quinta-feira, 30 de novembro de 2023

A modéstia é uma virtude preciosa

 

Como bem demonstra esse paralelismo zoológico dos tais amadores. Mas suponho que o sentimento dos detentores de tanto afecto fica, nessa sua irmanação, reduzido às parcerias mais próximas dos seus habitats: ao cão, ao gato, ao periquito da gaiola, não há que protestar, julgo eu, quando muito, admitindo também a tartarugazinha do quintal. Os cemitérios para os paquidermes ou os répteis e mais familiares, ainda virão longe, até por falta de verba do financiador – estrangeiro - refractário.

Mas estranha-se o tema, nesta época em que tantos cadáveres humanos não têm direito ao seu reconhecimento em cemitério…

Só mesmo o atraso mental pode enveredar por tais caminhos tão pecos e aparvoados, que de facto nos envergonham, no rasto do pensamento rígido e excelentemente reproduzido por Margarida Bentes Penedo. Não, não dá para rir, a notícia. Merece antes, varapau.

Ao nível dos animais

A ideia de “família multiespécie” é uma corrupção da ordem dos valores e dos princípios. O PS não se importa de explorar este filão. É uma gente que está disposta a tudo em troca de votos.

MARGARIDA BENTES PENEDO Arquitecta e deputada municipal

OBSERVADOR, 30 nov. 2023, 00:1833

A Assembleia Municipal de Lisboa (AML) discutiu uma Recomendação “Pela construção de um cemitério público para animais de companhia”. A parte dos argumentos era um pastel de idiotias esforçadamente “históricas” e “filosóficas”, da tradição portuguesa do sentimentalismo insofrível, cuja construção assentava afinal num único parágrafo: «Os animais de companhia são cada vez mais vistos como verdadeiros membros da família, razão pela qual se começa a falar em “famílias multiespécie”. Efectivamente, na actualidade, os animais são cada vez mais tratados com atenção e cuidados; e os seus donos muitas vezes vêem-nos e tratam-nos [sic] como se fossem membros da família, acabando por referir-se a eles com expressões demonstrativas de que estes animais são cada vez mais equiparados aos humanos». Com base nisto se cometeram duas páginas A4 de considerações escritas mais a respectiva deliberação, que não pedia mais do que o título (o tal cemitério). Quem apresentou o documento? Quem tomou esta iniciativa e a defendeu assim? Não, não foi o PAN, foi o Partido Socialista. É um documento oficial, discutido no passado dia 7 de Novembro, e está disponível online no site da AML: Recomendação nº 092/01 (PS). Não trago aqui opiniões apanhadas com um camaroeiro em posts no Facebook (parece que trago, mas não trago). São documentos públicos, oficiais, e assuntos oficialmente discutidos por deputados eleitos, num órgão oficial de representantes dos eleitores.

Tratemos deste. A parte deliberativa parece bem, e foi aprovada. Por unanimidade ou por uma larguíssima maioria (confesso a indecisão da memória). Faz sentido, assim haja terrenos disponíveis, pensar-se num cemitério destinado aos animais para que as pessoas, caso queiram, possam ter um sítio onde sabem que fica o seu animal de estimação. E pronto, começou e acaba aqui a parte respeitável do debate. Nos argumentos, o PS fala em “famílias multiespécie”: humanos e animais, tudo na mesma família. Diz isto para tirar votos ao PAN. Uma conversa inaceitável. Hoje as “famílias multiespécie” aparecem na fundamentação de um documento, amanhã estão na parte deliberativa. E depois apresenta-se um cavalheiro a requerer que o deixem casar-se com um caniche. Ou a exigir um abono de família por adoptar um caniche, com licença de parto. E que lhe atribuam benefícios fiscais, para descontar nos impostos, como as famílias descontam com base no número de filhos. Agregado familiar? Um animador cultural e quatro dependentes, constituídos por um poodle, uma gata siamesa, e um casal de rafeiras alentejanas lésbicas. Todos inscritos na Unidade de Saúde Familiar de Campo de Ourique.

Parece exagero? Definitivamente, não é. Quando vemos o SNS a desfazer-se, as pessoas a morrer sem atendimento, urgências e blocos de parto a fechar; morrem bebés, morrem mães, morrem pessoas à espera de consultas e cirurgias; o PAN põe cartazes na rua a exigir hospitais públicos veterinários. De resto, nem se percebe a segregação. Bastaria acrescentar departamentos veterinários aos hospitais públicos existentes; e nacionalizar as clínicas veterinárias da cidade e do país, posto o que se poderia enviar para essas “estruturas” os quase dois milhões de portugueses que não têm médico de família. Já que aqui chegámos, desta vez pela mão do PS, mais vale mergulhar no progresso e resolver um problema de saúde nacional. Há quem leve estas idiotias a sério.

O ponto é que isto não é sério. Quando se tenta equivaler (ou “equiparar”, como diz o PS) os homens aos animais, os animais não sobem na civilização. E não passam a ser racionais. A única maneira de os pôr no mesmo plano é descer a expectativa intelectual até os homens perderem a racionalidade. A cretinice da “família multiespécie” é uma ideia que tem origem no sentimentalismo, e o sentimentalismo é, nos dias que correm, o primeiro recurso da sedução política. O PS sabe disso. E domina-o como nenhum outro partido; usa o sentimentalismo e instrumentaliza a solidão das pessoas. Não podemos, de maneira nenhuma, colaborar e ser cúmplices da manobra. O sentimentalismo é um vício detestável. Quando ouço dizer que “precisamos de mais sentimento na política” fico logo arrepiada. Não, não precisamos de mais, precisamos de menos sentimento. Precisamos de mais raciocínio, mais inteligência, mais reflexão, e mais capacidade para compreender e respeitar o país. Porque a ideia de “família multiespécie” é uma corrupção da ordem dos valores e dos princípios. O PS está disponível para explorar este filão. É uma gente que está disposta a tudo em troca de votos.

FAMÍLIA    LIFESTYLE    PAÍS    POLÍTICA    PS    SOCIEDADE 

 COMENTÁRIOS (de 33)

João Amorim: A Margarida Bentes Penedo é uma brilhante escritora e uma das pessoas mais lúcidas de entre as que escrevem no espaço público. Chama-nos a atenção para a bizarra Assembleia Municipal de Lisboa, que é um laboratório do que aí vem. Há que travar esta gente.               Glorioso SLB: Os comentários finais são brilhantes. Quem me impede a mim, de ter um filho c a minha filha (maior), dps eu mudar de sexo para mulher, e assim passaria a ser pai, avô, mãe e avó, tudo ao msm tempo. E dps adoptar um Husky e pedir abonos. Qual era o mal? Começamos a ter de explicar as patetices mais esdrúxulas.                Lourenço de Almeida: Mas é que nem um cemitério para animais faz sentido se for pago com dinheiros públicos. Parte das pessoas que vai pagar através dos impostos comeria alegremente esses animais mortos em croquetes ou esparguete à bolonhesa, churrasco, grelhados ou em cabidela, conforme estejamos a falar de cidadãos de origem asiática, africana, europeia ou simplesmente esfomeados, dependendo se os animais são cães, gatos, aves ou algum tipo de gado! Não estamos a falar de animais mas sim do corpo dos animais mortos que não servindo para alimentação de pessoas, poderia pelo menos servir para adubo ou comida para animais! Só falta que no dia 1 de Novembro haja romarias aos cemitérios de animais onde idiotas com mais de 60 anos irão visitar campas de cães que viveram 10 a 15 anos há 40 ou 50 anos atrás! Os animais não são pessoas, ponto final! Mas para os que acham que o são, pelo menos não são contribuintes e por isso, os donos que lhes paguem os vícios, ou não tardará vamos estar a pagar pensões de invalidez e reformas aos animais!                   Meio Vazio: Tenham medo; tenham mesmo muito medo!                   José Tomás: Esta colunista é sempre excelente, mas neste artigo superou-se, e encarnou o saudoso VPV.                    José B. Dias > João Floriano: Num mundo onde homens menstruam e engravidam e mulheres têm bolas entre as pernas, onde basta ser-se branco para por definição se ser racista, onde a igualdade passa por beneficiar uns em prejuízo de outros que deles diferem em factores que nenhum deles controla, onde um homem compete em competições femininas por se sentir mulher - curioso o facto de a inversa ser muito pouco ou nada vista, mas se calhar mulher que se sinta homem não gosta de desporto ... - onde a História é revista a cada dia ao sabor da indignação ou da micro-agressão do momento, onde a Ciência passou a ser Religião e em consequência dogmática e não passível de evolução ... qual é mesmo a parte da "família multi-espécie que lhe está a fazer confusão?                  João Floriano: «Família multiespécie»????? Devo rir ou devo chorar?

 

Na morte de uma figura importante


E duradoura. Precisão de dados para revisão de factos, por nós passados na distracção das próprias vivências. Grata aos autores dos textos.

I - «Henry Kissinger, controverso e influente ex-chefe da diplomacia dos Estados Unidos

Ex-secretário de Estado norte-americano, elogiado pelo descongelamento do diálogo diplomático com Pequim e Moscovo, e condenado pelo apoio a ditaduras e golpes militares, morreu aos 100 anos.

PEDRO GUERREIRO

PÚBLICO, 30 de Novembro de 2023, 2:09

Henry Kissinger, obreiro do estabelecimento de relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a China e do descongelamento do diálogo com a União Soviética, mas também responsável pelo apoio tácito de Washington a vários golpes de Estado, sobretudo na América Latina, morreu esta quarta-feira, aos 100 anos, na sua casa no estado norte-americano do Connecticut, anunciou a sua empresa de consultoria geopolítica Kissinger Associates. Decano da diplomacia norte-americana e controverso Prémio Nobel da Paz pelo seu papel no Vietname, manteve-se como um dos mais influentes conselheiros de elites políticas e económicas internacionais. (…)

II- Henry Kissinger: o pensamento movediço de um homem frio

27 mai. 2023, 11:0715

CARLOS MARIA BOBONE: Texto

OBSERVADOR, 30/11/23

Atropelou alguns aliados, deixou cair outros, por vezes sem escrúpulos. Tudo por uma forma alargada de ver a política. No centenário do homem-solução, lembramos a filosofia que ajudou a mudar o mundo.

É difícil não nos deixarmos fascinar por Henry Kissinger. Um daqueles fascínios culpados e magnéticos por esta estranha figura com uma frieza que não quadra com uma ambição burlesca de tão óbvia, com um escopo intelectual larguíssimo, mas vulnerável às maiores mundanidades, sempre à procura de uma solução original, tão próximo do desastre e do grande êxito.

Kissinger (nascido a 27 de maio de 1923 em Fürth, na Alemanha) é um filho da segunda guerra, mais um dos judeus alemães que atravessaram o Atlântico para escaparem à perseguição nazi e encontraram nos Estados Unidos um mundo que os absorveu e os engrandeceu como nunca na Europa poderia acontecer. Kissinger, que não era propriamente um herdeiro magnata, entrou na América nos tempos de liceu, passou da escola à tropa e da tropa, num daqueles encontros fortuitos que abrilhantam o sonho americano, ao mundo académico. Aos vinte e poucos anos entregava em Harvard uma tese monumental sobre o significado da História, seguido daquela que se tornou a sua primeira obra publicada, cheia de pistas para o seu pensamento que só passados estes anos podem ser verdadeiramente percebidas: Um mundo reconstruído: Metternich, Castlereagh e os problemas da paz (1957).

Kissinger podia ser mais um académico erudito, mesmo que Harvard facilitasse a sua integração nos programas de governo. Não escasseiam os teóricos das relações internacionais discretos que tiveram passagens pelo governo americano, quer em serviços de consultoria, quer em organismos mais permanentes; Kissinger, no entanto, não só procura sempre alargar o a influência e o poder dos seus projectos – é o caso do OCB, que Kissinger transformou, de um órgão marginal dentro do Conselho Nacional de Segurança, numa organização até problemática de tão influente – como deixa transparecer uma vontade de se dar com gente influente e um inegável fascínio pelo poder. Os seus anos como director do Seminário Internacional de Harvard mostram isso mesmo: um Kissinger diplomata, sempre à procura de alargar a sua influência, de um modo que o tornará, anos depois, tão polémico quanto essencial para Nixon.

 Com os presidentes Richard Nixon, Gerald Ford e Barack Obama GETTY IMAGES

A entrada de Kissinger na vida política partidária dá-se pela mão de Nelson Rockefeller, o republicano moderado que governou Nova Iorque e chegou a vice-presidente dos EUA durante a presidência de Ford. Kissinger trabalhava já há uns anos para o Rockefeller Brothers Fund, pelo que quando Nelson Rockefeller decide candidatar-se à primárias republicanas – coisa que aconteceu várias vezes – Kissinger é um conselheiro natural. Esta aliança com Rockefeller experimentá-lo-á dentro das estruturas do GOP e abrirá o caminho para a sua entrada no governo de Nixon.

Muito se tem escrito, já, sobre a relação entre Nixon e Kissinger. O americano típico e o cidadão do mundo, o básico e o cínico, o directo e o oblíquo, o cultivado e sofisticado professor de Harvard, conselheiro do bem-pensante Nelson Rockefeller, junto do obstinado, insensato e provinciano Nixon. Que seria a prova da ambição de Kissinger, da sua falta de escrúpulos, até de uma hipocrisia que se manifestaria nos círculos intelectuais, em que Nixon seria um dos alvos preferidos de chacota de Kissinger. A verdade é que Kissinger encontrou em Nixon um presidente que lhe deu um poder que poucos Secretários de Estado tiveram na história. Antes do Watergate, Kissinger sai do governo como o arquitecto da aproximação à China, do pouco duradouro cessar-fogo no Vietname, da contenção da ameaça comunista em boa parte da América do Sul, entre tantas outras coisas. Todas elas serão certamente controversas, mas uma coisa é certa: para todos os problemas, Kissinger é capaz de encontrar soluções criativas (mesmo que muitas vezes desastrosas) e de as enquadrar num quadro estratégico mais vasto, que dota a sua política externa de um cunho indubitavelmente pessoal. Poucas vezes a política externa americana foi tanto de um secretário de Estado como a de Nixon foi de Kissinger.

É preciso conter a União Soviética? Kissinger volta à sua tese do equilíbrio de poder e reforça a China, numa jogada indirecta que recria o tabuleiro europeu saído de Viena. É preciso conter a expansão do comunismo em África? Reforçam-se os laços com a Rodésia, mesmo que moralmente a América repudie Ian Smith. É verdade que Kissinger atropela uns aliados – como no caso do Vietname e deixa cair outroscomo no caso português, que serviria como a famosa “vacina” anti-comunista capaz de proteger o sul da Europa – sem grandes escrúpulos e com uma frieza quase amoral; no entanto, também é verdade que todas as suas práticas podem ser reconduzidas a um modo mais alargado de pensar o mundo e Kissinger foi, como poucos, capaz de explicar esse modo de pensar o mundo.

É por isso que, embora a intervenção política de Kissinger não possa de maneira nenhuma ser ignorada, nos interessa sobretudo explorar o seu pensamento. Mais: embora a acção de Kissinger se vá formando com a prática e seja sempre reconduzível a um grande quadro de pensamento, está também refém de alguns óbvios defeitos de personalidade que conduziram a desastres quer de imagem – como na famosa entrevista a Oriana Fallaci quer bélicos, como no caso do Camboja, em que a sua subserviência ficou também à vista.

O pensamento de Kissinger tem uma coerência e uma grandeza em certa medida inesperada. Os equilíbrios de poder que estudou no princípio da sua carreira estarão presentes no modo como encara a guerra fria e em toda a sua teoria das relações internacionais. A ideia de que a Europa de Metternich consegue a paz através, não de uma irmandade ideológica ou de um domínio de uma ideia sobre outras, mas da coexistência baseada na consciência de que nenhum poder teria forças para se sobrepor a todos os outros, tem uma óbvia ressonância quer na ideia de que é possível manter uma guerra fria com a sua política de détente, quer na ideia de que é necessário acrescentar um poder à equação – no caso, a China – para evitar um conflito aberto.

 AS viagens de Kissinger: com Pinochet; a entrar num avião da TAP; com Mao Tsé Tung; e num encontro com Vladimir Putin

O que é interessante, porém, é que esta ideia do equilíbrio de poder choca, na perspectiva do próprio Kissinger, se não com a política externa americana desse Monroe, pelo menos desde Wilson. A legitimidade da acção externa americana está tradicionalmente escorada, não numa qualquer diuturnidade de poder, não num poder fáctico – aquele poder que existe e que é entendido como tal, não importa se é justo ou não – mas numa ideia de liberdade como um valor que deve ser garantido e que não pode ser ameaçado nos Estados Unidos.

Ora, um dos pontos mais interessantes do seu livro Diplomacia (1994) está no modo como Kissinger consegue mostrar que esta ideia pode ser torcida de maneiras suficientes a ponto de significar tudo e o seu contrário. Podemos usar a doutrina Monroe para explicar que os Estados Unidos são sempre pela paz de tal modo que adoptam uma política não-intervencionista radical, recusando a ideia da guerra como um mal necessário, mas também a podemos usar para mostrar que um cerco anti-liberdade é um perigo para a liberdade dos Estados Unidos, levando assim o exército americano a intervir em conflitos em que é a liberdade que está em jogo. O esvaziamento da doutrina Monroe e a sua substituição por uma ideia de Realpolitik que acaba, ainda assim, por funcionar como uma justificação para a manutenção da paz, para se evitar uma guerra aberta ou um conflito total entre potências é, assim, um dos grandes feitos ideológicos de Kissinger.

É preciso dizer, no entanto, que esta sua ideia traz também alguns problemas na própria concepção da geoestratégia mundial. O insucesso diplomático de Kissinger em África vem, em grande parte, da subestimação do papel ideológico na condução das nações. O equilíbrio de poder só é possível dentro de um quadro muito específico em que as soberanias não estão associadas a uma ideia de justiça particular. Isto é, o poder francês do século XVIII não vê como ilegítima, de todo em todo, a soberania do sacro-império: entende-a como um modo da mesma ideia de soberania. O problema das ideologias do século XX é que empurram os países para os seus blocos ideológicos, que são vistos como a configuração do próprio interesse do país. É possível procurar, como Kissinger fez em África, proteger uns líderes em detrimento de outros, para os arregimentar para um bloco de poder; no entanto, a partir do momento em que a legitimidade está associada a um modo de governar, não é possível criar qualquer tipo de independência entre poderes. A realpolitik de Kissinger transformou-se também ela, assim, numa política de confrontos ideológicos em que o que está em causa não é apenas o crescimento de um poder acima dos outros, mas o modo como esse poder se exerce. Por se reconhecer que uma Angola comunista se associará irremediavelmente à URSS, reconhece-se que a questão do modo de governo de Angola é ideológica. A política de Kissinger contribui assim, de um modo complexo, para a negação, pelo menos parcial, dos seus pressupostos.

Há outro aspecto, contudo, em que a política de Kissinger apresenta problemas claros de eficácia. Como Kissinger vê a política como uma questão de poder, o foco da sua acção passa sempre (pelo menos de um ponto de vista teórico) por um entendimento estatal da política. Trata-se de um caso clássico de um autor de um ramo científico que, pelo peso que dá à sua área, acaba por não considerar suficientemente o papel de outras áreas dentro da sua. A sua ideia de legitimidade, que é a base para o seu modo de entender a política externa, parte também ela de um reconhecimento externo. O poder é o poder reconhecido como tal. Esta ideia, no entanto, apenas considera a legitimidade de um ponto de vista externo. É possível que uma nação não se possa arrogar em defensora de uma ideia de justiça universal, de tal modo que se julgue no direito de alterar a ordem política de qualquer país. No entanto, este cepticismo aparentemente sensato só considera o lado externo da legitimidade. A ideia de que um país não pode, nas suas relações externas, depender de uma ideia de justiça no trato com outros choca com a evidência de que um país não existe apenas para fora, de que a sua legitimidade não existe apenas no plano externo.

 A geopolítica não trata apenas de relações entre governos, mas de relações entre países. Ora, em relação a isso, a mundividência de Kissinger sempre pareceu cega BETTMANN ARCHIVE

A tomada do poder pelo comunismo, num país, não é apenas uma matéria de equilíbrio de poder num quadro geopolítico em que se olha apenas para fronteiras. O facto de um governo ter a sua legitimidade interna minada tem também importância geopolítica e é um factor a ter em conta até dentro de uma lógica de equilíbrio de poder. Não é possível aceitar a legitimidade de um bloco por razões geográficas quando esse bloco é perturbado por pressões internas que contestam a própria formação do bloco.

É certo que Kissinger é um diplomata e que olha para as relações entre governos a partir de fora. No entanto, o ponto é exactamente esse: a geopolítica não trata apenas de relações entre governos, mas de relações entre países. Ora, em relação a isso, a mundividência de Kissinger sempre pareceu cega.

É sempre extraordinário ler Kissinger. Das suas teses sobre as guerras nucleares localizadas aos grandes panoramas de história diplomática, tudo está explicado com uma clareza e com uma lucidez quase gloriosas. Nunca se perde de vista uma grande ideia, uma concepção unificada da história que alarga todas as ideias de Kissinger e todos os factos enunciados. Ainda assim, e mesmo que ignoremos os escândalos e os desastres, a aparente indiferença com que se joga com os destinos do mundo e se sacrifica uma ordem pacientemente construída em troca de uma ideia brilhante, todo este brilhantismo parece sempre construído sobre areias movediças, como se nos pudesse levar, através de ideias justas e sensatas, até crimes impensáveis.

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COMENTÁRIOS (15):

José Alves: Penso que Henry Kissinger foi e é sobrestimado na sua competência e nas suas capacidades intelectuais. Dou dois exemplos, as negociações com o Vietname do Norte em Paris e que levaram a um acordo que permitiu e originou o desastre da queda do Vietname do Sul e o cinismo das suas declarações sobre Portugal no verão quente declarando que caso caíssemos nas mãos dos comunistas seríamos “a vacina da Europa”. Na minha opinião há pessoas totalmente inteligentes e há pessoas inteligentes mas que se enredam e tropeçam no seu brilhantismo, penso que Kissinger é mais do segundo tipo. Cumprimentos.               José Tomás 29/05/2023: Se os inimigos das democracias ocidentais pudessem substanciar todos os preconceitos contra o capitalismo, o liberalismo e os EUA numa só pessoa, escolheriam um cínico, bem-vestido, com um cavernoso sotaque bávaro e a face de um vilão de Hergé (pré-1944). Mais do que a obra, a política ou a longevidade, diria que o que explica a "perpetuidade" de Kissinger é a sua imagem. É ser o ícone do "mau da fita" do capitalismo global e do imperialismo americano, "para além do bem e do mal" - ou seja, ser (graficamente) o anti-Che.                      Manuel Gonçalves: 27/05/2023: Há um excesso de cinismo em Kissinger.               Nuno Borges > Manuel Gonçalves 27/05/2023: Há um excesso de cinismo em toda a humanidade. O bom selvagem nunca existiu, é uma construção da esquerda.                  Nuno Borges 27/05/2023: Para sobreviver ao inevitável assalto chinês, Moscovo tem de anexar toda a Europa. E a Europa só sobreviverá enquanto puder defender-se militarmente. O ideal seria sempre uma aliança da Europa com a China que permitisse destruir a  Moscovia e dividir a Rússia pelos Urais, com o ocidente para a Europa e o oriente para a China. Julgo que depois de ter falhado o approach de Merkel, a guerra será inevitável. Moscovo não se ficará pela Ucraina e o ataque é a melhor defesa.                       Nuno Filipe, 27/05/2023: Um dos que lixou Portugal com F Maiúsculo…. somos aliados dos EUA mas só para o que convém…se tivermos de lixar Portugal para ter acesso a  minérios/hidrocarbonetos mais baratos… So be it.  os americanos não têm aliados/amigos. Os americanos têm clientes.  Disclaimer: eu tb tenho bastantes produtos americanos. Não sou antiamericano primário. Gosto é de chamar as coisas pelos nomes pq não sou woke.                     Henrique Frazão > Nuno Filipe 27/05/2023: Foi de facto um dos que lixou Portugal mas para todos os efeitos a trupe da tropa que se dizia mal paga é que acabou o serviço no tal dia 25.                   Nuno Borges > Nuno Filipe 27/05/2023: Lixaram-nos porque impediram a sovietização de Portugal. É isso que você quer dizer. Acalme-se que o Putin está aí pronto para chegar a Lisboa e conta consigo.                 Nuno Filipe > Nuno Borges 27/05/2023: Não deve ter lido “Disclaimer: eu tb tenho bastantes produtos americanos. Não sou antiamericano primário.”, só para acrescentar que eu até comprei a edição portuguesa do Diplomacia. Defender os interesses nacionais em deferimento dos interesses americanos não faz de mim comuna. Aliás primário como sou (e não woke) até lhe vou repetir uma frase que hoje em dia é ainda mais mal interpretada do que antes do “rising” dos wokes, aqui fica “antes p_ne leiro que comuna”. Portanto quem não se sente não é filho de boa gente e como tal eu “ofendi-me” por me chamar comuna. Pessoalmente é um insulto. Cumprimentos                  Nuno Borges > Nuno Filipe 28/05/2023: Quem lixou Portugal foram os portugueses, todos os que contribuíram para entregar o ouro ao inimigo. E especialmente os golpistas de 1974.                  Nuno FilipeNuno > Borges 28/05/2023:Ah!, talvez possamos concordar em alguma coisa. Mude o tempo do verbo de foram para são e quase de certeza que tem o meu voto. Um (antes de cair da cadeira) queria uma fatherland mas não soube “vender” a ideia pq teria necessariamente de fazer crescer o elevador social para todos (independentemente da melanoma) e depois iam contestá-lo. Mas os que vieram a seguir às flores nas espingardas na grande maioria só querem é encher os bolsos e lixar os outros. Desde 74 a diferença entre esquerda e direita é a mão com que roubam aka “cargos para amigos vs privatizações para amigos”                       Nuno Borges > Nuno Filipe 28/05/2023: não quis ser acintoso, claro que são e o socialismo adoptou a politica de deixar emigrar os melhores e importar incapazes para se manter no poder, movimentos de massas requerem sempre planeamento e intenção                      Nuno Borges 27/05/2023: On China explica o que se passou e o que se vai passar nas relações com os seus vizinhos, mormente com a URSS. A China pretende dominar tudo debaixo do céu.               Vitor Batista > Nuno Borges 27/05/2023: A China pretende, mas não é liquido que o consiga, porque tem posições muito ambíguas.                 Nuno Borges > Vitor Batista 27/05/2023: A ideologia não conta para nada, só o poder militar. Já estamos em plena guerra dos mundos.

 

O filósofo é que tinha razão

 

Já previa, filósofo que era, que os porcos viessem a desaparecer da quinta, devido às condições fatídicas das más governações, exigentes de impostos por cada porco, e preparava-se para as poupanças futuras, guardando as maçãs sãs para as vender na feira e comendo as maçãs doentes, com a ajuda do canivete exterminador dos podres, a ganhar jeitos económicos previdentes. No poupar é que vai o ganho. Os podres podem-se sempre aparar, mesmo a canivete.

O FILÓSOFO E O SÁBIO

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO,  27.11.23

Filósofo é pensador erudito; sábio é pensador popular.

* * *

Ainda criança, o filósofo saiu da aldeia serrana no Caramulo para ir estudar para Padre. Formou-se em Teologia, mas não tomou votos sacerdotais. Casou, teve filhos e eu sou o mais novo dos seus cinco netos. Percorria o mundo, mas todos os anos passava uns dias na aldeia.

O irmão sábio aprendeu a ler e escrever, mas deixou-se ficar toda a vida na aldeia. Sabia tudo sobre lavouras e plantios, mas o seu forte eram as macieiras.

Certa vez, sentaram-se à sombra a conversar e a comer maçãs. De cada vez que ao filósofo aparecia uma maçã já tocada, ele puxava do canivete, cortava a zona tocada e comia o resto da maçã. Pelo contrário, o sábio punha as maçãs tocadas num cesto ali ao lado para as dar aos porcos.

- Oh Augusto – disse o filósofo – então por que desprezas essas maçãs por só terem um ou outro toque?

- Oh Zé – respondeu o sábio – porque gosto muito de maçãs e tu, enquanto perdes tempo a preparar as maçãs já tocadas deixas que as boas envelheçam e acabas por nunca comer uma maçã verdadeiramente saborosa.

-Pois…

E assim os porcos comiam as maçãs preferidas pelo austero filósofo.

Novembro 2023

Henrique Salles da Fonseca

Nota final – Esta história foi-me contada pelo meu primo Eurico Tomás, também ele «globetrotter», neto do sábio e que, quando está em Portugal, mora na casa que foi do filósofo. As macieiras também são dele  mas porcos já não há.

 Henrique Salles da Fonseca  28.11.2023  19:16

COMENTÁRIOS (3)

 

Interessante, a aplicação prática dos dois saberes! Gostei da narrativa! Abraço BENILDE TOMÁS DA FONSECA

 FRANCISCO AMORIM  28.11.2023  20:31: Bela história, com muita filosofia e sabedoria
ANÓNIMO  29.11.2023  10:18 Gostava k alguém me explica se porque eram antigamente os homens mais sábiois OSABEL PEDROSO

 

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

CONCLUSÃO

 

II

Conclusão  do excelente estudo de NUNO PALMA sobre as causas do atraso português – de séculos:

Independentemente de todas as suas conclusões sobre o papel negativo que Pombal teve sobre a Educação no nosso país, com a expulsão dos Jesuítas, julgo, todavia, que é muito mais antigo o panorama cultural deficitário do país. A falta de apetência para a leitura, é, de longa data, uma característica étnica bem nossa, que teve implicações culturais muito negativas. Pretender ignorá-lo é falsear uma questão que tem a ver naturalmente também, desde sempre, com as políticas de maior ou menor interesse formativo, e não só desde o marquês de Pombal… Além das afirmações desprestigiantes para nós, de Lord Byron, que a Internet colocou – mostrando-se aquele, contudo, admirador de Sintra, como sítio de beleza incomparável – recordo um texto lido num dos compêndios escolares do ensino literário, de que perdi o rasto - de um inglês da altura do Renascimento, ironizando sobre o atraso português e o pedantismo tosco dos nobres portugueses da época. Também é de acentuar o papel que a Inquisição e a sua Mesa Censória tiveram na condenação da liberdade de pensamento, além da expulsão de tantos judeus cultos do nosso país, alguns dos quais, todavia, mantendo um papel difusor, de “Estrangeirados” brilhantes, como foi o caso de Ribeiro Sanches. Mas não posso deixar de transcrever um passo da Conferência de Antero de 27 de Maio de 1871, no Casino Lisbonense, sobre “As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos”, que a bendita Internet nos possibilita, como justificação do nosso atraso:

«Quais as causas dessa decadência, tão visível, tão universal, e geralmente tão pouco explicada?»

«......... - Ora esses fenómenos capitais são três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do Catolicismo, pelo Concilio de Trento. O segundo, o estabelecimento do Absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das Conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, compreendendo os três grandes aspectos da vida social - o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. Se fosse necessária uma contraprova; bastava considerarmos um facto contemporâneo muito simples: esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma e pela Filosofia; a elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, até ao dia em que os destronou; a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo o trabalho à força, e o comércio à guerra de conquista».

Mas também a leitura de “O VERDADEIRO MÉTODO DE ESTUDAR” (1746), de Luís António Verney (dos tempos de D- João V), mostra um sentido crítico sobre o nosso sistema de ensino, além da prioridade na publicação, em relação ao “Émile” de Rousseau, (O Émile sendo posterior àquele, de 1762), e igualmente em modernidade de pensamento e sentido crítico, o “Émile” sendo mais conservador relativamente à educação das raparigas, por exemplo. De resto, o atrevimento crítico de Verney resultou na sua fuga – para Itália - como tantos outros Estrangeirados da época pombalina.

Da Internet ainda, colho os seguintes dados de síntese da obra de Verney, além do encanto da leitura de uma obra tão seriamente crítica e sem preciosismos retóricos:

- o ensino devia basear-se nas realidades concretas e na experiência;

- a instrução elementar devia ser ministrada a ambos os sexos e a todas as classes;

- o Estado devia fomentar e custear as despesas da educação.

O TEXTO – de excelência - DE NUNO PALMA (Conclusão)

A destruição do ensino

A mais desastrosa política de Pombal, no longo prazo, foi a destruição do sistema educativo do paísAinda na primeira metade do século XVIII, o nível de capital humano em Portugal apenas estava atrás do das partes mais avançadas da Europa, sendo até pequena a diferença. Nesta altura, Portugal tinha duas universidades, assim como uma rede de escolas de ensino pré-universitário em todo o país. Nas décadas seguintes, essa situação viria a mudar radicalmente.

Tudo indica que, ainda hoje, pagamos o preço da decisão de Pombal de expulsar os jesuítas do país, sem que tivesse sido implementada qualquer alternativa viável para a educação da população. Foi declarado pela Junta da Inconfidência que os bens confiscados aos jesuítas deveriam financiar a substituição da sua actividade de ensino. Os bens dos jesuítas foram efectivamente confiscados, mas essa substituição não chegou a acontecer, sendo na realidade a intenção do governo o encaixe, no erário régio, de capital para equilibrar as contas do Estado.

No alvará mandado publicar por Pombal, em 28 de junho de 1759, afirmava-se mesmo, em nome do rei, que devia ser abolida a memória das escolas jesuítas, «como se nunca houvessem existido nos meus Reinos, e Domínios, onde têm causado tão graves lesões e tão graves escândalos», mas os planos para o que deveria substituir essas escolas eram vagos e nunca foram implementados. Só por esta razão não parece descabido escrever que Pombal foi o pior político de sempre a governar Portugal. Carvalho e Melo deixou-nos o legado mais desastroso de qualquer político que alguma vez governou o país. Em meados do século XVIII, antes da sua expulsão, a Companhia de Jesus contava, em Portugal, mais de 1000 membros, a maior parte dos quais estavam envolvidos no ensino, que era gratuito. Os jesuítas geriam 20 colégios à data da sua expulsão, assim como a Universidade em Évora, que também seria fechada com a sua expulsão, como já vimos – e que só viria a reabrir mais de dois séculos depois. No total (incluindo Brasil, Angola, Índia e Macau), a Companhia de Jesus tinha 37 colégios, além de um grande número de residências. Tudo viria a ser substituído por quase nada.

A situação do ensino, no período anterior à expulsão da Companhia de Jesus por Pombal, foi estudada por Francisco Malta Romeiras e Henrique Leitão, em cujas estimativas e trabalho me apoio aqui. Em 1759, quando Pombal expulsou do país os jesuítas – sendo o primeiro país da Europa a fazê-lo – eles eram responsáveis pela formação de capital humano de cerca de 20.000 estudantes. No total, existiriam em Portugal, em meados do século xviii, cerca de 20.000 alunos naquilo que poderíamos considerar o ensino pré-universitário, distribuídos por todo o país. Muitas destas escolas tinham mais de 1.000 alunos, tendo tido o Colégio de Santo Antão em Lisboa entre 2.500 e 3.000. Mesmo as mais pequenas teriam algumas centenas.

O ensino jesuítico não seria perfeito, mas existia no terreno – e podia ter servido de base para uma expansão educativa a acontecer mais tarde. Pouco importa que o número de jesuítas não fosse o suficiente, só por si, para a massificação do ensino. O que importa é que a sua presença teria criado condições para que a massificação viesse a ocorrer – mesmo que pelas mãos do Estado. É preciso capital humano para formar mais capital humano. Num país de analfabetos faltavam os professores. Pombal declarou que estava a reformar o sistema educativo, que prometia substituir por um mais moderno. Mas – como tantas vezes aconteceu na História – tudo não passou de retórica vazia, de belas palavras de um político, sem qualquer efeito prático. Pombal evitou utilizar a infraestrutura existente, mas na maior parte dos casos as escolas dos jesuítas foram substituídas por pouco ou nada, levando à quase total destruição do sistema educativo pré-universitário do país. Portugal tornou-se um país sem escolas.

O Colégio de Santo Antão, em Lisboa, que tinha tido mais de 2.500 alunos em meados do século XVIII, foi substituído apenas pelo Colégio dos Nobres, com menos de 100e concentrando-se no estudo de matérias de natureza não científica. Ou seja, o número de alunos caiu para cerca de 4% ou menos. Como se deduz do nome, o acesso a este último Colégio era exclusivo às classes sociais mais elevadas e houve dificuldade em interessar os alunos nas disciplinas científicas aí ministradas. Fundado em 1761 – no papel –, o Colégio dos Nobres começaria a funcionar vários anos depois, inicialmente com 24 alunos, e sem professores de várias disciplinas. Foi aliás difícil recrutar professores e alguns pararam mesmo de leccionar, voltando aos seus países de origem devido à falta de preparação matemática dos alunos. Em 1772, acabou mesmo por ser abolido de vez o ensino das disciplinas científicas, já que não se praticavam. Até ser mandado encerrar, em 1837, o Colégio dos Nobres não voltaria a ter ensino científico, limitando-se ao ensino literário.

Vale a pena contrastarmos esta situação desastrosa com a da Aula da Esfera que funcionou ininterruptamente entre 1590 e 1759 no Colégio de Santo Antão – num espaço que actualmente faz parte do Hospital de São José. Ainda hoje podem ser vistos painéis de azulejos representativos dos assuntos leccionados, à semelhança do que acontece no Colégio do Espírito Santo, da Universidade de Évora. Aí se ensinaram matérias científicas e matemáticas, com particular ênfase dada às questões relacionadas com a náutica e a cosmografia. A Aula da Esfera era gratuita e estava aberta a leigos, sendo ensinada em português. Os alunos aprendiam noções tão avançadas como os logaritmos, o telescópio ou a projeção de Mercator, sendo a escolha dos professores muito cuidada, recorrendo-se várias vezes a professores estrangeiros de grande renome. Tudo isso acabara.

Para além de Lisboa, deram-se em todo o país quebras muito significativas do número de alunos, havendo relatos sobre a falta de professores e a fraca qualidade do ensino. D. Tomás de Almeida, o Diretor-Geral dos Estudos, responsável por substituir o ensino dos jesuítas, teve desde logo enormes dificuldades em recrutar pessoal docente, e avisaria mesmo num relatório de 1763 que «os habitantes não têm como pagar os salários aos Mestres e não mandam os filhos aos Estudos pelo que se perdem muitos talentos que seriam úteis à Pátria se tivessem aplicação». Dois anos depois, descobriu que em várias das poucas escolas que restavam no país, os professores continuavam a usar gramáticas jesuíticas, tendo sido esses professores suspensos e os exemplares queimados em público.

Nos anos seguintes, a situação do ensino pré-universitário manteve-se deplorável. Uma lei de 1772, que lançava os fundamentos do que deveria ser o sistema escolar futuro do Reino, dizia mesmo, no seu preâmbulo, que não era necessário alfabetizar grande parte da população, pois deveriam ser reservados «ao serviço rústico, e humilde do Estado», espelhando o que era argumentado por vários homens dessa época que defendiam que os filhos dos pastores e dos criados deviam simplesmente seguir a profissão dos seus pais. Os oratorianos também foram perseguidos por Pombal, mesmo os que tinham gabinetes de Física experimental mais modernos.

Nas universidades, as consequências da política pombalina também foram desastrosas. Até então existiam apenas duas universidades em Portugal e em todo o império. Uma delas, a Universidade de Évora, foi pura e simplesmente fechada, como vimos no capítulo anterior. Restou a Universidade de Coimbra. A reforma desta, promovida por Pombal (1772), tem aspetos interessantes – deu-se uma modernização dos programas, a criação da Faculdade de Matemática, a criação do Jardim Botânico, e do Observatório Astronómico, entre outros aspectos.

A estrutura da universidade foi completamente reformada. Mas, como outras coisas com Pombal, foi tudo irrealista: muito mais de jure do que de facto. Não é possível elogiar em abstracto os planos da reforma sem falar da realidade dessa reforma. Grande parte das coisas previstas não se implantaram. O ensino chegou a parar por completo e a universidade passou a ter muito menos alunos, tornando-se mais elitista já que sofreu diretamente as consequências do colapso do ensino pré-universitário. Entre 1724 e 1771 (47 anos) passaram pela Universidade de Coimbra 132.869 alunos, o que corresponde a uma média anual de 2.827 matrículas, enquanto no período imediatamente posterior à reforma pombalina, entre 1772 e 1820 (48 anos), apenas 21.675 alunos se matricularam na universidade, correspondendo a uma média anual de 452 alunos – cerca de 16% das inscrições anuais anteriores, sem que isto tivesse correspondido a uma melhoria do conteúdo programático.

Deste modo, a mais importante e mais dramática herança de todas as políticas pombalinas foi Portugal tornar-se no país com a maior percentagem de analfabetos da Europa: durante todo o século XIX, as taxas de literacia não chegavam a 20%. Portugal apenas voltaria a ter 20.000 estudantes no ensino pré-universitário nos anos 30 do século XX, e isto com uma população do país quase três vezes maior (quase 7 milhões, em vez dos cerca de 2,5 milhões, como vimos no capítulo 1). De modo a estabelecer um corte radical com o passado, Pombal evitou utilizar esta infraestrutura, convencido de que, dessa forma, o corte seria total, mas não foi capaz de propor uma alternativa eficaz.

O ensino dos jesuítas, ao contrário de outros sistemas, era central para Portugal e a realidade é que foi destruído sem ter sido substituído por uma alternativa funcional. Foi uma catástrofe. Portugal regrediu de forma muito clara, precisamente quando outros países da Europa Ocidental estavam a investir na escolarização das suas populações e a assistir à industrialização das suas economias. Logo em 1800, a percentagem de adultos que em Portugal sabiam assinar o seu nome estava consideravelmente atrás da de outras partes da Europa Ocidental. Portugal estava já então claramente atrasado, em contraste com o que tinha acontecido apenas meio século antes, como vimos anteriormente. Foi nisto, na prática, que resultou o despotismo – dito «esclarecido», aparentemente sem ironia – de Pombal.

"O século do ouro foi o século de uma maldição que condenou Portugal a um processo de decadência económica e política, da qual só viria a sair muito mais tarde, já no século XX. Com a base industrial destruída, um sistema político arcaico, e sem escolas que permitissem sequer educar uma elite mínima que pudesse servir de base a uma expansão futura da escolaridade, o país entrou no século XIX condenado, precisamente quando a maior parte dos países da Europa Ocidental estava a preparar-se para ter revoluções industriais."Nuno Palma, economista, no livro "As Causas do Atraso Português"

As origens setecentistas do atraso português

Como expliquei neste capítulo, o notável progresso da economia e do sistema político em finais do século XVII foi interrompido em inícios do século seguinte. Para Portugal, tudo viria a mudar com a descoberta de grandes quantidades de ouro no Brasil. O século do ouro foi o século de uma maldição que condenou Portugal a um processo de decadência económica e política, da qual só viria a sair muito mais tarde, já no século XX. Com a base industrial destruída, um sistema político arcaico, e sem escolas que permitissem sequer educar uma elite mínima que pudesse servir de base a uma expansão futura da escolaridade, o país entrou no século XIX condenado, precisamente quando a maior parte dos países da Europa Ocidental estava a preparar-se para ter revoluções industriais. Nem todas as decisões feitas nos séculos seguintes foram boas, como veremos. Mas o contexto foi muito dificultado pela pesada herança com que o país saiu do século XVIII.

Pombal foi, sem dúvida, um agente do seu tempo. Importa reconhecer, contudo, que as decisões que tomou foram desastrosas para o país. O terramoto de 1755 ajudou-o a centralizar o poder, tendo de resto a sua sobrevivência política sempre dependido da vontade do Rei D. José, como a morte deste último veio a demonstrar. Com o capitalismo de compadrio que Pombal promoveu para benefício próprio, quem enriqueceu foi ele, assim como os seus familiares e aliados políticos – enquanto a população portuguesa no seu todo saía prejudicada. Seria isto «nepotismo esclarecido»? Já a acusação de que expulsar os jesuítas iria permitir o avanço científico do país – amplamente difundida às ordens de Pombal – é uma das maiores mentiras da nossa História.

Ainda hoje estamos a pagar as consequências. Mas não deixa de ser importante compreender que Pombal não foi um tirano que apareceu do nada. Quando subiu ao poder, o ouro do Brasil já estava a causar problemas económicos e políticos ao país desde há várias décadas: a indústria estava em decadência acentuada e as Cortes já não se reuniam há meio século. Como tal, a concentração de tanto poder num só homem, e num homem como Pombal, é em si um sintoma da profunda doença do país, e não a sua causa.

Não deixa, no entanto, de ser verdade que Pombal foi a pessoa mais directamente responsável por condenar Portugal a séculos de atraso educativo. Vale a pena, por isso, fazer a seguinte pergunta: porque será que Pombal é tantas vezes encarado como um reformista de vistas largas? Em parte, porque ainda governou durante um período de relativa prosperidade e porque os regimes que o sucederam não foram melhores. Não é por acaso que, durante a Viradeira – o regime associado a D. Maria I, que o sucedeu –, cunhou-se a expressão «mal por mal que venha o Pombal».

A pouco e pouco, Pombal veio a surgir como uma figura musculada que fez algo pelo país. Hoje sabemos que a economia colapsou, de forma espectacular, nas décadas finais do século XVIII, e que o atraso se acentuou na primeira metade de Oitocentos. Ainda que isso tivesse acontecido em parte devido às acções de Pombal – e, num sentido mais profundo, devido à Maldição Dourada –, o declínio fez-se sentir principalmente a partir do reinado de D. Maria I.

Um observador francês notou, em finais do século, a pobreza da população de Lisboa, troçando da convicção de muitos portugueses de que viviam no melhor país do mundo. Escrevia ele que, pelo contrário, o país era «o mais atrasado, o mais ignorante, o menos civilizado, o mais selvagem e bárbaro de todos os países da Europa». A qualidade das instituições não melhorou depois da queda de Pombal, tendo outro observador estrangeiro considerado que o governo de D. Maria I «pode ser considerado como o mais despótico de todos os que dirigem os Reinos da Europa (…) a lei aqui estabelecida é geralmente uma palavra vazia de sentido, a não ser quando as suas cláusulas são postas em execução por ordens especiais do soberano». Essa era a forma de governar de Pombal, mas assim continuou depois da sua queda.

Não sou em geral a favor do derrube de estátuas, mas não deixa de ser curioso que Pombal tenha a proeminência que tem na mais conhecida rotunda do nosso país. Essa estátua representa hoje o triunfo da propaganda sobre a verdade, mais de dois séculos depois. Não há dúvida de que as mentiras promovidas por Pombal foram eficazes, também por terem sido evidentemente úteis a regimes e narrativas que surgiram mais tarde.

Assim, não surpreende a subsequente reabilitação e veneração da sua figura, não deixando de ser irónico que ainda hoje seja frequentemente visto como um grande reformador, até entre muitos historiadores incautos. Tudo culminou no mandar erguer da sua estátua, cerca de um século e meio depois da sua morte, por um regime que também se caracterizaria por uma grande divergência entre as belas intenções declaradas e a realidade conseguida a nível educativo: a Primeira República. Mas, antes de aí chegarmos, temos de atravessar o século XIX: um período deprimente da História de Portugal. Ainda que a maldição do ouro já estivesse a afundar a economia setecentista portuguesa, e o atraso tenha aí as suas raízes, foi no século XIX que Portugal bateu no fundo.

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COMENTÁRIOS:
C. Lourenço: Os fundos europeus são o novo ouro do Brasil. Os “pombais” são os sucessivos governos socialistas. E não saímos disto…                       Antonio Marques Mendes: Teses muito controversas algumas muito exageradas como no caso da avaliação de Pombal. Os problemas da sobrevalorização da moeda por causa do ouro do Brasil são importantes mas não foram muito duradouros. Depois o autor desvaloriza os desastres causados pelo terramoto de 1755 e pelas invasões francesas de 1808 a 1812. As últimas seguidas pela independência do Brasil e pela guerra civil entre miguelistas e liberais deixaram o país a ferro e fogo durante a quase totalidade do século XIX do desenvolvimento capitalista no resto da Europa. Foi verdadeiramente neste século que Portugal perdeu o comboio do progresso!              Ricardo Migueis: Estudo absolutamente fantástico, muitos parabéns ao Observador por nos trazer este artigo                  José Tomás: Se é verdade que a primeira pedra da estátua do Marquês de Pombal foi assente em 1917 (ou a segunda, porque já tinha havido outra primeira pedra em 1882, e ainda houve outra primeira pedra em 1926), o certo é que ela foi edificada depois do 28 de Maio e inaugurada pelo Estado Novo, em 1934. É por isso injusto e impreciso atribuir apenas à Primeira República a veneração por esse ogre - ele também deu muito jeito à segunda.             Paulo Orlando: Vejo grandes semelhanças entre o Carvalho e Melo e o Costa. A história repete-se com embalagens diferentes…                      João Valente: Afinal a culpa não é do Passos. Nem do Cavaco. Nem sequer do Salazar. Afinal é mesmo do Pombal!!!                  J. Gabriel: Parabéns ao Observador, pela publicação.  Mas recordar o passado é importante Mas é mais importante o presente e futuro, sem  deixar de ter cuidado com o passado, não muito longínquo. Exp. 2011