume (mesmo quando há ruas calmas, escolas abertas, restaurantes cheios e a vida a parecer seguir o seu curso.)
2. Os algarismos eleitorais podem ser doces torrões de açúcar ou facas afiadas. Assassinaram politicamente Albert Rivera – que se demitiu – e afiaram bem o Podemos. Para Iglésias porém –apesar do plano cada vez mais inclinado onde rola o Podemos — foi como se nada fosse. Vestiu-se de cordeiro baixou o tom de voz e prometeu baixar o tom da exigência política (a arrogância é que nunca baixa), não se sabe é se Sánchez acredita no cordeiro que até hoje só foi lobo.
Pablo Casado mudou de visual, de discurso e de tom. Parece que lhe valeu a pena mas ou muito me engano ou não trocará o manter-se o indiscutível líder da oposição pela partilha (subalterna) do poder com Sánchez . E o mesmíssimo Sánchez sendo um politico daquela escola em que tudo o que vier da sua direita é “no!”, preferirá sempre o falso cordeiro mesmo desconfiando — et pour cause… – dele.
Abascal também, tal como previsto, soma e segue. E como não? Sánchez serviu-lhe a Catalunha, serviu-lhe Franco, e os outros serviram-lhe insultos e epítetos soezes, de modo que não se compreende bem o espanto alvoroçado por esta subida à montanha dos votos. Por este andar escalará outras ainda mais altas. Os ventos correm dessa feição. Mas era preciso analisar, radiografar, escalpelizar a sério o vento e a feição destas novas formações para (tentar) perceber o que as move, convence e convoca. Confiná-los ao insulto onde pobremente se esgota a esquerda é irrelevante. Assegura quando muito a sua boa consciência através do uso incessante da palavra passe – “extrema direita” – preferida pela extrema esquerda. Mas o estafado epíteto só os amplia.
3. Pouco se sabe ainda a não ser o pior: o recém pré-acordo assinado pelo PSOE e Podemos. De Pedro com o novo companheiro Pablo que quer tudo o que a maioria das pessoas racional e normalmente constituídas não costuma querer nem praticar. Sinalizou-se a diferença para pior. Ou seja, que o futuro não terá nem a consistência nem a decência – decência, sim, faz sempre falta e há pouca — de uma aliança cimentada por valores e objectivos comuns, trivialidade que parece ter caído em desuso. Viva o poder a qualquer custo mesmo que a Catalunha – e o resto – acabem mal.
Volto ao início: Sánchez não lida bem com a previsibilidade. O desastre está escrito nos astros.
4 Já agora… por falar em responsabilização política e em decência: tenho horror às meias palavras, meias tintas, ao fazer de conta e ao disfarce. Por isso, com todas as tintas e palavras: o veto do verbo a três novos partidos no parlamento cometido pelos deputados da esquerda a três dos seus pares é tão inaceitável que, estou certa, não ficará por aqui (à hora a que escrevo ainda está no vermelho).
Trata-se da máxima desclassificação cívica de um cidadão eleito, da máxima desqualificação de um deputado, do cúmulo da menorização de um político. Chama-se cuspir no eleito e, logo a seguir, no eleitor. É, eloquentemente, a democracia deles. Mas, resolva-se ou não, o rasto da arrogância deixou nódoa.
COMENTÁRIOS:
José Ribeiro: Um texto previsível e trivial. De uma "colunista" trivial e previsível.
victor guerra: Não creio que Bruxelas e os empresários ,gostem de ver o Podemos no poder, só para satisfazer a ambição de Sanchez e a teatralidade de Pablo. Esta solução ,culminada com um abraço ridículo ,não pode durar muito. Antevêem -se nova eleições, com o Vox a capitalizar
Ana Ferreira: Diria antes, neste caso, a previsibilidade do acerto. É que atendendo às remanescentes opiniões da senhora, a Geringonça espanhola tem tudo para vir a ser um sucesso!
Manuel Magalhães > Ana Ferreira: Deixa-me rir...


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