A morte publicitada de José Mário
Branco. Autêntico luto nacional. Só faltou a bandeira a meia haste. Já há
propostas do seu nome para ruas. É um comprovativo exemplificativo dos bons argumentos
de Miguel Granja, um nome que desponta para a sacudidela
imprescindível de uma ideologia peganhenta, de migalhas para os passarinhos. Um estilo também poético de
aprazível leitura – mais o do segundo texto – que nos faz erguer a esperança numa
ressurreição, apesar do patético exagero das honras fúnebres citadas, com
saliência para os nossos nobres chefes embarcados na mesma onda interesseira e
velhaca, que nos quer retirar essa esperança.
I - 10 de Outubro de 1999: o Bloco e o dia mais negro da
democracia portuguesa
O que aconteceu à nossa democracia foi o
10 de Outubro de 1999: com eleição do Bloco começou a feroz colonização de
universidades, escolas, redacções de imprensa, de todas as "fábricas da
palavra".
OBSERVADOR, 13 set
2019
No
início do milénio, eu, já firmemente ateu, estudava filosofia numa universidade
católica e, fosse por imperativos de formação, vocação ou devoção, recheava os
meus dias a debater com colegas crentes e professores jesuítas as perplexidades
e as sinuosidades da questão da existência de Deus. Munido do “Gott ist tot”
de Nietzsche e do “Deus é a solidão dos homens” de Sartre, sentia-me sempre a
postos para estrebuchar argumentos contra as cinco vias de Tomás de Aquino, a
aposta de Pascal ou a doutrina da eleição de Karl Barth.
Qualquer
mesinha de estudo na biblioteca onde reinassem silêncios e crucifixos se
transformava instantaneamente numa ágora ateniense onde explodiam silogismos,
alegações, recursos e objecções,
até que “A Dona Conceição da Biblioteca”, nome e patronímico ternos e eternos,
nos viesse pôr na ordem ou na rua. Muitas questões ficaram por responder
(hábito que se demora desde, vá, Platão) mas nenhum insulto ficou por remeter.
Simplesmente porque, naquele tempo, o insulto não existia. Insulto e debate
eram então eventos mutuamente exclusivos. Trazer um insulto para um debate era
tão sacrílego como entrar um porco no Santo dos Santos.
Algo, no entanto, mudou entretanto. O
ambiente mudou. Está hoje menos, muito menos, livre para o debate de ideias. No
ano 2000 podia discutir-se apaixonada e livremente a existência de Deus nos
claustros de uma universidade católica sem se ser ameaçado com as labaredas e
as forquilhas do inferno. Em 2019 não se pode discutir sequer a privatização do
SNS sem se ser chamado de fascista ou o problema da imigração sem se ser
acusado de xenofobia. Hoje o porco chafurda e ronca no Santo dos Santos como
numa pocilga. Tenho-me perguntado o que aconteceu no caminho para cá.
Hoje sei: aconteceu o 10 de Outubro de 1999.
Se
eu tivesse que escolher a data mais negra da história da democracia portuguesa,
seria 10 de Outubro de 1999. Desde esse dia, o espaço público, que já
foi mais livre, mais leve, mais divertido, tem vindo a tornar-se cada vez mais
intolerante, mais policiado, mais claustrofóbico. O esforço de compreensão deu
lugar à ânsia de compressão. Onde antes se tolerava discutir a morte de Deus,
hoje não se tolera sequer abordar os padecimentos da Segurança Social. Onde
antes padres jesuítas convidavam alunos a ler e discutir Ludwig Feuerbach, hoje
sacerdotes jacobinos intimam juízes a criminalizar (e directores de jornais a
silenciar) Fátima Bonifácio. Ontem éramos encorajados a descobrir refutações
para capítulos profundamente blasfemos, hoje somos atiçados a fantasiar punições
para parágrafos vagamente controversos. O politicamente correcto
é apenas o nome politicamente correcto que chamamos, desde então, a esta
crescente claustrofobia antidemocrática.
O que aconteceu à nossa democracia
foi o 10 de Outubro de 1999: o dia em que o Bloco de Esquerda recolheu 132 mil
votos nas eleições legislativas e Francisco Louçã e Luís Fazenda foram eleitos
deputados à Assembleia da República. Pela primeira vez, a “doença infantil do
comunismo” passou a ter representação parlamentar. O resto não é apenas
história: é metástase. A partir desse dia começou a feroz colonização das
universidades, das escolas, das redacções de imprensa, de todas as “fábricas da
palavra” (porque as outras fábricas, as de braços e mãos, estão há já muito
tomadas pela versão adulta da doença). A 10 de Outubro de 1999, com a eleição
do Bloco, teve início em Portugal o sistemático sequestro das palavras. O que
sentimos hoje, nos ecos remotos de uma esfera pública cada vez mais inflamada e
menos vibrante, é o vazio crescente deixado pelas palavras já sequestradas e
cujos sussurros familiares, ao longe, de vez em quando somos ainda capazes de
escutar e reconhecer.
O triunfo dos porcos no Santo dos
Santos é a instituição de uma novilíngua, vala comum de velhas palavras executadas.
Parafraseando o outro, se querem uma visão do futuro, imaginem uma bota a pisar
uma palavra — para sempre. 1984. E porque até nos processos de degradação
estamos sempre crónica e pontualmente atrasados, só chegámos a 1984 em 1999.
1999 de 1984. 10 de Outubro de 1999: o anti-25 de Abril de 1974. Ainda tereis
saudades, como eu, do 9 de Outubro de 1999.
Mestrando em Ciência Política,
EEG/UMinho
II - O punho que
cerra contra a mão que acena, ou o teorema da impossibilidade do comunismo
Cadáveres de todo o mundo,
amontoai-vos. O comunismo não se tornou a maior fábrica de produzir mortos da
história da humanidade por acidente: pelo contrário, é a sua lei interna
inexorável.
OBSERVADOR, 22 nov
2019
Um
aeroporto internacional, sei-o agora, é muito mais do que um aeroporto. Há
pouco tempo, estive uns dias na capital búlgara a participar na “13th
Pan-European Conference on International Relations”, organizada pela European
International Studies Association (EISA), e, entre idas nocturnas e voltas
madrugadoras, passei muito tempo em aeroportos. Do Porto para Sófia fiz
escala em Atenas e de Sófia para o Porto fiz escala em Milão/Bérgamo. Fosse eu
provido de um intelecto socialista e teria provavelmente consumido o meu
copioso tempo de espera nos aeroportos a maquinar novas fórmulas de tributação
das bestas de carga a que alcunharia, com o pudor que caracteriza os calhordas,
de “contribuintes”; sendo, pelo contrário, uma pessoa dotada de vergonha na
cara, limitei-me a fazer o que costumo fazer enquanto espero: ouço Mahler nas
suas inquietas sinfonias e observo pessoas nas suas desassossegadas cacofonias.
Nestes
longos tempos de espera, ao reparar numa mão destrambelhada de pai a acenar
para uma filha que entrava para a zona de embarque, apercebi-me de uma coisa
que se me apresentou à consciência com a evidência nua e a força bruta de
uma epifania fenomenológica à maneira daquela raiz de castanheiro de que fala
Sartre em A Náusea: o comunismo é impossível. O comunismo será sempre
impossível. O comunismo é a impossibilidade tornada ideia. O comunismo é
a impossibilidade da humanidade e a humanidade é a impossibilidade do
comunismo. Comunismo e humanidade disputam um complexo jogo de
soma zero e apenas uma coisa se interpõe, íntegra e integral, entre o comunismo
e o Novo Homem: o ser humano.
Dessa
interposição, que obstrui incansavelmente o caminho dos comunistas em direcção
ao comunismo, decorre toda a história necessariamente sangrenta do comunismo: as
execuções sumárias, as purgas neuróticas, os desaparecimentos nocturnos, as
fomes industriais, os canibalismos insulares, as “crianças socialmente
perigosas”, as deportações massivas, os “arquipélagos do Gulag” – numa palavra:
os cadáveres. Os milhões de cadáveres. Europeus, africanos, asiáticos,
latino-americanos. Cadáveres de todo o mundo, amontoai-vos. O comunismo não se
tornou a maior fábrica de produzir mortos da história da humanidade por
acidente: pelo contrário, é uma lei interna inexorável. Não pode haver
comunismo senão produzindo mortos. O comunismo só poderá fazer nascer o Novo
Homem por cima do cadáver do último ser humano. O comunismo, portanto, é
impossível. E não é porque somos humanos imperfeitos que o comunismo é
impossível: é porque somos humanos.
Passem
uma manhã, uma tarde ou uma noite num grande aeroporto e observem. Os
abraços trapalhões, como se braços humanos não tivessem sido concebidos para
despedidas entre pai e filha. O sorriso condoído dos que partem e a
lágrima incontida dos que ficam, o passo impaciente dos que regressam e a mão
permanente no peito dos que aguardam. A dor da separação e a felicidade do
reencontro. Feitas uma da outra.
Feitas uma para a outra. Perceberão então por que razão o comunismo sempre
atacou a família – e por que razão o comunismo sempre saiu derrotado. Perceberão então por que razão uma mãe
chora a ler uma carta do filho de um modo que um militante jamais chorará a ler
um texto de Lenine. A Mãe de
Gorki comove-nos
não por retratar uma mulher que tinha um filho e se apaixonou pela revolução
mas por retratar uma mãe que se apaixonou pela revolução por amor ao filho: não é pela revolução que Pelágia luta, é pela revolução do
filho. Não é pela revolução em que acredita o filho, é pela
revolução em que acredita o filho (quando, no final, capturada, diz:
“Não afogareis a verdade num mar de sangue”, é o filho que a mãe está a citar: palavras
de filho em voz de mãe).
A
fidelidade familiar, genuína e incondicional, é o sonho de militância dos
comunistas, o nec plus ultra da devoção que os comunistas, émulos
estéreis, terão sempre de impor, de contrafacção, recorrendo a quilómetros de
tundra siberiana e a gramas de ração diária, devorando homens e mulheres,
crianças e velhos, na consumada indistinção igualitária da mortandade sem
classes. Por isso a família é uma comunidade de amor entre livres e o comunismo
– a família abolida, a família abortada, a anti-família por excelência – só
pode gerar uma comunidade de ódio entre escravos (a coorte de pequenos
informadores e bufos de Estaline, delatores dos seus próprios familiares e que
infestam as páginas de Sussurros, de Orlando Figes, não é uma aberração
nascida de uma gravidez ectópica do materialismo histórico: os Pavlik Morozov
são os primogénitos hemofílicos dos disparates hemorrágicos de Marx-Engels
sobre a família “burguesa”).
Também ali, naquela mão que acena, não
há nacionalidades. O internacionalismo comunista pode vergar nações, mas jamais
romperá um cordão umbilical. O internacionalismo maoísta cederá sempre lugar ao
internacionalismo mãoista. Enquanto virem num aeroporto uma mão de mãe, de pai,
de filho, de irmão, de marido, que acena feita doida varrida, feita cãozinho
aos pulos quando o dono chega a casa, o punho cerrado não passará. Magoará,
brutalizará, tiranizará, mas não passará. A sociedade sem classes é impossível
enquanto houver uma mão de pai a acenar à filha que já perdeu de vista. Mão de
pai que acena e não se cansa é o pior inimigo do punho cerrado que aposta no
cansaço dos homens. Mão contra punho. Mão aberta contra mão fechada. Futuro
contra Fim da História. A mão de pai continua ali, fiel e tenaz, a acenar. O
comunismo já perdeu. O comunismo perderá sempre. De todas as vezes. Até ao fim
dos tempos.
Naquele
dia percebi. Não são os homens que esperam o Fim da História, como pensam,
dialécticos, os comunistas. É a História que não tem fim porque tem de esperar
pelos homens: e os homens, a-dialécticos, esperam pelo regresso daquela filha
àquela mão de pai que ficou a acenar naquele aeroporto de Milão. Eu vi o
Fim da História – e não tem fim.
COMENTÁRIOS
Francisco José, 16/09/2019: MUITO, MUITO, MUITO BEM!!! É mesmo
isto!!! O BE é um partido fascizante, de pessoas que querem à viva força,
sugar os nossos impostos, gastá-los onde querem e como querem para os seus
amigos!
Rogério Russo, 15/09/2019: É tempo de enfiar Gramsci
esse ersatz livresco do Trotsky no caixote do lixo da história. E outrossim
aproveitar para lá meter esse caçador de tachos chamado Louçã que parece já o
Bispo-Papa do Tarot. Bela prosa.
Nuno Pimenta, 15/09/2019: Mas que grande tiro no porta-aviões! só obras
primas como estas fazem acordar os portugueses incautos. O Bloco é tudo aquilo
que o autor diz e mais alguma coisa. É nojo. É repulsa. Gente falsa, mentirosa,
que defende a fome e miséria no país dos outros mas quer marisco e espumante
francês ao pequeno almoço.
luis doria, 14/09/2019: Texto de uma lucidez fora do comum.
Quem
escreveu, aqui em baixo, que “A esquerda é hoje uma doença mental, um vírus que
destrói tudo onde toca”, não anda longe da verdade.
Guilherme Valente, 14/09/2019: Pobre universidade inerte. Eis que no essencial um
texto toca finalmente na questão. Parabéns!
António Alves, 14/09/2019: O bloco e todos os demais abomináveis
partidos de extrema esquerda, que vivem da desgraça e por isso não lhes
interessa realmente melhorar significativamente a vida das pessoas, apenas
existem porque temos uma sociedade pinhada de preguiçosos, invejosos,
mesquinhos e ignorantes. Esses partidos precisam dessa mistura explosiva, mas
por outro lado só subsistem enquanto quem realmente trabalha (não é quem pensa
que faz horas, é quem trabalha mesmo, quem larga o seu suor no que faz)
aguentar. No dia que quem trabalha se cansar de trabalhar ou do país e for para
fora... tudo isso colapsa como sempre colapsou.
Carlitos Sousa, 14/09/2019: O politicamente correcto
é apenas o nome politicamente correcto que chamamos, desde então, a esta
crescente claustrofobia antidemocrática. É
verdade! Como foi possível meia dúzia de
trotskistas, maoistas e leninistas, condicionar o pensamento de todo um país,
incluindo escolas universidades e comunicação social. O condicionamento do pensamento
é a pior forma de ditadura.
Liberal Impenitente > Carlitos
Sousa, 14/09/2019: Não é verdade que o
problema tenha começado em 1999, ou sequer com o guru Loução. O problema começou
com a tomada do poder pelo PCP em 1974-75, que foi quase geral na
"educação" e na "comunicação social". Inspiradamente,
Sophia de Mello Breyner chegou a chamar-lhes "os fascistas da
palavra". Temos desde o Conde do Cruzeiro até directores de jornais e
universidades. Depois não nos admiremos por as vidas de pessoas como José
Manuel Fernandes ou Alberto Gonçalves serem difíceis...........
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