Um texto simples e bom – de Pedro
Machado, “Praga e os bons exemplos a
seguir” - sem preciosismos e apenas directo no
paralelo entre duas cidades, no propósito enriquecedor de aprendermos com os
outros, mais trabalhadores, talvez, do que nós - cuja calçada empedrada e mal
cuidada faz partir muitos ossos, hélas! - para além de outras facetas desses, que
apontam directamente para estímulos educativos que por aqui tanto falham.
OPINIÃO: Praga e os bons exemplos a
seguir
Se fizermos uma comparação com a cidade
de Lisboa existem alguns aspectos em Praga que revelam um funcionamento
incomparavelmente melhor de alguns serviços e instituições.
PEDRO MACHADO
PÚBLICO, 28 de Novembro de 2019
Em
2001, alguns dos
meus colegas de faculdade pensaram em fazer a viagem de finalistas à República
Dominicana. A opção não se afigurava muito satisfatória para mim e para outro
amigo e decidimos ir para outra República, a Checa, da qual tínhamos ouvido
falar muito bem mas não sabíamos propriamente o que iríamos encontrar pela
frente. Chegámos a Praga em Abril desse ano. De repente
um novo mundo se revelou diante dos nossos olhos. Umas vezes chovia e outras
ainda nevava, mas fazia sempre muito frio. A arquitectura era bastante
diferente da nossa, sobretudo com a quantidade interminável de edifícios Art
Nouveau e Art Déco e toda a atmosfera medieval que resultava do
labirinto de ruas sinuosas do centro histórico e das torres góticas que
pontuavam pela cidade. Deambulávamos incessantemente pela ponte
Carlos entre Malá Strana e Staré Město. Com frequência, músicos talentosos tocavam na rua
música clássica ou música jazz. A gastronomia, praticamente desprovida de
peixe, não seria nada de nos fazer invejar mas ainda assim tinham uma série de
sabores novos que nos eram dados a conhecer: o famoso goulash, as sopas
bem mais condimentadas, o nakládaný hermelín - o queijo do tipo camembert servido
com pimentos e cebola, os chlebíčky, as versões locais de canapés, o medovnik,
o delicioso bolo de mel e nozes e ainda o vepřové koleno, o saboroso
joelho de porco assado servido com mostarda e rábano ralado, tudo isto regado
com cerveja de óptima qualidade sempre servida em doses de meio litro. A língua,
à altura praticamente incompreensível mas também intrigante e fascinante,
tornou-se numa espécie de desafio pessoal. As pessoas deste país da Europa
Central tinham obviamente um aspecto bastante diferente de nós e isso acentuou
ainda mais o exotismo de toda a experiência.
O meu amigo acabou por ir viver para lá e aí constituiu família. Para
mim, Praga tornou-se a partir desse momento um destino frequente, em 2004 vivi
lá por um período de 5 meses, e voltei com bastante frequência. Por isso o que
vos vou descrever a seguir resulta de uma observação repetida ao longo dos
últimos 18 anos distribuída por diferentes épocas do ano.
Se
fizermos uma comparação com a cidade de Lisboa existem alguns aspectos em
Praga que revelam um funcionamento incomparavelmente melhor de alguns serviços
e instituições.
O
pavimento que é cada vez mais em calçada e também com padrões artísticos,
apresenta um óptimo estado de conservação, é raro encontrar buracos, pedras
soltas, altos ou depressões como se vê frequentemente por aqui, mesmo o
pavimento que bordeja as caldeiras das árvores encontra-se em boas condições.
Ao contrário de Lisboa, em Praga aposta-se na substituição do cimento e
alcatrão por calçada, que eles consideram ser mais bonita e que mantém alguma
permeabilidade dos solos.
Falando sobre pavimentos permitam-me referir uma situação pessoal que considero
elucidativa - no dia 13 de Fevereiro de 2019 fiz uma participação à CML a
alertar para o mau estado da via na travessia de peões entre a Rua Augusta e
o Rossio, as pedras estavam desalinhadas e nos dias de chuva formavam-se largas
poças de água; fui notificado sobre a recepção e encaminhamento da reclamação
mas a situação permanece inalterada passados 9 meses, ou seja, não só não se
faz uma manutenção activa e regular da via pública (veja-se por exemplo o
estado lastimável da Rua das Escolas Gerais e Rua dos Cavaleiros) como parece
não existir capacidade de se responder em tempo razoável às justas reclamações
dos munícipes.
O sistema de transportes em Praga, sob
gestão integralmente pública, é de altíssima qualidade. Nunca presenciei uma única avaria do
metropolitano, nem atrasos, e a frequência, mesmo a programada, é bastante
superior à de Lisboa, em algumas linhas e em determinados horários chegam a ter
20 comboios por hora.
À
superfície, a cidade é servida por mais de 20 linhas de eléctrico e por linhas
de autocarro complementares. Além disso, a rede de eléctricos funciona durante
toda a madrugada, de forma muito abrangente. Mesmo as paragens intermédias têm
inscrito em papel os tempos exactos de passagem. Não só a frequência é muito
elevada como a pontualidade é quase irrepreensível, dois indicadores que em
Lisboa deixam muito a desejar.
Praga
está atafulhada de turistas e é por vezes difícil circular em algumas ruas
mesmo que exclusivamente pedonais. Também existem carteiristas, infelizmente, o
que é muito pouco provável é que seja abordado e importunado no meio da rua
para me venderem estupefacientes, falsos ou não.
É
muito raro encontrar lixo acumulado nas ruas como infelizmente acontece amiúde
em Lisboa.
Ao
contrário do que acontece na nossa capital, os prédios devolutos e notoriamente
em estado de abandono e degradação são em Praga uma raríssima excepção e não
algo que se vê em abundância como na Baixa de Lisboa, ainda que nos últimos
anos tenham sido aí recuperados, a acreditar nas fachadas, um número
significativo de edifícios.
Por
último é com agrado que vejo que em Praga souberam conservar as suas tabernas
históricas - parte importante da sua cultura onde a produção e consumo de
cerveja ocupa lugar relevante - praticamente iguais ao que eram há várias décadas, das quais são exemplos U Zlateho Tygra, U
Hrocha ou U Jelinku. Sobre U Zlateho Tygra conta-se
aliás uma história curiosa, que no tempo entre guerras ali se terá sentado o
primeiro-ministro de França, Herriot, de forma completamente incógnita e ali
terá comido um pescoço de porco enquanto convivia com os demais clientes da
taberna, algo impensável nos nossos dias. Em Lisboa infelizmente, temos
vindo a perder todas as tabernas uma a uma e a trocá-las por wine bars,
tapas, gin, hamburguerias e kebabs.
Praga
também tem as suas chagas, claro, o centro está pejado de lojas de souvenirs muito
acima do que seria necessário ou sequer razoável, existem muitas casas de câmbio
que praticam taxas exacerbadas e os subúrbios são na sua maioria feios e
demasiado uniformes.
E é tudo mau na gestão de Lisboa?
Certamente que não e nem todos os problemas dependem da administração local. A
ampliação de espaços pedonais, a criação de ciclovias e
sistema de bicicletas partilhadas e a requalificação de alguns espaços públicos
(veja-se o excelente restauro do miradouro de Santa Luzia) contam-se entre
alguns passos muito positivos dos últimos anos, mas a comparação com outras
cidades mostra-nos que ainda há muito caminho a percorrer.
Certamente
que há diferenças de base nas duas cidades que justificam uma maior dificuldade
da cidade de Lisboa em ultrapassar alguns problemas. Por exemplo grande parte
da rede de eléctrico em Praga funciona em via segregada, algo difícil de
implementar na malha urbana mais antiga de Lisboa, mas já a regulação do
tráfego é algo em que se pode intervir e tem consequências directas sobre a
fluidez do transporte público. A esse propósito convém lembrar o
gigantesco investimento de recursos na sub-urbanização da área metropolitana
quando o centro de Lisboa literalmente apodrecia dando origem a um movimento
pendular diário de 400 mil viaturas entre Lisboa e as periferias, ou seja, uma
política de ocupação mais racional do território e um maior investimento em transportes
públicos poderiam ter minorado bastante esta tragédia permanente.
O
Presidente da República gosta de dizer que somos tão bons como os melhores do
mundo, algo que se pode interpretar benevolamente como um estímulo a uma maior
auto-estima e capacidade de superação. Lamentavelmente existem ainda muitos
domínios em que essas virtudes não se manifestam.
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