Um filósofo francês que todos deveríamos
conhecer, como responsável pelo esclarecimento sobre os fenómenos políticos,
económicos e sociais que foram surgindo e que merecem a nossa atenção para melhor
entendermos o ponto a que chegámos de farfalheira gritante e perigosa, e que,
frontalmente, homens mentalmente sãos, como Salles da Fonseca, ousam trazer a este nosso palco pátrio, que vai
afundando, na inércia do nosso acomodamento. Bem hajam todos os que se debruçam
sobre esse papel aclarador, como também o faz o Observador ao publicar o estudo crítico de Carlos Gaspar expressivo do papel intelectual de Raymond Aron no nosso mundo.
HENRIQUE
SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 26.11.19
ou
OS
INTELECTUAIS E A MENTIRA
Reformistas
ou reformadores opõem-se aos revolucionários, aos que querem não melhorar o
capitalismo mas sim suprimi-lo. O
revolucionário esforça-se, destruindo o seu meio, para se reconciliar consigo
próprio, visto que o homem só está de acordo consigo se estiver de acordo com
as relações sociais de que é, quer queira quer não, prisioneiro… O
revolucionário não tem outro programa a não ser o demagógico. Digamos que há uma
“ideologia”, ou seja, a representação de outro sistema, transcendente ao
presente e talvez irrealizável. Mas
só o sucesso da revolução permite discernir entre a antecipação e a utopia. Por
conseguinte, se ficássemos nas ideologias, juntar-nos-íamos espontaneamente aos
revolucionários que normalmente prometem mais do que os outros. É
forçoso que os recursos da imaginação levem a melhor à realidade, mesmo
desfigurada ou transfigurada pela mentira. Assim se explica o preconceito
favorável dos intelectuais a favor dos partidos avançados.
In “Memórias”, Raymond Aron, ed. GUERRA & PAZ, 1ª edição
portuguesa, Fevereiro de 2018, pág. 129
2 - Biografia breve
https://www.wook.pt/autor/raymond-aron/22234
Antes
do tempo ou não, Raymond Aron teve razão no seu tempo e continua a tê-la hoje.
A sua obra está na primeira linha da denúncia de todas as formas de
totalitarismos. Filósofo, sociólogo, jornalista, professor e politólogo, Aron
nasceu em 1905, em Paris, no seio de uma família de origem judaica, tornando-se
conhecido pelo seu cepticismo em relação à esquerda francesa. Estudou na École
Normale Supérieure, onde conheceu Jean-Paul Sartre, de quem se tornou amigo e,
mais tarde, forte oponente intelectual. Foi colunista no Le Figaro e no
L’Express, e leccionou em instituições como a Sorbonne e o Collège de France,
tendo tido por alunos figuras como Pierre Bourdieu, André Glucksmann ou Henry
Kissinger. Publicou diversos livros influentes que consolidaram a sua posição
de autoridade intelectual entre os conservadores franceses. Pensador de
invulgar argúcia, é um dos grandes intelectuais do século XX, e autor de vasta
obra da qual se destaca O Ópio dos Intelectuais (1957), um conhecido ataque
contra Sartre, o marxismo e a intelectualidade francesa, desintoxicando o
pensamento unilateral da esquerda e a denegação dos intelectuais marxista face
à brutal repressão do comunismo. Em 1977, vítima de uma embolia, repensa a sua
vida e decide então escrever suas memórias. Morre em 1983.
3 - Pré-publicação.
Em "Raymond Aron e a Guerra Fria",
Carlos Gaspar analisa
o pós-Segunda Guerra visto por aquele que considera ser "o último dos grandes intelectuais que marcam
a história do séc. XX".
OBSERVADOR, 25 nov
2018
Raymond Aron era filósofo, cientista, jornalista e
professor universitário. É, segundo Carlos Gaspar,
“o último dos grandes intelectuais que marcam a história do século XX”, um
século que Aron descreveu como “o século das guerras totais e das revoluções
totalitárias e como o princípio da história universal”. A Guerra Fria,
fruto da divisão entre Estados Unidos e União Soviética, foi para o francês um
marco que definiu como “paz impossível, guerra improvável”.
O Observador faz a
pré-publicação do capítulo “A decadência da Europa”,
do livro de Carlos Gaspar
“Raymond Aron e a Guerra Fria”,
publicado pela Alêtheia Editores. Na obra, o assessor do Instituto de Defesa
Nacional aborda a vida e o
pensamento do intelectual no pós-Segunda Guerra Mundial. “Para Aron, o fim da Europa é
o seu princípio”.
“Raymond
Aron e a Guerra Fria” é publicado pela Alêtheia Editores
A
decadência da Europa
O
declínio da Europa no século XX é evidente. Entre 1914 e 1945, a segunda
«Guerra dos Trinta Anos» parece confirmar a profecia de Spengler sobre a morte
da civilização, ou da cultura ocidental e acelera a emergência dos
novos impérios – os Estados
Unidos e a União Soviética – cuja linha de demarcação estratégica divide a
Europa depois da destruição do III Reich. No fim da II Guerra Mundial, nenhum dos vencedores
é uma potência europeia, ou exclusivamente europeia, e a vaga de descolonização
do post‐Guerra confirma de que lado da história estão as novas super-potências
e completa a retracção das velhas potências imperiais, que voltam ao seu ponto
de partida no fim da «era gâmica».
Para Aron, o fim da Europa é o seu princípio. Pela
primeira vez na história, os Estados europeus não podem fazer a guerra entre
si, sob pena de cometerem suicídio. Em 1945, a alternativa é a união da
Europa Ocidental – uma união incompleta, por definição, face à divisão da
Alemanha e à separação entre a Europa Ocidental e a Europa de Leste. O fim
da unidade alemã é o princípio da construção europeia, se não se perder a
oportunidade histórica para reconciliar a França e a Alemanha, os «inimigos
hereditários» cujas guerras destruíram a Europa.
Raymond
Aron é um europeu — nenhum
outro intelectual do seu tempo está igualmente à vontade na França, em
Inglaterra, na Alemanha ou nos Estados Unidos: estudou em Paris, viveu em
Berlim, esteve no exílio em Londres, fala e escreve nas três línguas, trouxe a
sociologia weberiana para a universidade francesa, é o único europeu convidado
pelo Comité das Relações Internacionais em Nova York, reconhecido como um par
pela comunidade dos estrategas nucleares e cujos livros são imediatamente
traduzidos e publicados em todas as línguas ocidentais e, até, circulados
em samizdat na Europa de Leste.
Patriota francês, Aron é um defensor da Europa, sem ser um federalista. Na reconstrução europeia, a prioridade é a
restauração dos Estados nacionais, das democracias pluralistas e da economia
ocidental, necessária para travar a expansão soviética, a vaga comunista e o
desespero dos Europeus. A Europa nunca foi uma entidade política, nem há um
«patriotismo europeu» em que se possa fundar uma «Europa europeia». A nova
Europa é, e não pode não ser, a velha Europa das nações, que tem de se
reconfigurar como parte de uma «civilização atlântica», ou de uma «união
ocidental», se não quiser ser absorvida pelo império soviético.
Contra os nacionalistas e os
neutralistas, é partidário da aliança entre a França e a Grã‐Bretanha, assim
como da reconstituição da Alemanha e da reconciliação entre os rivais europeus,
tornada possível pelo resultado da guerra: «No dia em que todas as nações
europeias foram vencidas, quando nenhuma delas pode escolher soberanamente o seu
destino, o nacionalismo tornou‐se um anacronismo». No mesmo sentido, considera indispensável o
alinhamento com os Estados Unidos e a intervenção norte‐americana na
reconstituição das democracias europeias: é partidário
do Plano Marshall e da concertação entre Washington, Londres e
Paris para formar a República Federal —
a divisão da Alemanha dura enquanto durar a divisão da Europa. O Tratado
de Bruxelas e o Pacto
do Atlântico
consolidam a aliança ocidental, o Plano Schuman é um passo ousado e decisivo
para a reconciliação entre a França e a Alemanha: o pool do carvão e do aço não pode falhar.
No princípio da Guerra Fria, descreve
a contradição entre a fragmentação política da Europa e a necessidade de
formação de um grande espaço económico como um «absurdo mortal». Nesse contexto, admite que os Europeus possam
encontrar na vontade de resistir à União Soviética o élan necessário para realizar
a sua unidade na organização do Ocidente, como defende a principal potência
democrática: «Quer se queira, quer não, só os Estados Unidos dão à Europa uma hipótese de realizar o seu velho
sonho de unidade». Porém, a
unificação europeia no quadro das instituições do Plano Marshall não se vai
realizar e o modelo alternativo, cujo artífice principal é Monnet, não entusiasma Aron, que não se revê nem na visão
política de uma Europa unida para separar os dois blocos rivais, nem na
estratégia que visa criar a união política como um resultado da
interdependência económica entre os Estados europeus, nem no desígnio
irrealista de entregar o comando da política europeia a uma burocracia
iluminada, sem poder, nem legitimidade.
A Comunidade
Europeia de Defesa (CED) marca a
separação entre Aron e os europeístas. É partidário do rearmamento da Alemanha,
mas, por um lado, não concebe a formação de forças armadas conjuntas sem a
união política da Europa dos Seis, na ausência da qual serão os Estados Unidos
a comandar o Exército europeu e, por outro lado, não percebe como se pode,
simultaneamente, integrar o Exército francês no Exército comum e manter as
missões de soberania nos territórios ultramarinos, que mobilizam a maior parte
das tropas francesas. A CED é uma péssima alternativa à adesão da República
Federal à NATO e, retrospectivamente, Aron considera que o seu fim marca o
fracasso do projecto de integração comunitária.
Essa
posição excessiva pode justificar a indiferença ostensiva no momento da
assinatura do Tratado de Roma, mas
não explica a defesa reiterada de uma arma nuclear e de uma force de frappe europeias, tão
importantes para garantir a defesa da Europa Ocidental, como para assegurar o
seu estatuto como o «Quarto Grande». No mesmo sentido, defende o
alargamento das Comunidades Europeias à Grã-Bretanha sem ilusões sobre o
europeísmo dos Britânicos, salvo excepção – e, mais tarde, à Grécia, a Portugal
e à Espanha, na sequência das transições post‐autoritárias. Mas isso não o
impede de escrever um ensaio sobre a Europa onde nunca se refere às
instituições comunitárias, senão para afirmar que «a Europa dos Seis ou dos
Nove não constitui uma entidade política e, até onde a vista pode alcançar, não
vai constituir uma entidade política».
Em 1977, reitera a sua análise inicial: «Os Estados Unidos da Europa podiam
ter sido possíveis, mas essa possibilidade desapareceu com a Comunidade
Europeia de Defesa».
Na
mesma altura, numa conferência sobre o sionismo, exprime com frontalidade o que
considera essencial: «Pessoalmente e como intelectual, estava fascinado e
convencido pela ideia europeia. Teria sido uma obra histórica incomparável
criar uma nação composta pelas nações europeias. Para dizer a verdade, nunca
acreditei nisso, embora, em geral, tenha militado a favor. Nunca acreditei
porque sempre tive o sentimento de que o que fazia a especificidade e a
originalidade da Europa era a pluralidade das nacionalidades e das soberanias
estatais. Para criar uma soberania estatal incluindo a diversidade das nações
seria necessária uma ameaça urgente, ou um federador todo‐poderoso.»
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