Ainda bem que a França está a crescer do ponto de
vista económico. Um bom exemplo para quem o queira e possa seguir. Mais uma
crónica sedutora de Teresa de
Sousa.
Desta
vez, a França cresce e a Alemanha encolhe
Com maior ou menor voluntarismo, Macron
iniciou as reformas de que a França precisava há muito. E o país está prestes a
retomar a dianteira.
TERESA DE SOUSA PÚBLICO, 3 de
Novembro de 2019
1.“A queda da economia alemã persiste enquanto a França
recupera”, escrevia
há poucos dias o Financial Times,
constatando uma realidade a que não estamos muito habituados. O diário
britânico referia os indicadores do trimestre que terminou em Setembro e que
confirmou que a economia da Alemanha encolhia pelo segundo trimestre
consecutivo, enquanto o crescimento da sua congénere francesa
ultrapassava as previsões, crescendo 0,3% no terceiro trimestre. Em termos
globais, a zona euro inicia o quarto trimestre com um crescimento de 0,1%,
aproximando-se da estagnação, apesar dos estímulos renovados por Mario Draghi antes de abandonar a liderança do BCE.
As tensões provocadas pela guerra comercial entre os
EUA e a China, as incertezas do “Brexit”, os problemas da indústria automóvel e
o crescente pessimismo dos agentes económicos são, segundo o FT, as causas deste cenário pouco animador.
Acresce
que todos os apelos a que a Alemanha utilize o seu excedente orçamental
para estimular o investimento e o consumo interno têm caído em saco roto. Berlim continua a recusar fazer o
papel de locomotiva da economia europeia, embrenhada numa profunda discussão
sobre o seu próprio modelo de crescimento que ainda não passa disso – de uma
discussão. A economia alemã, assente nas exportações, sofre o impacte da guerra
comercial entre os dois gigantes económicos e a antecipação da saída do Reino
Unido, que afectará duramente a sua indústria automóvel, já de si em relativo
mau estado.
Na França a história é outra, também facilitada por uma economia muito mais
assente nos serviços e no consumo interno do que nas exportações (31% do PIB),
o que lhe permitiu, por exemplo, atravessar a crise financeira e a Grande
Recessão com quedas bastante mais suaves do PIB em comparação com os seus
principais parceiros europeus. Mas a generalidade dos analistas atribui a
sua melhor performance ao resultado das reformas levadas a cabo por Emmanuel
Macron desde que chegou ao Eliseu há pouco mais de dois anos.
“A França está também a beneficiar das boas políticas
domésticas”, diz ao FT Florian Hense, economista do banco de investimento
Berenberg, sediado em Hamburgo. “As reformas do Presidente Macron a favor do
crescimento estão, aparentemente, a dar os seus frutos.” Vale a pena determo-nos sobre elas e sobre aquilo que
mudou e não mudou em França.
2.Que
reformas foram estas? A reforma das leis
laborais é uma delas. Os contratos sem termo tornaram-se menos
onerosos para os empregadores, reduzindo as indemnizações por despedimento, ao
mesmo tempo que aumentaram os custos dos contratos a prazo para as empresas. Os
impostos sobre os salários mais baixos foram reduzidos para os tornar
mais atractivos. Os subsídios de desemprego são ainda muito generosos,
fazendo com que seja mais compensador recebê-los do que ganhar o último salário
para cerca de 20% dos desempregados. Mas muita coisa já foi feita, ainda por
cima através da concertação entre patrões e os sindicatos. A taxa de
desemprego tem vindo a diminuir, tornando exequível a meta dos 7% que
Macron fixou para o fim do seu mandato. Está agora em andamento a mais difícil
de todas as reformas: a dos pensionistas. Há 42 sistemas distintos, que
o Presidente quer uniformizar, a par com a subida da idade da reforma que mesmo
assim continua a ser das mais baixas da Europa.
Mas
as coisas vão andando e, progressivamente, a França está a tornar-se muito
mais atractiva para o investimento estrangeiro, incluindo das start-ups tecnológicas,
ultrapassando largamente a Alemanha e aproximando-se do Reino Unido. Graças,
dizem os investidores, ao fim do imposto sobre as fortunas (à excepção da
propriedade), a uma taxa única sobre os dividendos e a um processo mais simples
de falência das empresas. Também ajudou bastante a criação de um “visto
tecnológico especial”, que tornou muito mais fácil a “importação” de
talentos vindos da Índia, China, África e mesmo dos EUA. Na primeira metade
de 2019, as start-ups francesas atraíram
um investimento recorde de 2,79 mil milhões de euros, um aumento de 43% em
relação ao ano anterior, ainda atrás do Reino Unido (com 5,3 mil milhões) mas à
frente da Alemanha (com 2,4 mil milhões).
Quando
tomou posse, em Maio de 2017, Emmanuel Macron anunciou que queria fazer da
França “uma nação de unicórnios”. Foram criados 13 desde o início do seu
mandato e o objectivo, diz o seu jovem ministro para a Economia Digital, é
atingir os 25 em 2025, fazendo de Paris “o principal destino tecnológico da
Europa.” Um exemplo ajuda a compreender a mudança.
Há
dois anos, a Symphony, uma empresa de serviços de mensagens seguras (1,4
mil milhões de dólares de valorização bolsista) com sede em Palo Alto, andava à
procura de um local para a sua nova unidade de investigação e desenvolvimento,
dada a falta de engenheiros disponíveis em Silicon Valley. Pensou no Reino
Unido, mas o “Brexit” dissuadiu-a. Considerou Singapura, mas era demasiado
cara. Acabou por escolher a Côte d’Azur, abrindo a sua nova sede num
parque industrial de alta tecnologia próximo de Cannes. Tempo excelente, acesso
a engenheiros altamente qualificados, redução de impostos, mas sobretudo, diz o
chefe da nova divisão francesa, David Gurle, citado pelo FT, um Presidente
que sabe o que quer: “Todos os governos têm um conjunto de medidas para
atrair investimento, mas em França o caminho vai até ao Presidente.”
Outro
factor importante para este renascimento foi a criação, ainda no tempo de
François Hollande, de um banco de investimento público (BPI),
imediatamente criticado por ser mais uma forma de deitar dinheiro sobre os
problemas. Não foi assim. Sem ele, diz o mesmo ministro, “não haveria esta cena
tecnológica a que se assiste, o Estado preencheu uma falta dos mercados, não
havia capital privado” para investir, como existe nos EUA. Macron acaba de
anunciar a criação de um novo fundo público-privado de cinco mil milhões para
ajudar as novas tecnológicas a crescerem em escala. Curiosamente, o que os
empreendedores e os investidores mais sublinham é a mudança de atitude e o “bom
senso” em relação à modernização da economia.
3. Para quê todo este arrazoado sobre a França? Para tentar
demonstrar que não há apenas um modelo de desenvolvimento possível, que a velha
receita para a competitividade – contenção dos salários, impostos baixos sobre
os lucros e o Estado o mais longe possível dos mercados – não é o único caminho
e talvez nem seja o melhor. Há outros factores importantes como a qualidade da
mão-de-obra ou medidas inteligentes que facilitem a transformação das boas
ideias em negócios lucrativos e inovadores. E, naturalmente, a vontade de
reformar sem causar demasiadas rupturas nem entrar totalmente em choque com a
cultura do país.
Macron iniciou as reformas de que a França precisava há muito, que outros
presidentes tentaram, mas que acabaram quase todas por morrer nas ruas. Enfrentou
os gilets jaunes, mas conseguiu dar a volta. Com maior ou menor
voluntarismo, está a conseguir fazer o que anunciou que faria. Antes do
euro, a economia francesa era mais competitiva que a alemã, graças sobretudo a
uma alta produtividade da mão-de-obra. Está prestes a retomar a dianteira. Não há modelos perfeitos. Há sim a capacidade
para resolver bloqueios, atrair talentos, investir na ciência e na inovação e
preencher sem complexos as lacunas dos mercados – que, como a crise de 2008
demonstrou, estão longe de dispensar a intervenção pública e ainda mais longe
de agirem sempre com racionalidade.
A
outra grande lição da crise foi que o crescimento tem de ser mais inclusivo
e que as desigualdades não podem aumentar eternamente. Sob pena de vermos a
explosão de revolta que hoje se manifesta nas ruas de Santiago ou de Beirute.
COMENTÁRIOS
Maria Carlos Oliveira, 03.11.2019 : Referi-me a Macron como filósofo. Se a questão é de
terminologia, remeto para a entrevista, publicada ontem neste jornal, de Daniel
Innerarity, filósofo que há muito leio e estimo.
JonasAlmeida, 03.11.2019: Vale a pena recordar que isto começa com o plano Monet
(a ficha na Wikipédia é bastante completa). Aí se lê como o plano era uma
franco-alemanha em que a Alemanha era o motor da industrialização sob
administração francesa. Onde havia recursos minerais, como em Saarland, a
reunificação pedida em referendo (depois dos aliados se oporem à anexação
administrativa) só acontece em 57, com os últimos restos de administração
francesa a saírem em 81. A entrada na eurozona foi a mesma coisa, imposta pela
França como condição da reunificação a leste (Der Spiegel "Was the
Deutsche Mark Sacrificed for Reunification?"). Desde então a França
permanece isenta de regras que ela própria impõe, como explicou famosamente
Junker em "parece que c'est la France". Não acredito que a Alemanha
ature indefinidamente
TM, 03.11.2019: LOL Jonas! O Halloween nos US fez-lhe mal só pode! Para
quê essas histórias inventadas e teorias de conspiração? O texto da Teresa
de Sousa é bem informativo: a diferença de crescimento tem a ver com a
estrutura económica das duas economias. A Alemanha é muito mais aberta ao comércio
internacional, logo mais afectada pela crise comercial. A Franca não! Além
disso a França tem tomado medidas e reformas que promovem o crescimento
económico e ainda bem! Só uma pessoa pirómana como o Jonas pode ver algum plano
maléfico no Macron!
Maria Carlos Oliveira, 03.11.2019 16: É uma boa notícia para a França e para a Europa. É bom
ver um filósofo abrir, mais uma vez, uma porta, mostrando que é possível
construir outros caminhos.
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