Jorge de Sena deve ter
sentido na pele, quando viveu no Brasil, antes de atingir a notoriedade, um
certo desprezo pelo povo português, que as telenovelas brasileiras bem demonstravam
– o homem português de bigode e chapéu, a mulher, creio que de xaile e tamancos,
mas tudo isso é passado, não tenho visto telenovelas e por isso não sei o que
por lá se passa agora. O artigo de Osvaldo
Manuel Silvestre, sobre a relação literária de J. de Sena com o Brasil,
revela uma certa contundência de opinião, da parte de Sena, mas preferia que citasse
um ou outro exemplo, para se perceber melhor a mensagem de OMS..
JORGE
DE SENA E O BRASIL
OSVALDO MANUEL SILVESTRE Ensaísta PÚBLICO, 8/11/19
Jorge
de Sena gostava de recordar que o seu primeiro contacto físico com o Brasil
ocorrera na juventude, mais exactamente em 1937-38, na qualidade de primeiro
cadete da Marinha, em viagem de instrução no navio-escola Sagres. Para
alguém sempre tão empenhado na arqueologia dos processos histórico-culturais, o
que o fazia traçar vastos e minuciosos panoramas em que cada camada se
sedimenta sobre a anterior sem quase nunca resolver os conflitos de que se
fazem história e cultura, o episódio juvenil funcionava como uma espécie de
prova de que o contacto de Sena com o Brasil não nascera em 1959, ano em que se
muda, com armas e bagagens, para esse país, mas mais de 20 anos antes.
Ou
seja, a mudança não fora um evento circunstancialmente motivado, havendo pelo
contrário toda uma história pessoal que longamente a preparara ou mesmo
pré-figurara. No texto inacabado que prefacia o volume de Estudos de
Cultura e Literatura Brasileira (1988), Sena evoca o episódio mas faz recuar à
infância a sua ligação literária ao Brasil: “Quando
era criança e já devorava livros, havia em estante de família livros
brasileiros, publicados em Portugal no séc. XIX. Mas um primeiro contacto com a
literatura brasileira, menos romântica e mais moderna, tive-o quando
adolescente cheguei ao Brasil, e nele estive, cadete de Marinha, por escassas
semanas em Santos e S. Paulo”. Nesse
mesmo texto, Sena recorda que nos anos 30 e 40, “a literatura brasileira
moderna, e muito em especial a poesia, teve para os poetas portugueses uma
importância enorme, e poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília
Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Ribeiro Couto, etc. eram a imagem complementar de uma modernidade
que, em Portugal, se manifestara quase só em Pessoa,
Sá-Carneiro e Almada Negreiros, cujas obras, até aos fins dos anos 30
e princípios de 40, eram mais mitológicas e menos acessíveis do que a daqueles
poetas brasileiros”. Esta questão regressará em vários dos textos que Sena
dedicará aos grandes modernistas brasileiros, sobretudo Cecília Meireles e
Manuel Bandeira, sugerindo que a formação dos poetas portugueses da geração de
Sena, numa altura em que Pessoa mal começava a surgir em livro, se ficara a dever
pelo menos em igual grau aos poetas brasileiros modernos (para não falar já dos
romancistas portugueses de 30 e 40, cuja dívida aos romancistas “nordestinos”
seria ainda superior — a ponto de, como numa das suas típicas charges dirá, em
texto sobre Manuel Bandeira, “os camponeses do lusitano Alentejo fala[re]m como
bahianos”). Num acrescento significativo, Sena dirá que os modernistas
brasileiros “foram um exemplo de libertação poética, na nossa própria língua,
de um valor inestimável”.
A viagem de 1937-38 ganha, assim, uma redobrada pertinência, pois coloca
o jovem Sena em S. Paulo e no arco temporal (as décadas de 20 e 30)
emblematicamente aberto pelo movimento modernista brasileiro com a Semana de Arte
Moderna de 1922, na mesma capital paulista. O episódio “brasileiro”
seguinte, na vida e obra de Sena, como o próprio o apresentou, terá sido a edição,
por Cecília Meireles, da (excepcional) antologia Poetas Novos de Portugal,
em 1944, que incluiu poemas do então muito jovem poeta Jorge de Sena, na altura
com apenas o seu livro de estreia, Perseguição (1942), no currículo.
Em texto de 1964, por ocasião da morte de Cecília, Sena confessaria a sua “dívida de gratidão” para com
a antologiadora, poeta que gozara em Portugal de um grande prestígio e
influência, sendo “sempre equiparada a grandes nomes como Pessoa ou Rilke,
quando talvez o Brasil não reconhecesse todo, nela, o grande poeta que tinha”. Esta ressalva é fundamental para percebermos que se
o Brasil, desde o episódio juvenil de 1937-38, permite a Sena a experiência
desdobrada do cosmopolitismo modernista, dentro do mesmo idioma, a verdade é
que as suas portas de entrada nesse modernismo, Cecília e Bandeira, representam
nele uma variante minoritária, ou renitente, não apenas por se tratar dos
chamados “modernistas do Rio de Janeiro”, quando o foco do movimento fora S.
Paulo, mas porque uma e outro resistem ao anti-portuguesismo que define, do
plano da língua ao da literatura e da cultura, o modernismo brasileiro de 22,
basicamente paulista. O tópico, nos seus vários planos, percorrerá toda a
obra de Sena, com particular ênfase após a deslocação para o Brasil. No mais
importante texto que dedicou a Bandeira, “O Manuel Bandeira que eu conheci e
que admiro”, Sena chamará a atenção para que “o caso da língua, há que
analisá-lo do lado português”, uma vez que também os modernistas lusos tiveram
de enfrentar “A tirania do gramatiquismo académico, do pernosticismo da frase,
da rareza do vocábulo, etc.”, pondo assim em causa um dos cavalos de batalha do
modernismo brasileiro.
Os
estudos e ensaios que, a partir de 1963, dedica ao “mundo luso-brasileiro”,
escritos no Brasil ou já nos EUA, exploram todos os problemas e equívocos da
relação luso-brasileira (para a correspondência Sena reservou o desgaste
psicológico, mas também académico, de tudo isso ao longo dos anos). Recorrendo a um repertório histórico, cultural e
literário esmagador, Sena elabora longamente sobre a natureza da relação entre
os dois países e as duas culturas, elegendo uma heurística comparatista pois,
como justifica no final do grande ensaio “Literatura Brasileira Comparada com
as Literaturas da Hispano-América”, “Comparar é o único meio de conhecer
sem correr o risco de acreditar demasiado nos outros e em nós mesmos”. Este
ponto é decisivo e deve ser lido em regime alargado, pois sempre que Sena se
exprime sobre a literatura brasileira fá-lo num quadro comparatista cujo outro
pólo é, à partida, a literatura portuguesa, embora não apenas. Ao fazê-lo, Sena
põe em causa o devir da própria literatura brasileira, que se autonomiza
progressivamente da portuguesa, desde o romantismo, até que, com o modernismo,
a silencia enquanto parceiro de um diálogo declarado extinto. Por outras palavras, para escritores e críticos
brasileiros, a literatura portuguesa passa a ser absorvida pela brasileira “não
como portuguesa, mas como ante-brasileira”, o que significa que a literatura
portuguesa só é pertinente até ao advento da independência do Brasil, em 1822 (Portugal,
dirá Sena, “só interessa até ao ponto em que é pré-história do Brasil”), uma
independência que o romantismo desejaria transpor também para o plano de uma
independência literária, então mais suposta que efectiva. Sena descreve
repetidamente uma situação em que o Brasil funciona em Portugal como um
mito, em articulação estreita com o do “mundo que o português criou”, e
Portugal funciona no Brasil como o colonizador responsável por uma série de
erros
O problema da literatura no Brasil,
dirá Sena, é “o medo que os brasileiros têm de que a sua literatura possa não
ser suficientemente brasileira”, razão pela qual tendem a expulsar a literatura
portuguesa de qualquer tipo de relação com ela, tornando-a, “paradoxalmente,
mais estrangeira do que [as outras literaturas estrangeiras]”. A esta “obsessão da brasilidade” da crítica brasileira, Sena contraporá uma
concepção não-romântica de literatura, já que, a seu ver, o Romantismo foi
inventado “para colocar dificuldades no caminho de um claro entendimento do
carácter internacional da literatura em si mesma”. Como pano de fundo deste
combate crítico, Sena descreve repetidamente uma situação em que o Brasil
funciona em Portugal como um mito, em articulação estreita com o do “mundo que
o português criou”, e Portugal funciona no Brasil como o colonizador responsável
por uma série de erros (a não criação de universidades, por exemplo) e desastres que não terminam porque, como não se
esquece de notar, as classes dirigentes brasileiras desenvolveram desde a
independência uma arte particular, que consiste “em mudar as coisas para que
elas continuem a ser como eram dantes”.
Uma e outra vez, Sena proporá
programas de acção que aproximem os dois países, combatendo, desde a escola, o
mútuo preconceito e desconhecimento. Não
temos qualquer razão para duvidar das suas muitas declarações de amor ao
Brasil, à cultura brasileira e aos brasileiros, ainda que entremeadas de
constatações como “O Brasil é um país muito estranho”, tanto mais que o Brasil
na obra de Sena não se confina à sua abordagem temática ou explícita: a produtividade
de Sena na fase brasileira é assombrosa e percorre todas as áreas do seu
trabalho literário ou ensaístico, neste último caso justificada pela dedicação
exclusiva ao trabalho académico que a universidade brasileira lhe permitiu. Mas
o seu brasilianismo, que se manifesta plena e livremente quando se muda para os
EUA, tanto mais que só aí começa a leccionar literatura brasileira, nunca
abandona um comparatismo que é, em si mesmo, uma crítica ao fundamento
nacionalista da cultura e literatura brasileira, desmistificando-o e
evidenciando todos os nós cegos que ele gera ou deixa para trás, encolhendo os
ombros. Como se Jorge de Sena revivesse in mente a experiência daquele jovem
modernista, português e anglófilo, que em 1937-38 visita a capital em que o modernismo
brasileiro se prepara para proclamar a chegada da Idade de Ouro da literatura
brasileira – para achar que, afinal, algo ali não batia certo.
(Osvaldo
Manuel Silvestre é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Tem dividido o seu trabalho pela área de Teoria da Literatura e Literaturas de
Língua Portuguesa. Dirige actualmente o Instituto de Estudos Brasileiros da sua
Faculdade)
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