É o caso de Teresa de Sousa, para o referir. É o caso do provérbio do vilão com a
sua vara, para o aplicar.
OPINIÃO: O que António Costa pode aprender com LeBron
James
Se o Governo acredita que pode manter o
seu “pragmatismo” em relação à China estará a cometer um enorme erro.
TERESA DE
SOUSA -
PÚBLICO, 27 de Outubro de 2019
1.No início de Outubro, Daryl
Morey, “manager” dos Houston Rockets,
talvez inspirado pelas imagens que via na televisão do seu quarto de hotel em
Tóquio, decidiu enviar um tweet saudando as manifestações pró-democracia de
Hong-Kong: “Fight for freedom, stand with Hong-Kong”. Não foi preciso esperar muito para assistir a uma
violenta reacção oficial de Pequim contra uma inadmissível ingerência nos
assuntos internos da China, seguida em cadeia pela indignação dos
patrocinadores das transmissões dos jogos da NBA na República Popular e o
anúncio da sua suspensão pela principal televisão estatal (que nunca se
concretizou, por conta das centenas de milhões de seguidores chineses dos jogos
americanos na internet). Morey apagou imediatamente o tweet. Os responsáveis máximos
da NBA apressaram-se a pedir desculpa pelo incidente que, na versão em inglês,
classificam de “lamentável” e na versão em chinês de “extremamente
decepcionante”.
A
história não fica por aqui. O mítico LeBron James, dos LA Lakers, que se
encontrava na China para um jogo com outra equipa norte-americana, teceu
algumas considerações sobre um incidente que considerou perfeitamente
dispensável, argumentando que não convém misturar política com desporto. “Nós não somos políticos. Não precisamos de ter opinião
sobre tudo.” Estamos a falar de um negócio a rondar os 4 mil milhões de dólares
para a NBA, entre direitos de transmissão e merchandising, ou seja, da
cada vez mais incontornável atracção do gigantesco mercado chinês, seja qual
for a actividade humana. E do poder que isso confere a Pequim, na sua
estratégia de afirmação internacional, incluindo o confronto aberto com os
valores ocidentais. LeBron é
um crítico da actual administração americana, o que certamente não faz dele
excepção, denunciando as enormes injustiças que continuam a impender sobre os
afro-americanos no seu país.
2. Como Gideon Rachman escreveu no Financial Times, já não se
trata da total violação da liberdade de expressão dentro do território chinês.
Trata-se da utilização da força económica da China para coarctar a liberdade de
expressão nos EUA e em qualquer outra parte do mundo, incluindo as democracias
ocidentais, através da simples chantagem económica. “A China considera-se com o
direito de interferir quando os estrangeiros emitem opiniões que desagradam a
Pequim”. Os temas-tabu são cada vez mais numerosos: Tibete, Taiwan, Xinjiang, direitos
humanos ou até as ilhas do Mar da China do Sul. Mesmo quando essas palavras são
pronunciadas a milhares de quilómetros de distância das suas fronteiras.
Rachman referia ainda outro caso que ocorreu na mesma altura e que levou a
Apple retirar o acesso a uma aplicação utilizada pelos manifestantes de
Hong-Kong para saberem exactamente onde decorriam as concentrações, quais as
ruas bloqueadas pela polícia e outras informações uteis para os protestos que
já levam quase cinco meses sem que as autoridades de Pequim consigam
asfixiá-los. A China é o seu terceiro mercado. A NBA é um negócio de biliões
nos Estados Unidos e LeBron James deve ser mais rico que Cristiano Ronaldo. Os
Estados Unidos são o país mais poderoso do mundo. Mas o “manager” dos Houston
Rockets não tem a liberdade de apoiar Hong-Kong num simples tweet escrito em
Tóquio sem causar ondas de choque que atingem a liberdade de expressão nos EUA,
e o maior gigante tecnológico recua perante Pequim.
3. Em Portugal, que se orgulha de manter
com a China uma relação de cinco séculos, António Costa acaba de tomar posse
como primeiro-ministro do XXII Governo da democracia. Durante a campanha
eleitoral, as questões de política externa, incluindo a política europeia,
estiveram totalmente ausentes do debate.
Se se falou do mundo e da Europa foi apenas para anunciar maus presságios, não
sobre a crescente turbulência política internacional ou as indefinições
europeias, mas sobre as nuvens negras que se acumulam sobre a economia mundial
e que acabarão por afectar o nosso crescimento económico. À falta de melhor,
era esse o único argumento da oposição à direita contra o primeiro governo de
Costa. Ora, num mundo em que um tweet do “manager” dos Houston Rockets
desencadeia uma tempestade política em Pequim, já não é mais possível ignorar o
que se passa fora de portas – do “Brexit” à ascensão da China, à retracção
internacional dos EUA, às tentativas de Moscovo para desestabilizar as
democracias europeias, para não falar do próprio destino da Europa da qual
fazemos parte integrante. Enumerar prioridades é fácil. Dar-lhes consistência é
outra coisa, completamente diferente.
A estafada frase com que o Governo
anterior respondia a algumas críticas sobre as relações com a China – “os EUA
são nossos aliados, a China é nosso parceiro” –, limita-se a constatar o óbvio.
A China de hoje já não é a China de há 10 ou 20 anos. Tem uma estratégia de
expansão internacional, da qual a economia é apenas um dos instrumentos, mesmo
que por hora o mais eficaz. Em algumas regiões do mundo, não tem a menor
preocupação de disfarçar o que espera dos seus investimentos e empréstimos:
influenciar as decisões dos governos, mesmo que lhe seja indiferente qual o
regime que vigora, democracia ou ditadura (“regime changing” não faz parte da
sua estratégia actual, em consonância com a firme defesa do princípio da não-ingerência
segundo o qual ninguém tem nada a ver com o que se passa dentro das fronteiras
dos Estados soberanos).
A Europa é um dos seus alvos
preferenciais – não apenas porque é rica, tecnologicamente avançada e
politicamente fraca, mas porque dividi-la faz parte do enfraquecimento do seu
verdadeiro adversário à escala global – os EUA –, que ainda não está em
condições de desafiar directamente. A Grande Recessão e a crise do euro foram
uma oportunidade da qual tirou o máximo partido, investindo nos elos mais
fracos da cadeia europeia, como Portugal ou a Grécia. As
prioridades dos seus investimentos são as infra-estruturas de transportes, com
particular relevância para os portos, as redes de energia e, cada vez mais, a
alta tecnologia. As suas empresas, muitas delas estatais, não têm uma
preocupação de rendibilidade económica (como as americanas, por exemplo) mas um
objectivo estratégico – pagam o que for preciso. Mas não tenhamos qualquer
dúvida: acabarão por cobrar o preço político por esse investimento.
Se
o Governo acredita que pode manter o seu “pragmatismo” em relação à China
estará a cometer um enorme erro. O memorando que assinou com a China quando da
visita de Xi Jinping a Portugal passou o crivo da “vigilância” do aliado
americano: o seu conteúdo, tal como na altura garantiu o Governo português, não
significa um compromisso semelhante ao que a China estabeleceu com cerca de 80
países, incluindo os europeus de Leste ou a Grécia, no âmbito da Nova Rota da
Seda (Belt and Road Initiative). Falta dar conteúdo às relações que quer
estabelecer com os novos “grandes pólos de poder” mundiais (China ou Rússia),
através da definição de uma estratégia de longo prazo que não se reduza ao deve
e haver da economia. Enfrenta
dois testes tão difíceis como fundamentais: um chama-se Sines, o outro Huawei.
Espera-se que António Costa revele a mesma capacidade com que dinamizou a
frente europeia, com uma visão de longo prazo e um caminho para tentar lá
chegar, recuperando a credibilidade de Portugal em Bruxelas e ganhando uma
crescente influência política.
O primeiro-ministro sabe que o país
não pode colocar todos os ovos no cesto europeu por múltiplas razões
históricas, geográficas e politicas, entre as quais a indefinição que hoje
paira sobre o futuro da União Europeia. Mas isso não significa confundir
parceiros com aliados ou esquecer que Portugal é europeu, também (ou
fundamentalmente) porque integra a grande comunidade das democracias ocidentais.
COMENTÁRIOS
Qualquer coisa, 27.10.2019: Excelente artigo. Muito sagaz.
martinhopm, 27.10.2019: LeBron é um crítico da actual administração americana,
o que certamente não faz dele excepção, denunciando as enormes injustiças que
continuam a impender sobre os afro-americanos no seu país. Só sobre os
afro-americanos?! “regime changing” não
faz parte da sua estratégia actual, em consonância com a firme defesa do
princípio da não-ingerência segundo o qual ninguém tem nada a ver com o que se
passa dentro das fronteiras dos Estados soberanos).
FERNANDO RODRIGUES, 27.10.2019: O que pode aprender, como TdS muito bem explicou com
este texto, é que no dia que tivermos que criticar a China por alguma coisa
vamos ser "convidados" a não criticar, sob pena de perdermos na
vertente dos negócios que não terão nada a ver com o que estiver a ser
criticado.
Julio, 27.10.2019: O que se pode aprender muito bem com a TdS é sobre o
que ela não diz e a lista é muito, muito grande. Afinal quem tem os lideres
europeus sob escuta é o "aliado"... naturalmente em defesa da
democracia e liberdades...
FERNANDO RODRIGUES, 27.10.2019: O aliado de Portugal é a UE. Tudo o resto é competição
disfarçada de parceiros.
danielcouto1100, 27.10.2019: Cada vez mais é assertivo o livro " O último
Europeu"de Miguel Real onde se ficciona o controlo das fontes energéticas
da Europa pelo Bloco Asiático, aprisionando e destruindo a civilização europeia
envolva no seu pacífico modo de vida.
nunos, 27.10.2019: Liberdade de expressão, têm-na toda. e não há nenhuns
temas tabus; o que há, é a reacção compreensível da China, com as respectivas
consequências. É difícil para quem quer fazer negócios da china e ao mesmo
tempo ser desbocado.
FERNANDO
RODRIGUES, 27.10.2019: Então não há liberdade de expressão, se por eu
opinar sobre algo for penalizado. Não é isto limitar a liberdade de expressão?
Quando se controla a comunicação social e se usam empresas estatais para
prejudicar quem tem opiniões contrárias, isso não é censura.
nunos, 27.10.2019: Querem vender-se, depois não venham queixar-se de falta
de liberdade de expressão; não se façam de ingénuos, fingindo que não sabiam as
regras do jogo.
FERNANDO RODRIGUES, 27.10.2019: Então não há liberdade de expressão. Há negócios que
se fazem se não falares contra mim, apenas. E neste caso estamos a falar de
estrangeiros, imagine-se o que acontece a chineses...
JDF,
27.10.2019: Tão chateados que andamos nos com a china,
e com a liberdade de expressão, quando temos em portugal um ps que já teve o
lema "quem se mete com o ps leva"...ai meu deus...
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