Já lá vai o
tempo em que chovia a valer por cá, e recordo a expressão da minha mãe, que
gostava de rir a citar expressões dos seus tempos de moçoila na aldeia do
Carregal, que atribuía a um ti Zé que conhecera, talvez o Carrazedo, ou outro
qualquer que não posso mais precisar, dado que já não existe a mãe para nos lembrar:
“Tchobe, tchobe, é uma berdade!” era
a frase, citada com a picardia própria de uma mulher feliz, num lar de amor,
onde se cantava bastante, a minha mãe botando fino descante, a minha irmã e a
nossa prima Celeste, igualmente de vozes apuradas, a minha mais grave, as dos
homens – pai, tio, primo - fazendo bom acompanhamento coral, nas noites do “fleet”,
por via dos mosquitos que abundavam nas Áfricas, fleet que nos expulsava de
casa em romaria nocturna cantante, até ele dar conta dos mosquitos que nem a
rede mosquiteira das portas duplas das entradas impedia de entrarem nas casas, por lá. Infelizmente, já nem a “tchuba” é hoje suficiente, por cá, para
motivar essas lembranças alegres de um céu talvez mais generoso para os férteis
campos de outrora, nas longas noites de invernia, de que me lembro, da infância
por cá, com a chuva a pingar nas casas pelos telhados que o vento destapava. Maria João Avillez, senhora da cidade, queixa-se do inverno na cidade, como se queixam todos
os têm frio. Alguns comentadores ironizam, dada a seca que é muita, que já não
há chuva que a elimine.
É certo que é
metafórico o seu discurso, e não merece as lições mal-intencionadas dos que
vêem pedantismo apenas, no seu discurso, alguns dos quais omiti. E repito, a
confirmá-lo, o seu parágrafo final, com a sensibilidade, elegância e o revoltado
espírito crítico que todos lhe reconhecem, talvez com inveja, alguns: «Vivem-se tempos de invernia. De inquietação colada à
incerteza do mundo. De um ressentido mal-estar que entrou em cena para ficar.
Do uso bom da resistência à prática má da violência. Da fragilidade desnorteada
das lideranças em cidades, países, continentes e blocos políticos. Olha-se para
lá e tem-se medo. Invernia da (muito, muito) pesada.»
São de invernia os tempos, sim, mas só
abstractamente, como todos sabem. De seca também. E, sobretudo, de medo. Até de
que falhe a invernia.
Tempos
de invernia /premium
Chove, o que torna tudo ainda mais
viscoso que é outra forma de dizer inaceitável. Mas são tão poucos os
verdadeiramente preocupados com estes tempos de invernia não são?
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR, 21 nov 2019
1. Não
sei o que fazer com o inverno. Nunca soube. Às vezes ouço falar das maravilhas
que supostamente amenizariam a recusa da pior estação — o “aconchego” das casas
quando escurece, os dias “bonitos” de inverno, o “ler à lareira”, as caminhadas
pelo “campo molhado do inverno, um chá em dia de chuva” — e outras
inconvincentes “redacções” de escola primária, a cuja enumeração me dispenso:
haverá algo de mais desolado do que a paisagem despida do inverno? Do que a
moleza húmida que nos captura, as falhas de energia que nos limitam a vontade,
a melancolia dos dias, o inviolável escuro da noite a chegar cedo demais, a
tristeza fininha que tudo tinge?
2. Para
não evocar a falta de “anima” que pode até tolher as melhores intenções como a
de cumprir as obrigações que alguns – por poucos que sejam – esperam que eu
cumpra: escrever mais e mais sobre uma carga fiscal a rebentar com a classe
média; indignar-me contra aquele cómico brasileiro logo acolhido pela media
nacional por ter virado o dente ao deputado do Chega e com isso se
transformando do pé para a mão em alguém mencionável. A ninguém ocorrendo que
um país decente não aprecia ouvir os de fora humilhar os de dentro, sejam eles
quais forem (sendo certo que o cómico não resistiria aos insultos, caso o seu
julgamento político se tivesse abatido sobre algum radical); envergonhar-me com
a continuada situação dos hospitais sem médicos e urgências repetidamente
fechadas e com escolas sem professores nem vigilantes; afligir-me com a
indiferença que rodeia o escandaloso preço dos manuais escolares — uma bandeira
séria à disposição de uma Direita quase sempre distraída ou preferindo outras e
piores tentações; pasmar-me com um governo que aumenta os seus elementos na
razão inversa da sua eficácia, espalhando-os inutilmente pelo “interior” e à
nossa custa; entristecer-me com o silêncio mediático e cultural que rodeou a exposição
–sobrelotada de gente — da passada semana no Museu do Fado, alusiva à história
de vida de José Pracana: guitarrista de génio, ex-libris da história do fado,
homem admirável e amigo memorável. Já quando ele partiu desta pátria que
consente a si mesma ser de filhos e enteados se estranhou a indiferença que José Pracana
não merecia. Talvez porque, do alto ao baixo da pirâmide, se protegem os filhos
e ignoram os enteados. Coisa estranha.
E
por aí fora (e por aqui dentro). Mas chove, o que torna tudo ainda mais viscoso
que é outra forma de dizer inaceitável.
Mas
são tão poucos os verdadeiramente preocupados, não é?
3. Não
fora o maldito inverno, a lama, a chuva e o vento que batia forte e ter-me ia
atardado com inesgotável deleite no coração do Porto, cidade da minha grande
estimação e não é de agora. Só que é agora que se tornou visível e quase
parecendo posta em relevo a beleza da recuperação do seu centro histórico,
onde há dez, quinze anos ninguém lá ia e poucos lá viviam (com medo de tudo).
O
Porto, aquele Porto, dantes disfarçado na sombra lúgubre do abandono e do
descuido, revigorou, caprichou, embelezou. Ressuscitou. Espreita, omnipresente,
de todos os lados: fachadas com o granito a reluzir, casas restauradas que
subitamente nos lembram de como eram belíssimas no seu porte elegante de altas
janelas, igrejas pintadas, edifícios públicos cuidados, ruas arranjadas, espaço
público alindado, excelente mobiliário urbano. Ouvi muitas queixas de “turismo
a mais”. Pode ser, não vivo lá, seria abusador entrar em considerações ou
quantificações. Preferi atender ao que, rua após rua, praça após praça, mais
convincentemente se impunha: a alma da cidade, a sua matriz devolvida. Urbanisticamente
magnífico, dei com um Porto ora inventivo, ora tradicional, ora alternativo,
ora surpreendente, mas sempre “ele”. O impacto quase (me) vencia o inverno.
É
que pensando bem talvez não haja cidade portuguesa com assinatura própria tão
forte, tão impressiva, tão vincada.
4. Também
tropecei no inverno que envolvia os jardins da Casas das Artes e da Casa Allen
que gostaria de ter revisto com tempo mas a chuva vetou-me essa saudade.
Restou-me apenas atravessá-los para ouvir Mário Cláudio, Gaspar Martins Pereira
e Germano Silva, deambular com infinitos “saberes” pelos “vários Portos” que
convivem na cidade, a propósito do lançamento do livro memorialístico de
João van Zeller (“Johny Boy”, Afrontamento). E
tal como o Porto das décadas de quarenta e cinquenta do século XX que o autor
copiosamente ali nos “serve”, com minuciosas e prodigiosas lembranças, também
eu naqueles jardins brevemente entrevistos, me lembrei de olhar para trás.
E de procurar na memória as incansáveis gerações de jardineiros de outras
épocas, debruçados com um amor sem fim sobre a terra dos canteiro, o corte do
buxo, a poda das árvores centenárias, a mancha das cameleiras, as filas de
rosas. Suspeito que nunca ninguém tenha agradecido suficientemente esta
geografia particular deixada em herança pela idiossincrasia britânica em tantos
“Portos”.
5. Com a invernia sempre a colocar-se entre o que ela me
consentia e o que eu tencionava fazer não pude, por estes dias, apreciar como
devia uma parceira inesperada. Falo de uma gaivota que conheci na varanda do meu quarto de hotel, no
novíssimo Flores Porto Bay (tenho a factura da conta comigo). Amanhecer,
entardecer, anoitecer, ela fazia-me companhia, nunca arredando as asas do muro
da varanda de onde se via a Sé, o Paço Episcopal e o Porto a espraiando-se até
ao rio. A cidade só para mim. A gaivota, como aquele cenário estampado na
janela, devia ser privativa. E não fora a implacabilidade do clima e mais
loquazes teriam sido as nossas conversas.
Mas
o que é o inverno senão este pródigo produzir de “impossibilidades” em tempo real?
6. Vivem-se tempos de invernia. De inquietação colada à
incerteza do mundo. De um ressentido mal-estar que entrou em cena para ficar.
Do uso bom da resistência à pratica má da violência. Da fragilidade desnorteada
das lideranças em cidades, países, continentes e blocos políticos. Olha-se para
lá e tem-se medo. Invernia da (muito, muito) pesada.
COMENTÁRIOS
Miguel Bergano: Felizmente
que ainda há alguns portugueses que no meio desta chuva melosa e mal-cheirosa
não se deixam molhar, a contrastar com tantos que por tanta inércia e preguiça
estão à beira de morrer afogados e nem se apercebem.
Sergio Coelho: Chove e
ainda BEM! PRECIOSA CHUVA! PRECIOSA ÁGUA! Cada vez mais rara
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Sem chuva não há ÁGUA nos rios, albufeiras e nas
barragens. Sem dias cinzentos, não é possível apreciar os dias de sol....
José Coelho Gonçalves Cabrita > Sergio Coelho: Água
é a fonte da vida!
Pedro Ferreira: Começar o
dia a ler esta excelente prosa é divinal. Continue a escrever e que Deus a
proteja. Infelizmente, o "inverno" já cá está e a referência à
ausência de atenção a José Pracana diz muito dos tempos que correm. Somos um
país inclinado para a desgraça e no fim a culpa é do Passos.
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