sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Quem sabe, sabe



É o caso de Teresa de Sousa, para o referir. É o caso do provérbio do vilão com a sua vara, para o aplicar.
OPINIÃO: O que António Costa pode aprender com LeBron James
Se o Governo acredita que pode manter o seu “pragmatismo” em relação à China estará a cometer um enorme erro.
TERESA DE SOUSA  -  PÚBLICO, 27 de Outubro de 2019
1.No início de Outubro, Daryl Morey, “manager” dos Houston Rockets, talvez inspirado pelas imagens que via na televisão do seu quarto de hotel em Tóquio, decidiu enviar um tweet saudando as manifestações pró-democracia de Hong-Kong: “Fight for freedom, stand with Hong-Kong”. Não foi preciso esperar muito para assistir a uma violenta reacção oficial de Pequim contra uma inadmissível ingerência nos assuntos internos da China, seguida em cadeia pela indignação dos patrocinadores das transmissões dos jogos da NBA na República Popular e o anúncio da sua suspensão pela principal televisão estatal (que nunca se concretizou, por conta das centenas de milhões de seguidores chineses dos jogos americanos na internet). Morey apagou imediatamente o tweet. Os responsáveis máximos da NBA apressaram-se a pedir desculpa pelo incidente que, na versão em inglês, classificam de “lamentável” e na versão em chinês de “extremamente decepcionante”.
A história não fica por aqui. O mítico LeBron James, dos LA Lakers, que se encontrava na China para um jogo com outra equipa norte-americana, teceu algumas considerações sobre um incidente que considerou perfeitamente dispensável, argumentando que não convém misturar política com desporto.Nós não somos políticos. Não precisamos de ter opinião sobre tudo.” Estamos a falar de um negócio a rondar os 4 mil milhões de dólares para a NBA, entre direitos de transmissão e merchandising, ou seja, da cada vez mais incontornável atracção do gigantesco mercado chinês, seja qual for a actividade humana. E do poder que isso confere a Pequim, na sua estratégia de afirmação internacional, incluindo o confronto aberto com os valores ocidentais. LeBron é um crítico da actual administração americana, o que certamente não faz dele excepção, denunciando as enormes injustiças que continuam a impender sobre os afro-americanos no seu país.
2. Como Gideon Rachman escreveu no Financial Times, já não se trata da total violação da liberdade de expressão dentro do território chinês. Trata-se da utilização da força económica da China para coarctar a liberdade de expressão nos EUA e em qualquer outra parte do mundo, incluindo as democracias ocidentais, através da simples chantagem económica.A China considera-se com o direito de interferir quando os estrangeiros emitem opiniões que desagradam a Pequim”. Os temas-tabu são cada vez mais numerosos: Tibete, Taiwan, Xinjiang, direitos humanos ou até as ilhas do Mar da China do Sul. Mesmo quando essas palavras são pronunciadas a milhares de quilómetros de distância das suas fronteiras. Rachman referia ainda outro caso que ocorreu na mesma altura e que levou a Apple retirar o acesso a uma aplicação utilizada pelos manifestantes de Hong-Kong para saberem exactamente onde decorriam as concentrações, quais as ruas bloqueadas pela polícia e outras informações uteis para os protestos que já levam quase cinco meses sem que as autoridades de Pequim consigam asfixiá-los. A China é o seu terceiro mercado. A NBA é um negócio de biliões nos Estados Unidos e LeBron James deve ser mais rico que Cristiano Ronaldo. Os Estados Unidos são o país mais poderoso do mundo. Mas o “manager” dos Houston Rockets não tem a liberdade de apoiar Hong-Kong num simples tweet escrito em Tóquio sem causar ondas de choque que atingem a liberdade de expressão nos EUA, e o maior gigante tecnológico recua perante Pequim.
3. Em Portugal, que se orgulha de manter com a China uma relação de cinco séculos, António Costa acaba de tomar posse como primeiro-ministro do XXII Governo da democracia. Durante a campanha eleitoral, as questões de política externa, incluindo a política europeia, estiveram totalmente ausentes do debate. Se se falou do mundo e da Europa foi apenas para anunciar maus presságios, não sobre a crescente turbulência política internacional ou as indefinições europeias, mas sobre as nuvens negras que se acumulam sobre a economia mundial e que acabarão por afectar o nosso crescimento económico. À falta de melhor, era esse o único argumento da oposição à direita contra o primeiro governo de Costa. Ora, num mundo em que um tweet do “manager” dos Houston Rockets desencadeia uma tempestade política em Pequim, já não é mais possível ignorar o que se passa fora de portas – do “Brexit” à ascensão da China, à retracção internacional dos EUA, às tentativas de Moscovo para desestabilizar as democracias europeias, para não falar do próprio destino da Europa da qual fazemos parte integrante. Enumerar prioridades é fácil. Dar-lhes consistência é outra coisa, completamente diferente.
A estafada frase com que o Governo anterior respondia a algumas críticas sobre as relações com a China – “os EUA são nossos aliados, a China é nosso parceiro” –, limita-se a constatar o óbvio. A China de hoje já não é a China de há 10 ou 20 anos. Tem uma estratégia de expansão internacional, da qual a economia é apenas um dos instrumentos, mesmo que por hora o mais eficaz. Em algumas regiões do mundo, não tem a menor preocupação de disfarçar o que espera dos seus investimentos e empréstimos: influenciar as decisões dos governos, mesmo que lhe seja indiferente qual o regime que vigora, democracia ou ditadura (“regime changing” não faz parte da sua estratégia actual, em consonância com a firme defesa do princípio da não-ingerência segundo o qual ninguém tem nada a ver com o que se passa dentro das fronteiras dos Estados soberanos).
A Europa é um dos seus alvos preferenciais – não apenas porque é rica, tecnologicamente avançada e politicamente fraca, mas porque dividi-la faz parte do enfraquecimento do seu verdadeiro adversário à escala global – os EUA –, que ainda não está em condições de desafiar directamente. A Grande Recessão e a crise do euro foram uma oportunidade da qual tirou o máximo partido, investindo nos elos mais fracos da cadeia europeia, como Portugal ou a Grécia. As prioridades dos seus investimentos são as infra-estruturas de transportes, com particular relevância para os portos, as redes de energia e, cada vez mais, a alta tecnologia. As suas empresas, muitas delas estatais, não têm uma preocupação de rendibilidade económica (como as americanas, por exemplo) mas um objectivo estratégico – pagam o que for preciso. Mas não tenhamos qualquer dúvida: acabarão por cobrar o preço político por esse investimento.
Se o Governo acredita que pode manter o seu “pragmatismo” em relação à China estará a cometer um enorme erro. O memorando que assinou com a China quando da visita de Xi Jinping a Portugal passou o crivo da “vigilância” do aliado americano: o seu conteúdo, tal como na altura garantiu o Governo português, não significa um compromisso semelhante ao que a China estabeleceu com cerca de 80 países, incluindo os europeus de Leste ou a Grécia, no âmbito da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative). Falta dar conteúdo às relações que quer estabelecer com os novos “grandes pólos de poder” mundiais (China ou Rússia), através da definição de uma estratégia de longo prazo que não se reduza ao deve e haver da economia. Enfrenta dois testes tão difíceis como fundamentais: um chama-se Sines, o outro Huawei. Espera-se que António Costa revele a mesma capacidade com que dinamizou a frente europeia, com uma visão de longo prazo e um caminho para tentar lá chegar, recuperando a credibilidade de Portugal em Bruxelas e ganhando uma crescente influência política.
O primeiro-ministro sabe que o país não pode colocar todos os ovos no cesto europeu por múltiplas razões históricas, geográficas e politicas, entre as quais a indefinição que hoje paira sobre o futuro da União Europeia. Mas isso não significa confundir parceiros com aliados ou esquecer que Portugal é europeu, também (ou fundamentalmente) porque integra a grande comunidade das democracias ocidentais.
COMENTÁRIOS
Qualquer coisa, 27.10.2019: Excelente artigo. Muito sagaz.
martinhopm, 27.10.2019: LeBron é um crítico da actual administração americana, o que certamente não faz dele excepção, denunciando as enormes injustiças que continuam a impender sobre os afro-americanos no seu país. Só sobre os afro-americanos?!  “regime changing” não faz parte da sua estratégia actual, em consonância com a firme defesa do princípio da não-ingerência segundo o qual ninguém tem nada a ver com o que se passa dentro das fronteiras dos Estados soberanos).
FERNANDO RODRIGUES, 27.10.2019: O que pode aprender, como TdS muito bem explicou com este texto, é que no dia que tivermos que criticar a China por alguma coisa vamos ser "convidados" a não criticar, sob pena de perdermos na vertente dos negócios que não terão nada a ver com o que estiver a ser criticado.
Julio, 27.10.2019: O que se pode aprender muito bem com a TdS é sobre o que ela não diz e a lista é muito, muito grande. Afinal quem tem os lideres europeus sob escuta é o "aliado"... naturalmente em defesa da democracia e liberdades...
FERNANDO RODRIGUES, 27.10.2019: O aliado de Portugal é a UE. Tudo o resto é competição disfarçada de parceiros.
danielcouto1100, 27.10.2019: Cada vez mais é assertivo o livro " O último Europeu"de Miguel Real onde se ficciona o controlo das fontes energéticas da Europa pelo Bloco Asiático, aprisionando e destruindo a civilização europeia envolva no seu pacífico modo de vida.
nunos, 27.10.2019: Liberdade de expressão, têm-na toda. e não há nenhuns temas tabus; o que há, é a reacção compreensível da China, com as respectivas consequências. É difícil para quem quer fazer negócios da china e ao mesmo tempo ser desbocado.
FERNANDO RODRIGUES, 27.10.2019: Então não há liberdade de expressão, se por eu opinar sobre algo for penalizado. Não é isto limitar a liberdade de expressão? Quando se controla a comunicação social e se usam empresas estatais para prejudicar quem tem opiniões contrárias, isso não é censura.
nunos, 27.10.2019: Querem vender-se, depois não venham queixar-se de falta de liberdade de expressão; não se façam de ingénuos, fingindo que não sabiam as regras do jogo.
FERNANDO RODRIGUES, 27.10.2019: Então não há liberdade de expressão. Há negócios que se fazem se não falares contra mim, apenas. E neste caso estamos a falar de estrangeiros, imagine-se o que acontece a chineses...
JDF, 27.10.2019: Tão chateados que andamos nos com a china, e com a liberdade de expressão, quando temos em portugal um ps que já teve o lema "quem se mete com o ps leva"...ai meu deus...

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