Nos tempos de Júlio Dinis não havia
SNS, por aquelas aldeias de ares lavados, onde João Semana praticava a sua ciência de
acordo com as doenças caseiras de então, na mão que receitava levando, muitas
vezes, a esmola escondida para a receita a aviar na botica da terra. Também Jules Romain nos mostra na
sua peça Knock, um exemplar de médico ingénuo, le docteur Parpalaid, obrigado, para
sobreviver, a passar a pasta a um dinâmico docteur Knock que, com truques
propagandísticos de ordem vária, elege a medicina como disciplina indispensável
para uma população de repente ofuscada pelo aparato das aparelhagens de cura com
que se sujeita à doença, habilmente propagandeada. Excelente caricatura daquilo
em que se tem tornado a medicina, que tem evoluído de tal modo que se organizou
em indispensável Serviço
Nacional de Saúde, de que estamos hoje todos dependentes.
De facto, a evolução científica e tecnológica, em círculo vicioso, descobre a
cura mas também um cada vez maior número de doenças, talvez em função de uma
cada vez maior ânsia lucrativa…
Maria João Avillez refere os artifícios de um programa aparentemente de grande envergadura que
é Prós e Contras mas que não faz mover o inamovível – precisamente, em relação ao último,
passado na RTP, a estratificação de um status pré fixado, de oportunismo,
inoperância e astúcia, por escassez de verba, também.
Quanto à relação
médico-doente, nos Hospitais, esta é difícil, concordo, na avalanche,
sobretudo, das urgências, as pessoas não passando de números que se sucedem, na
rotina de dar lugar ao número seguinte, sem tempo para requintes de
aprofundamento afectivo, como nos consultórios particulares…
Sociedade civil /premium
O que também fica desta obra é o
excelente exemplo do que pode ser – e fazer – uma actuante e desinstalada
sociedade civil e do lugar insubstituível que ela tem nas sociedades modernas.
MARIA
JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR,
27 nov 2019, 00:19
1Ver para descrer. A encenação, os
convidados, as perguntas artificialmente contundentes, os temas pré combinados,
a plateia quase, quase toda escolhida a dedo, o tom, as palmas. E os ausentes,
desde logo a Ordem dos Médicos (porque não estava?) e os proscritos (a Ordem
dos Enfermeiros aflige assim tanto o Governo?). No meio, sorrindo, sorrindo
muito com a confortável segurança que lhe advinha de estar a jogar em casa com
o resultado previamente decidido na secretaria da RTP, a ministra da Saúde,
faltando à verdade com o invejável à vontade de saber que ninguém ali a
desmentiria. Foi o último “Prós e Contras” (Prós e quê?). Não fora a inverosimilhança de tudo e a encenação
teria sido um insulto aos portugueses sem voz nem vez na Saúde (e aos
outros, pensando bem). E não, não desdenho do Serviço Nacional de Saúde – pelo
contrário já aqui o elogiei sonantemente há poucos meses, salvou só e mais nada
o coração de um dos “meus”. Mas espanto-me sempre com a desenvoltura ágil com
que o Governo nunca hesita em “usar” os portugueses para fazer deles parvos. E
de caminho, demissionários. E também de caminho, ocupando todos os meios que
aparentemente a isso se dispõem. O país testemunhou-o esta semana.
2Como
Deus não dorme, poucas horas antes desta televisionada pequena comédia de
costumes, houve um parto muito especial. Nascia um livro que celebra e
consubstancia o contrário do que acima expus, no modo decente, sério, crítico,
como não disfarça nem falseia a abordagem de um tema delicadíssimo na Saúde: a
relação médico-doente.
Chama-se
justamente “A Relação Médico-Doente” e
é um cuidadíssimo e lindíssimo “tratado” (By the Book). Começou a ser pensado
há três anos, nasceu de uma ideia do actual bastonário da Ordem dos Médicos,
Miguel Guimarães (daí o subtítulo da obra “Um contributo” da Ordem dos Médicos)
e trata da indispensabilidade de reflectir e reavivar a crucial importância
dessa relação, como condição para uma boa Saúde. Foi este, aliás, um dos
“objectivos centrais” que Miguel Guimarães colocou no seu programa de
candidatura à Ordem. Esta semana ficou cumprido numa obra onde tema tão
vital e central tem a felicidade de ser não só abordado com rara profundidade,
como de diversas e muito enriquecedoras perspectivas. (Entre elas a de João
Lobo Antunes com
alguns textos tão notáveis que no-lo devolvem hoje, alguns anos após a sua
partida, luminosamente inteiro, intacto e insubstituível.)
Não
era fácil apresentar este livro. Sucede que o complexo desafio teve
desafiado à altura: naquele silêncio das grandes ocasiões, a plateia que lotava
o auditório da Torre do Tombo, ouviu António Barreto, deixar ali, em inspirado escrito, a melhor das
garantias: a obra ficará como referência para a história da nossa medicina. (“A sessão ficaria incompleta sem a
intervenção do António Barreto” havia de me dizer a seguir o
próprio Bastonário.) Mas o que
também fica – e perdurará impressivamente – é o exemplo. O revelador exemplo do
que pode ser – e fazer – uma actuante e desinstalada sociedade civil e do lugar
que ela tem nas sociedades modernas.
A
nossa, semi adormecida e demasiado instalada, está a confundir-se com uma massa
de gente amorfa e muda. Apesar de cada vez mais raras, há excepções que salvam
a funesta regra.
Este
livro é uma delas.
3. A
relação médico-doente está hoje ela própria muito doente. Antes que se transfigure num corpo ferido de morte, os
muitos autores deste livro (médicos, filósofos, advogados, cidadãos de outras
áreas, escolhidos por uma Comissão Editorial, liderada por José
Poças que também coordenou o volume )
desejariam curá-la. Separando
o trigo do joio, ou seja distinguindo entre a normal evolução tecnológica e
informática e os seus excessos, traduzidos por exemplo no uso e abuso do
computador (habituámo-nos a eles para respirar e eles sabem…).
Estudos
recentes norte americanos provaram que “aquilo que é hoje o espaço vital entre
o médico e o seu doente está reduzido a 15% 20% no máximo” e que o resto
“pode ser um écran, um agrafador, um monte de papéis…”, explica Miguel
Guimarães. E depois há a maior ameaça, de índole politica esta, que é o
factor “tempo”. A confiança do doente no médico reclama tempo para expor
dúvidas, ser ouvido e olhado, conversar, desabafar mas o tempo é precioso,
custa dinheiro. Prova: no nosso Serviço Nacional de Saúde – como
ocorre aliás noutros países como a Espanha por exemplo – “há uma pressão
exagerada” para a produção de números de consultas, cirurgias, exames – “esses
números que os governos gostam apresentar ao público” – de onde resulta encavalitar
o dobro, triplo ou quádruplo de consultas num espaço de tempo onde
racionalmente caberia muitíssimo menos. Reduzindo o diálogo médico-doente a
“uma duração inaceitável de cinco, sete minutos”, quebrando o elo fundamental
da confiança que deve existir entre ambos e gerando ainda probabilidades de
erro por parte de um clinico pressionado a agir mais depressa.
Não
disse o Papa Francisco há tempos – lembra o Bastonário –, a propósito das
relações humanas em geral, que “o último reduto das relações humanas se
verifica nas Misericórdias e nos Hospitais, locais onde a fragilidade é sempre
maior e a ajuda ainda mais necessária”?
Outros
obstáculos e impedimentos haverá obviamente numa relação que se quer
securizante, confiante e produtiva e o está cada vez menos. Da absoluta
necessidade de a revalorizar nos fala superlativamente este livro, louve-se o
facto. A Saúde, os médicos, os doentes, o público e o privado, o país, todos
ganham. Não é pouco.
4Não
é pouco mas talvez seja preciso mais nesta caminhada pelo reacender da “relação
médico-doente” terá pensado a Ordem dos Médicos, após saber há três, quatro
anos, que a Espanha iria apresentar a candidatura da “relação médico-doente”
a Património Imaterial da Humanidade da Unesco. E António Barreto talvez também tenha pensado o mesmo. Ouçamo-lo, na
segunda-feira, 25 Novembro, na Torre do Tombo: “Por que diabo a relação entre o médico e o
doente deve ou pode ser considerada «património imaterial da humanidade»? O que
há de diferente entre esta relação e tantas outras? (…) Comparei com outras,
tantas, de carácter profissional e funcional. Nada encontrei que se parecesse
com esta. É antiga, a mais antiga. Compendiada. Tratada. Analisada. Com
tradição. Sempre em mudança, sempre renovada, mas permanente. Com abordagens de
toda a espécie, filosófica, moral, estética, religiosa, política, científica…
Por isso tem o mais antigo juramento deontológico, a mais antiga profissão de
fé. Por isso o médico é o profissional mais respeitado, mais venerado e mais
temido. Creio que há motivos suficientes para que esta relação tenha sentido
próprio e diferente, tenha existência especial e como tal seja recordada e
respeitada. (…)”
5A
Espanha avançou com a ideia de uma candidatura à Unesco, os seus Governos
têm-lhe dado luz verde, a coisa caminha. Entre nós tem sido “imenso o empenho”,
vindo de diversos sectores da sociedade civil, mas o Portugal “oficial” – à
excepção de Adalberto Campos Fernandes que enquanto ministro deu “todo o apoio
” – tem hesitado entre o mutismo e o torcer o nariz.
“Não
estamos a encontrar grande abertura, bem pelo contrário. Parecem achar que isto
não tem interesse nenhum… A Ordem dos Médicos convidou aliás a titular da Saúde
para integrar o painel dos autores da “Relação Médico-Doente” mas a carta
enviada nunca até hoje obteve resposta.”
Tempos
difíceis. E como a verdade é que são os países e só eles que propõem as
candidaturas à Unesco será interessante observar que desfecho espera das
“autoridades” políticas e do Estado português esta singularíssima iniciativa. MÉDICOS SAÚDE
Nenhum comentário:
Postar um comentário