As crónicas de Clara Ferreira Alves são de uma
decisão implacável, que se impõem pelo seu muito saber, em expansão contínua e
por vezes mutável, e o seu sabor crítico, acompanhando aquele, em lógica incisiva
– e agressiva - provenientes, seguramente, das suas muitas leituras e viagens,
que lhe proporcionam uma visão geralmente negativa do bicho-homem em geral e do
homem português em particular.
Tenho presentes dois textos – de 14 e de
28 de Setembro, da E, - respectivamente “Os Navegadores” e “Abaixo o
capital” – que a minha incompetência dactilográfica me inibe de copiar, na
totalidade, para o meu blog, desejo inebriante que o Expresso não satisfaz.
Realmente, não há como opormo-nos,
levados que somos a concordar com as suas razões, que não poupam ninguém - salvo
os amigos que a sua competência lhe tem justamente proporcionado na vida
amplamente enriquecida em leituras e viagens, como força poderosa dos seus
escritos cada vez mais impecáveis e implacáveis. na
particularidade de uma certa reviravolta de opinião, várias vezes apontada, e
que o segundo texto exemplifica, no retrato admirativo e simultaneamente
receoso que faz de Jeremy Corbyn,
opositor – trabalhista – do conservador Boris
Johnson. Um texto que é um privilégio ler, sobre um homem que se impõe,
apesar de as atenções se centrarem por agora mais em Boris Johnson e o espinho do Brexit.
O retrato que de Corbyn faz a
assustada CFA aponta-o
como algo de fascinante e aterrador, que não resisto a transcrever, a respeito
do discurso daquele na Conferência – de 24 de Setembro - do Partido
Trabalhista, em Brighton:
«O
que o discurso ostenta vai mais longe do que a caricatura do marxista radical.
Corbyn não é apenas marxista. É leninista. E é um homem astuto, capaz de falar
horas sem teleponto, com os factos e os números na cabeça, com uma inteligência
política fora do comum num chefe que fez a ascensão pela linha da sombra, vindo
do funcionalismo sindical. Corbyn é o reverso de Boris, calmo nas falas,
explosivo nos programas. O que Corbyn e McDonnell pretendem é a destruição de
thatcherismo no Reino Unido. E, de caminho, a destruição do capitalismo. O que
Corbyn propôs seria
semelhante ao que os caudilhos da Venezuela proporiam, se tivessem as correspondentes
educação e cultura políticas. Uma tomada de todos os sectores privados pelo
Estado socialista, centralizador e planificador do bem comum e dos amanhãs que cantam.
Corbyn é capaz de discutir Joyce e de avançar sobre a sua leitura de “Ulisses”
proposições bem temperadas e cultivadas, viu-se em entrevista. Este homem lê
como um homem do século XIX e da dobra para o século XX, quando a ideia
revolucionária ainda brilhava como um reparador ideal dos excessos da Revolução
Industrial e antes do fracasso, incluindo o fracasso intelectual, da
experiência soviética e das ditaduras do proletariado em todo o mundo, sobrando
os cadáveres de Estaline, Mao e Pol Pot. Um modelo autoritário colectivista
fracassado é a cartilha pela qual Corbyn lê. Nacionalização de todos os
sectores produtivos e de serviços essenciais e não essenciais, arregimentação
das empresas e das pessoas (quem não é por mim é contra mim), consideração do
capital como um inimigo a abater, ilegalização de todas as decisões económicas
que desagradem ao Estado. Mais as flores. Aumento dos salários dos
trabalhadores, subsídios para todos incluindo os mais jovens apenas por serem
jovens, semana de 32 horas, abolição do ensino particular e “elitista”,
nacionalizações compulsivas, um Serviço Nacional de Saúde com medicamentos
gratuitos mediante a obrigatoriedade de todas as farmacêuticas produzirem
medicamentos baratos, monopólio orwelliano dos sectores intelectuais e
científicos, abolição de todas as desigualdades. Ou seja, do rígido sistema de classes
britânico. A austeridade desenfreada dos tories e este sistema de classes
criaram este avatar. Mais do que o thatcherismo.
Corbyn
é um homem com 70 anos, abeberado no caldo radical dos anos 60 e 70, das
marchas dos direitos civis e da defesa dos direitos humanos, com uma visão
rosada do antigo Terceiro Mundo e dos não alinhados, e uma visão acrítica dos
desastres do Médio Oriente apimentada por um ódio a Israel que lhe valeu a
acusação de antissemitismo. Não o preocupa. Nada, na revolução tecnológica ou
na nova economia, na geoestratégia, na contemporaneidade, o faz vacilar nas
propostas ou no radicalismo.
A
ecologia e a crise climática surgem no discurso como um pé de página, um item
acrescentado à pressa para o qual não há medidas ou escusas ideológicas. Apesar
do anacronismo, Corbyn tem uma base de apoio jovem, o movimento Momentum,
mais radical do que ele porque arrebanha as hostes que só conheceram a privação
e a pobreza, nunca assistiram às guerras, revoluções e falácias do século XX,
e, de um ponto de vista prático, são uma geração condenada a pagar para se
educar e escapar dos bairros degradados e subculturas da cidade. Uma geração,
por razões de destituição, classe, cor da pele, condenada a ser escrava das
classes possidentes e arredadas da criação e distribuição de riqueza. Não
admira que o discurso de Corbyn os mobilize, e que Marx e Lenine sejam
reabilitados. O ódio ao capital e ao intelectual, à classe educada e
profissional é imenso. E mais do que uma nova proposta social, o Labour corbynista
dá-lhes os instrumentos da vingança. Destruamos Londres e a City. Abaixo o
capital. Chegou a nossa hora. A proposta contém ainda, porque não desmentida
pela História recente, semente romântica. A proposta é bem embalada. Corbyn
sabe fazer as pausas e suspensões dramáticas e sabe sorrir e ironizar com um
tempo perfeito.
Um
problema subjaz a todas as generosidades socialistas, ignorando a irracionalidade
delas. Estes programas sociais sem fim, estas ordenadas cooperativas de
trabalhadores e esta transferência maciça e total do poder do capital para o
trabalho, sobretudo o trabalho menos remunerado e menos preparado para o
futuro, sob a égide do poder político e da burocracia do Estado e da “nomenklatura”,
são caríssimos. Como vão Corbyn e McDonnell pagar tudo? Não ficou claro. Destruir
a City significa perder a principal fonte de rendimentos da Grã-Bretanha, os
serviços financeiros e as suas contribuições para o Tesouro. Fora o resto.
A
seguir ao “Brexit”, a tomada do poder por corbynistas seria a calamidade
económica e financeira, uma linha política próxima da venezuelana ou da cubana
do tempo de Fidel, de fora das políticas europeias, sem um amigo no chamado
primeiro mundo e apadrinhada pelo amor de Corbyn a Putin. Um novo
nacionalismo e antiglobalismo pintados a vermelho, mais a tentação
antidemocrática. O que esta gente prova é que os demagogos e os tiranos, os
inimigos da democracia e da moderação, mais os desmandos de um capitalismo sem
freio estão a colocar no poder os velhos comunistas e revolucionários. Plus ça
change…
Afinal, não resisti a copiar a lição de
mestria arquitectónica cultural, sob qualquer ângulo de análise por que se
queira encarar, essencial como síntese de uma actualidade que também é
verdadeira para nós, portugueses, mau grado as discrepâncias culturais que nos
separam, e de que o primeiro texto – “OS
NAVEGADORES” é retrato arrasador. Deste transcrevo apenas a síntese em
epígrafe:
“AO
CONTRÁRIO DOS INGLESES E DA SUPREMACIA HISTÓRICA E CULTURAL CUIDADOSAMENTE
CULTIVADA, ENSINADA E ELABORADA, OS PORTUGUESES DESCOLONIZARAM E LOGO
ESQUECERAM.”
Como sempre, a espécie de troça sobre o
tal passado colonialista que pouco ou nada significou para os formadores de
opinião sucessores dos primeiros, (estes mais patriotas, por imposições
salazaristas), sucessores aos quais CFA
pertenceu,
certamente, nos seus tempos de juventude lucidamente ledora da cartilha
marxista, indiferente ao facto – curioso/ admirável - de uma pequenez territorial
e numérica do seu país, e cuja tentativa exibicionista de reivindicação de
pioneirismo explorador dos mares só lhe merece chacota. Todo o texto, de resto,
é uma negra página de crítica ao esquecimento – pelos retornados – do que
passaram como fuçadores, e que, segundo a analista, as ajudas monetárias
europeias contribuíram para fazer esquecer rapidamente essas terras que foram parte
da sua pátria. Ao contrário dos ingleses, superiores na sua cultura que souberam
impor, os portugueses - pobre gente! - pouco deixaram de memória, e deles só resta
o Ronaldo, como monumento nacional, além de um AO que CFA
condena, mas que se apressou em seguir, afinal, como
progressista que foi e ainda é, criatura superior que rejeita a sua “gentinha”,
porque ela própria ganhou estatuto valioso, com os apoios económicos da U E e os apoios
amigáveis dos novos poderes, que ela soube seguir convenientemente, como relembro,
nos seus nobres passeios mundanais com o herói da altura, Mário Soares.
Um texto aguerrido, como o são sempre,
cheio de verdades que ela sabe gerir, cheio de desprezos que igualmente bem
gere.
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