sexta-feira, 22 de novembro de 2019

E o folhetim que foi



A morte publicitada de José Mário Branco. Autêntico luto nacional. Só faltou a bandeira a meia haste. Já há propostas do seu nome para ruas. É um comprovativo exemplificativo dos bons argumentos de Miguel Granja, um nome que desponta para a sacudidela imprescindível de uma ideologia peganhenta, de migalhas para os passarinhos. Um estilo também poético de aprazível leitura – mais o do segundo texto – que nos faz erguer a esperança numa ressurreição, apesar do patético exagero das honras fúnebres citadas, com saliência para os nossos nobres chefes embarcados na mesma onda interesseira e velhaca, que nos quer retirar essa esperança.
I - 10 de Outubro de 1999: o Bloco e o dia mais negro da democracia portuguesa
O que aconteceu à nossa democracia foi o 10 de Outubro de 1999: com eleição do Bloco começou a feroz colonização de universidades, escolas, redacções de imprensa, de todas as "fábricas da palavra".
OBSERVADOR, 13 set 2019
No início do milénio, eu, já firmemente ateu, estudava filosofia numa universidade católica e, fosse por imperativos de formação, vocação ou devoção, recheava os meus dias a debater com colegas crentes e professores jesuítas as perplexidades e as sinuosidades da questão da existência de Deus. Munido do “Gott ist tot” de Nietzsche e do “Deus é a solidão dos homens” de Sartre, sentia-me sempre a postos para estrebuchar argumentos contra as cinco vias de Tomás de Aquino, a aposta de Pascal ou a doutrina da eleição de Karl Barth.
Qualquer mesinha de estudo na biblioteca onde reinassem silêncios e crucifixos se transformava instantaneamente numa ágora ateniense onde explodiam silogismos, alegações, recursos e objecções, até que “A Dona Conceição da Biblioteca”, nome e patronímico ternos e eternos, nos viesse pôr na ordem ou na rua. Muitas questões ficaram por responder (hábito que se demora desde, vá, Platão) mas nenhum insulto ficou por remeter. Simplesmente porque, naquele tempo, o insulto não existia. Insulto e debate eram então eventos mutuamente exclusivos. Trazer um insulto para um debate era tão sacrílego como entrar um porco no Santo dos Santos.
Algo, no entanto, mudou entretanto. O ambiente mudou. Está hoje menos, muito menos, livre para o debate de ideias. No ano 2000 podia discutir-se apaixonada e livremente a existência de Deus nos claustros de uma universidade católica sem se ser ameaçado com as labaredas e as forquilhas do inferno. Em 2019 não se pode discutir sequer a privatização do SNS sem se ser chamado de fascista ou o problema da imigração sem se ser acusado de xenofobia. Hoje o porco chafurda e ronca no Santo dos Santos como numa pocilga. Tenho-me perguntado o que aconteceu no caminho para cá. Hoje sei: aconteceu o 10 de Outubro de 1999.
Se eu tivesse que escolher a data mais negra da história da democracia portuguesa, seria 10 de Outubro de 1999. Desde esse dia, o espaço público, que já foi mais livre, mais leve, mais divertido, tem vindo a tornar-se cada vez mais intolerante, mais policiado, mais claustrofóbico. O esforço de compreensão deu lugar à ânsia de compressão. Onde antes se tolerava discutir a morte de Deus, hoje não se tolera sequer abordar os padecimentos da Segurança Social. Onde antes padres jesuítas convidavam alunos a ler e discutir Ludwig Feuerbach, hoje sacerdotes jacobinos intimam juízes a criminalizar (e directores de jornais a silenciar) Fátima Bonifácio. Ontem éramos encorajados a descobrir refutações para capítulos profundamente blasfemos, hoje somos atiçados a fantasiar punições para parágrafos vagamente controversos. O politicamente correcto é apenas o nome politicamente correcto que chamamos, desde então, a esta crescente claustrofobia antidemocrática.
O que aconteceu à nossa democracia foi o 10 de Outubro de 1999: o dia em que o Bloco de Esquerda recolheu 132 mil votos nas eleições legislativas e Francisco Louçã e Luís Fazenda foram eleitos deputados à Assembleia da República. Pela primeira vez, a “doença infantil do comunismo” passou a ter representação parlamentar. O resto não é apenas história: é metástase. A partir desse dia começou a feroz colonização das universidades, das escolas, das redacções de imprensa, de todas as “fábricas da palavra” (porque as outras fábricas, as de braços e mãos, estão há já muito tomadas pela versão adulta da doença). A 10 de Outubro de 1999, com a eleição do Bloco, teve início em Portugal o sistemático sequestro das palavras. O que sentimos hoje, nos ecos remotos de uma esfera pública cada vez mais inflamada e menos vibrante, é o vazio crescente deixado pelas palavras já sequestradas e cujos sussurros familiares, ao longe, de vez em quando somos ainda capazes de escutar e reconhecer.
O triunfo dos porcos no Santo dos Santos é a instituição de uma novilíngua, vala comum de velhas palavras executadas. Parafraseando o outro, se querem uma visão do futuro, imaginem uma bota a pisar uma palavra — para sempre. 1984. E porque até nos processos de degradação estamos sempre crónica e pontualmente atrasados, só chegámos a 1984 em 1999. 1999 de 1984. 10 de Outubro de 1999: o anti-25 de Abril de 1974. Ainda tereis saudades, como eu, do 9 de Outubro de 1999.
Mestrando em Ciência Política, EEG/UMinho
II - O punho que cerra contra a mão que acena, ou o teorema da impossibilidade do comunismo
Cadáveres de todo o mundo, amontoai-vos. O comunismo não se tornou a maior fábrica de produzir mortos da história da humanidade por acidente: pelo contrário, é a sua lei interna inexorável.
OBSERVADOR, 22 nov 2019
 Um aeroporto internacional, sei-o agora, é muito mais do que um aeroporto. Há pouco tempo, estive uns dias na capital búlgara a participar na “13th Pan-European Conference on International Relations”, organizada pela European International Studies Association (EISA), e, entre idas nocturnas e voltas madrugadoras, passei muito tempo em aeroportos. Do Porto para Sófia fiz escala em Atenas e de Sófia para o Porto fiz escala em Milão/Bérgamo. Fosse eu provido de um intelecto socialista e teria provavelmente consumido o meu copioso tempo de espera nos aeroportos a maquinar novas fórmulas de tributação das bestas de carga a que alcunharia, com o pudor que caracteriza os calhordas, de “contribuintes”; sendo, pelo contrário, uma pessoa dotada de vergonha na cara, limitei-me a fazer o que costumo fazer enquanto espero: ouço Mahler nas suas inquietas sinfonias e observo pessoas nas suas desassossegadas cacofonias.
Nestes longos tempos de espera, ao reparar numa mão destrambelhada de pai a acenar para uma filha que entrava para a zona de embarque, apercebi-me de uma coisa que se me apresentou à consciência com a evidência nua e a força bruta de uma epifania fenomenológica à maneira daquela raiz de castanheiro de que fala Sartre em A Náusea: o comunismo é impossível. O comunismo será sempre impossível. O comunismo é a impossibilidade tornada ideia. O comunismo é a impossibilidade da humanidade e a humanidade é a impossibilidade do comunismo. Comunismo e humanidade disputam um complexo jogo de soma zero e apenas uma coisa se interpõe, íntegra e integral, entre o comunismo e o Novo Homem: o ser humano.
Dessa interposição, que obstrui incansavelmente o caminho dos comunistas em direcção ao comunismo, decorre toda a história necessariamente sangrenta do comunismo: as execuções sumárias, as purgas neuróticas, os desaparecimentos nocturnos, as fomes industriais, os canibalismos insulares, as “crianças socialmente perigosas”, as deportações massivas, os “arquipélagos do Gulag” – numa palavra: os cadáveres. Os milhões de cadáveres. Europeus, africanos, asiáticos, latino-americanos. Cadáveres de todo o mundo, amontoai-vos. O comunismo não se tornou a maior fábrica de produzir mortos da história da humanidade por acidente: pelo contrário, é uma lei interna inexorável. Não pode haver comunismo senão produzindo mortos. O comunismo só poderá fazer nascer o Novo Homem por cima do cadáver do último ser humano. O comunismo, portanto, é impossível. E não é porque somos humanos imperfeitos que o comunismo é impossível: é porque somos humanos.
Passem uma manhã, uma tarde ou uma noite num grande aeroporto e observem. Os abraços trapalhões, como se braços humanos não tivessem sido concebidos para despedidas entre pai e filha. O sorriso condoído dos que partem e a lágrima incontida dos que ficam, o passo impaciente dos que regressam e a mão permanente no peito dos que aguardam. A dor da separação e a felicidade do reencontro. Feitas uma da outra. Feitas uma para a outra. Perceberão então por que razão o comunismo sempre atacou a família – e por que razão o comunismo sempre saiu derrotado. Perceberão então por que razão uma mãe chora a ler uma carta do filho de um modo que um militante jamais chorará a ler um texto de LenineA Mãe de Gorki comove-nos não por retratar uma mulher que tinha um filho e se apaixonou pela revolução mas por retratar uma mãe que se apaixonou pela revolução por amor ao filho: não é pela revolução que Pelágia luta, é pela revolução do filho. Não é pela revolução em que acredita o filho, é pela revolução em que acredita o filho (quando, no final, capturada, diz: “Não afogareis a verdade num mar de sangue”, é o filho que a mãe está a citar: palavras de filho em voz de mãe).
A fidelidade familiar, genuína e incondicional, é o sonho de militância dos comunistas, o nec plus ultra da devoção que os comunistas, émulos estéreis, terão sempre de impor, de contrafacção, recorrendo a quilómetros de tundra siberiana e a gramas de ração diária, devorando homens e mulheres, crianças e velhos, na consumada indistinção igualitária da mortandade sem classes. Por isso a família é uma comunidade de amor entre livres e o comunismo – a família abolida, a família abortada, a anti-família por excelência – só pode gerar uma comunidade de ódio entre escravos (a coorte de pequenos informadores e bufos de Estaline, delatores dos seus próprios familiares e que infestam as páginas de Sussurros, de Orlando Figes, não é uma aberração nascida de uma gravidez ectópica do materialismo histórico: os Pavlik Morozov são os primogénitos hemofílicos dos disparates hemorrágicos de Marx-Engels sobre a família “burguesa”).
Também ali, naquela mão que acena, não há nacionalidades. O internacionalismo comunista pode vergar nações, mas jamais romperá um cordão umbilical. O internacionalismo maoísta cederá sempre lugar ao internacionalismo mãoista. Enquanto virem num aeroporto uma mão de mãe, de pai, de filho, de irmão, de marido, que acena feita doida varrida, feita cãozinho aos pulos quando o dono chega a casa, o punho cerrado não passará. Magoará, brutalizará, tiranizará, mas não passará. A sociedade sem classes é impossível enquanto houver uma mão de pai a acenar à filha que já perdeu de vista. Mão de pai que acena e não se cansa é o pior inimigo do punho cerrado que aposta no cansaço dos homens. Mão contra punho. Mão aberta contra mão fechada. Futuro contra Fim da História. A mão de pai continua ali, fiel e tenaz, a acenar. O comunismo já perdeu. O comunismo perderá sempre. De todas as vezes. Até ao fim dos tempos.
Naquele dia percebi. Não são os homens que esperam o Fim da História, como pensam, dialécticos, os comunistas. É a História que não tem fim porque tem de esperar pelos homens: e os homens, a-dialécticos, esperam pelo regresso daquela filha àquela mão de pai que ficou a acenar naquele aeroporto de Milão. Eu vi o Fim da História – e não tem fim.
COMENTÁRIOS
Francisco José, 16/09/2019: MUITO, MUITO, MUITO BEM!!! É mesmo isto!!! O BE  é um partido fascizante, de pessoas que querem à viva força, sugar os nossos impostos, gastá-los onde querem e como querem para os seus amigos!
Rogério Russo, 15/09/2019: É tempo de enfiar Gramsci esse ersatz livresco do Trotsky no caixote do lixo da história. E outrossim aproveitar para lá meter esse caçador de tachos chamado Louçã que parece já o Bispo-Papa do Tarot. Bela prosa. 
Nuno Pimenta, 15/09/2019: Mas que grande tiro no porta-aviões! só obras primas como estas fazem acordar os portugueses incautos. O Bloco é tudo aquilo que o autor diz e mais alguma coisa. É nojo. É repulsa. Gente falsa, mentirosa, que defende a fome e miséria no país dos outros mas quer marisco e espumante francês ao pequeno almoço.
Lúcia Henriques, 15/09/2019: Parabéns!
luis doria, 14/09/2019: Texto de uma lucidez fora do comum. Quem escreveu, aqui em baixo, que “A esquerda é hoje uma doença mental, um vírus que destrói tudo onde toca”, não anda longe da verdade.
Guilherme Valente, 14/09/2019: Pobre universidade inerte. Eis que no essencial um texto toca  finalmente na questão. Parabéns!
António Alves, 14/09/2019: O bloco e todos os demais abomináveis partidos de extrema esquerda, que vivem da desgraça e por isso não lhes interessa realmente melhorar significativamente a vida das pessoas, apenas existem porque temos uma sociedade pinhada de preguiçosos, invejosos, mesquinhos e ignorantes. Esses partidos precisam dessa mistura explosiva, mas por outro lado só subsistem enquanto quem realmente trabalha (não é quem pensa que faz horas, é quem trabalha mesmo, quem larga o seu suor no que faz) aguentar. No dia que quem trabalha se cansar de trabalhar ou do país e for para fora... tudo isso colapsa como sempre colapsou.
Carlitos Sousa, 14/09/2019: O politicamente correcto é apenas o nome politicamente correcto que chamamos, desde então, a esta crescente claustrofobia antidemocrática. É verdade! Como foi possível meia dúzia de trotskistas, maoistas e leninistas, condicionar o pensamento de todo um país, incluindo escolas universidades e comunicação social. O condicionamento do pensamento é a pior forma de ditadura.
Liberal Impenitente > Carlitos Sousa, 14/09/2019: Não é verdade que o problema tenha começado em 1999, ou sequer com o guru Loução. O problema começou com a tomada do poder pelo PCP em 1974-75, que foi quase geral na "educação" e na "comunicação social". Inspiradamente, Sophia de Mello Breyner chegou a chamar-lhes "os fascistas da palavra". Temos desde o Conde do Cruzeiro até directores de jornais e universidades. Depois não nos admiremos por as vidas de pessoas como José Manuel Fernandes ou Alberto Gonçalves serem difíceis...........

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