segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Mais duas Crónicas



As crónicas de Clara Ferreira Alves são de uma decisão implacável, que se impõem pelo seu muito saber, em expansão contínua e por vezes mutável, e o seu sabor crítico, acompanhando aquele, em lógica incisiva – e agressiva - provenientes, seguramente, das suas muitas leituras e viagens, que lhe proporcionam uma visão geralmente negativa do bicho-homem em geral e do homem português em particular.
Tenho presentes dois textos – de 14 e de 28 de Setembro, da E, - respectivamente “Os Navegadores” e “Abaixo o capital” – que a minha incompetência dactilográfica me inibe de copiar, na totalidade, para o meu blog, desejo inebriante que o Expresso não satisfaz.
Realmente, não há como opormo-nos, levados que somos a concordar com as suas razões, que não poupam ninguém - salvo os amigos que a sua competência lhe tem justamente proporcionado na vida amplamente enriquecida em leituras e viagens, como força poderosa dos seus escritos cada vez mais impecáveis e implacáveis. na particularidade de uma certa reviravolta de opinião, várias vezes apontada, e que o segundo texto exemplifica, no retrato admirativo e simultaneamente receoso que faz de Jeremy Corbyn, opositor – trabalhista – do conservador Boris Johnson. Um texto que é um privilégio ler, sobre um homem que se impõe, apesar de as atenções se centrarem por agora mais em Boris Johnson e o espinho do Brexit. O retrato que de Corbyn faz a assustada CFA aponta-o como algo de fascinante e aterrador, que não resisto a transcrever, a respeito do discurso daquele na Conferência – de 24 de Setembro - do Partido Trabalhista, em Brighton:

«O que o discurso ostenta vai mais longe do que a caricatura do marxista radical. Corbyn não é apenas marxista. É leninista. E é um homem astuto, capaz de falar horas sem teleponto, com os factos e os números na cabeça, com uma inteligência política fora do comum num chefe que fez a ascensão pela linha da sombra, vindo do funcionalismo sindical. Corbyn é o reverso de Boris, calmo nas falas, explosivo nos programas. O que Corbyn e McDonnell pretendem é a destruição de thatcherismo no Reino Unido. E, de caminho, a destruição do capitalismo. O que Corbyn propôs seria semelhante ao que os caudilhos da Venezuela proporiam, se tivessem as correspondentes educação e cultura políticas. Uma tomada de todos os sectores privados pelo Estado socialista, centralizador e planificador do bem comum e dos amanhãs que cantam. Corbyn é capaz de discutir Joyce e de avançar sobre a sua leitura de “Ulisses” proposições bem temperadas e cultivadas, viu-se em entrevista. Este homem lê como um homem do século XIX e da dobra para o século XX, quando a ideia revolucionária ainda brilhava como um reparador ideal dos excessos da Revolução Industrial e antes do fracasso, incluindo o fracasso intelectual, da experiência soviética e das ditaduras do proletariado em todo o mundo, sobrando os cadáveres de Estaline, Mao e Pol Pot. Um modelo autoritário colectivista fracassado é a cartilha pela qual Corbyn lê. Nacionalização de todos os sectores produtivos e de serviços essenciais e não essenciais, arregimentação das empresas e das pessoas (quem não é por mim é contra mim), consideração do capital como um inimigo a abater, ilegalização de todas as decisões económicas que desagradem ao Estado. Mais as flores. Aumento dos salários dos trabalhadores, subsídios para todos incluindo os mais jovens apenas por serem jovens, semana de 32 horas, abolição do ensino particular e “elitista”, nacionalizações compulsivas, um Serviço Nacional de Saúde com medicamentos gratuitos mediante a obrigatoriedade de todas as farmacêuticas produzirem medicamentos baratos, monopólio orwelliano dos sectores intelectuais e científicos, abolição de todas as desigualdades. Ou seja, do rígido sistema de classes britânico. A austeridade desenfreada dos tories e este sistema de classes criaram este avatar. Mais do que o thatcherismo.
Corbyn é um homem com 70 anos, abeberado no caldo radical dos anos 60 e 70, das marchas dos direitos civis e da defesa dos direitos humanos, com uma visão rosada do antigo Terceiro Mundo e dos não alinhados, e uma visão acrítica dos desastres do Médio Oriente apimentada por um ódio a Israel que lhe valeu a acusação de antissemitismo. Não o preocupa. Nada, na revolução tecnológica ou na nova economia, na geoestratégia, na contemporaneidade, o faz vacilar nas propostas ou no radicalismo.
A ecologia e a crise climática surgem no discurso como um pé de página, um item acrescentado à pressa para o qual não há medidas ou escusas ideológicas. Apesar do anacronismo, Corbyn tem uma base de apoio jovem, o movimento Momentum, mais radical do que ele porque arrebanha as hostes que só conheceram a privação e a pobreza, nunca assistiram às guerras, revoluções e falácias do século XX, e, de um ponto de vista prático, são uma geração condenada a pagar para se educar e escapar dos bairros degradados e subculturas da cidade. Uma geração, por razões de destituição, classe, cor da pele, condenada a ser escrava das classes possidentes e arredadas da criação e distribuição de riqueza. Não admira que o discurso de Corbyn os mobilize, e que Marx e Lenine sejam reabilitados. O ódio ao capital e ao intelectual, à classe educada e profissional é imenso. E mais do que uma nova proposta social, o Labour corbynista dá-lhes os instrumentos da vingança. Destruamos Londres e a City. Abaixo o capital. Chegou a nossa hora. A proposta contém ainda, porque não desmentida pela História recente, semente romântica. A proposta é bem embalada. Corbyn sabe fazer as pausas e suspensões dramáticas e sabe sorrir e ironizar com um tempo perfeito.
Um problema subjaz a todas as generosidades socialistas, ignorando a irracionalidade delas. Estes programas sociais sem fim, estas ordenadas cooperativas de trabalhadores e esta transferência maciça e total do poder do capital para o trabalho, sobretudo o trabalho menos remunerado e menos preparado para o futuro, sob a égide do poder político e da burocracia do Estado e da “nomenklatura”, são caríssimos. Como vão Corbyn e McDonnell pagar tudo? Não ficou claro. Destruir a City significa perder a principal fonte de rendimentos da Grã-Bretanha, os serviços financeiros e as suas contribuições para o Tesouro. Fora o resto.
A seguir ao “Brexit”, a tomada do poder por corbynistas seria a calamidade económica e financeira, uma linha política próxima da venezuelana ou da cubana do tempo de Fidel, de fora das políticas europeias, sem um amigo no chamado primeiro mundo e apadrinhada pelo amor de Corbyn a Putin. Um novo nacionalismo e antiglobalismo pintados a vermelho, mais a tentação antidemocrática. O que esta gente prova é que os demagogos e os tiranos, os inimigos da democracia e da moderação, mais os desmandos de um capitalismo sem freio estão a colocar no poder os velhos comunistas e revolucionários. Plus ça change

Afinal, não resisti a copiar a lição de mestria arquitectónica cultural, sob qualquer ângulo de análise por que se queira encarar, essencial como síntese de uma actualidade que também é verdadeira para nós, portugueses, mau grado as discrepâncias culturais que nos separam, e de que o primeiro texto – “OS NAVEGADORES” é retrato arrasador. Deste transcrevo apenas a síntese em epígrafe:
“AO CONTRÁRIO DOS INGLESES E DA SUPREMACIA HISTÓRICA E CULTURAL CUIDADOSAMENTE CULTIVADA, ENSINADA E ELABORADA, OS PORTUGUESES DESCOLONIZARAM E LOGO ESQUECERAM.”
Como sempre, a espécie de troça sobre o tal passado colonialista que pouco ou nada significou para os formadores de opinião sucessores dos primeiros, (estes mais patriotas, por imposições salazaristas), sucessores aos quais CFA pertenceu, certamente, nos seus tempos de juventude lucidamente ledora da cartilha marxista, indiferente ao facto – curioso/ admirável - de uma pequenez territorial e numérica do seu país, e cuja tentativa exibicionista de reivindicação de pioneirismo explorador dos mares só lhe merece chacota. Todo o texto, de resto, é uma negra página de crítica ao esquecimento – pelos retornados – do que passaram como fuçadores, e que, segundo a analista, as ajudas monetárias europeias contribuíram para fazer esquecer rapidamente essas terras que foram parte da sua pátria. Ao contrário dos ingleses, superiores na sua cultura que souberam impor, os portugueses - pobre gente! - pouco deixaram de memória, e deles só resta o Ronaldo, como monumento nacional, além de um AO que CFA condena, mas que se apressou em seguir, afinal, como progressista que foi e ainda é, criatura superior que rejeita a sua “gentinha”, porque ela própria ganhou estatuto valioso, com os apoios económicos da U E e os apoios amigáveis dos novos poderes, que ela soube seguir convenientemente, como relembro, nos seus nobres passeios mundanais com o herói da altura, Mário Soares.
Um texto aguerrido, como o são sempre, cheio de verdades que ela sabe gerir, cheio de desprezos que igualmente bem gere.

Nenhum comentário: