Em que ficamos, digo, com a questão do lítio, que parece
que incriminava o governo, que, por isso, se demitiu? Afinal, a comédia de
enganos foi outra, segundo outros dados. É muito feio acusar-se sem motivos bem
ponderados, impondo castigos injustos, que o próprio Cristo repeliria.
O que vale é que fica tudo como dantes,
cá no quartel de Abrantes.
Uma
comédia de enganos
Só uma decisão do Presidente poderia travar esta
catástrofe. Marcelo reconhecer que, afinal, o pretexto para a dissolução é
falso e que aceitou a demissão do PM por via de um processo sem fundamento.
ZITA SEABRA Editora
OBSERVADOR, 15
nov. 2023, 00:1422
A expressão “uma comédia de enganos”
é de Shakespeare, mas aplica-se totalmente aos dias que acabamos de viver.
Ontem, o juiz responsável pelo
processo, pomposamente chamado “Influencer”, reconheceu que nele não constam
crimes de corrupção e enviou todos os arguidos para casa. Logo ali,
à porta do tribunal, um dos advogados, muito batido na barra, explicou que
o processo acabava morto em três dias.
Entretanto, uma maioria absoluta tinha
sido atirada pela janela. O Primeiro-Ministro pediu a demissão. O
Presidente da República anunciou a dissolução do Parlamento e explicou que iria
convocar eleições antecipadas para 10 de Março. Mas – há sempre um mas -, para
bem dos portugueses, só dissolveria o Parlamento depois do Orçamento aprovado.
Estranha situação esta.
Eis senão quando, no PS, deram por morto
o seu líder e os candidatos a substitutos nem esperaram para ver o que
acontecia no processo. Deitaram foguetes, fizeram a festa e apressaram-se a
aparecer alegremente com fantásticas propostas para o País. Como se não
estivessem no Governo, sacaram das bandeiras e propagandas eleitorais, entre
alegres beijos e abraços de jubilosa esperança, que a rei morto suceda rei
posto. Ainda a procissão nem saiu para o adro e já estão nestes preparos.
Muita Comunicação Social, de tão
excitada que estava com tamanhos crimes e criminosos tão ilustres, cheia de
transcrições de escutas e de especialistas em corrupção, mostrou tudo o que
havia do maior interesse para Portugal e que servisse para denegrir aqueles
energúmenos corruptos ao som da multidão desejosa de justiça. Foi-nos mesmo
mostrado o senhor ministro Galamba, às sete da manhã a passear o seu cão, além,
evidentemente, das campainhas do prédio onde reside.
Mas os factos na origem de todas estas
decisões são falsos. Todos estes actos da maior gravidade para o
País assentam em pressupostos falsos.
Senão vejamos. Tudo parte de um
comunicado do Gabinete de Imprensa da Procuradoria-Geral da República, escrito
sabe-se lá por quem e não assinado. Segue-se uma ida a Belém da Procuradora,
antecedida por uma constatação dias antes do senhor Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça de que grassava a corrupção por aí, nos corredores da
política.
Um desastre, uma calamidade, um disparate
pegado de consequências impensáveis.
Com a polícia a fazer buscas em todo o
lado, incluindo na sua residência oficial, o Primeiro-Ministro anuncia ao País
a sua demissão e justifica-a pelo facto de estar a ser alvo de um
“processo-crime”.
O Presidente aceita a demissão, falando
em processo e anuncia a dissolução da Assembleia da República.
Constata-se, afinal, três dias depois,
que as razões invocadas pelo Presidente da República para anunciar a dissolução
do Parlamento não existem, não se verificam. Não há processo-crime, nem mesmo
acusação de crime de corrupção.
Os pressupostos dos actos gravíssimos
para o País (demissão do Governo e convocação de eleições) assentavam
evidentemente na acusação, necessariamente fundamentada de corrupção.
Percebiam-se as decisões e o seu fundamento. Mas, afinal, três dias depois,
verifica-se não ser o caso e de corrupção tudo se transforma em “tráfico de
influências”.
Tráfico de influências é uma prática que
todo o português conhece desde a fundação da Pátria. É assim e sempre foi. A
literatura está cheia de relatos magníficos de cunhas, ou simples palavrinhas a
Lisboa, ou aos senhores presidentes de Câmara, sem o maior relevo ou
importância e sem vestígios de corrupção. Apenas um jeitinho que lembre
papéis esquecidos nas prateleiras do poder, ou morosidades burocráticas que dão
cabo da vida e do tempo dos portugueses.
Convém sublinhar que, no respeita
ao tráfico de influências, é muito difícil estabelecer a fronteira entre o
lícito e o ilícito e não há legislação ou regulamentação que consiga traçar com
evidência uma fronteira. Não há nem haverá nunca.
Caíram, assim, os pressupostos que
estiveram na origem das decisões solenemente tomadas e anunciadas. Mas,
agora que os arguidos foram para casa, o que vai acontecer ao País? Tudo isto é
uma catástrofe. Uma irresponsabilidade!
Temos as mais graves decisões políticas
a acontecer (desde sempre e não por acaso na gíria política se chama “bomba
atómica” ao poder presidencial de dissolução da Assembleia e convocação de
eleições) em função de pressupostos que não se verificam. Não há acusação de
crimes de corrupção.
Mas, foi por isso que o
Primeiro-Ministro pediu a demissão que o Presidente da República aceitou,
convocando eleições.
No entanto, nada está consumado, mas
apenas anunciado. Estamos, aliás, numa situação estranha de duvidosa
constitucionalidade: uma demissão aceite, mas não consumada e uma dissolução
anunciada, mas igualmente não concretizada. Tudo em nome da necessidade de
aprovação prévia do Orçamento de Estado e sabe-se lá de que mais.
O País foi, assim, levado a assistir a
um patético cenário, uma peça de um teatro cheia de estranhas cenas nunca
vistas. O Governo sai, mas fica. Para já. Os ministros não vão ao Parlamento,
porque já não são ministros de plena legitimidade, mas devem ir defender o
Orçamento na qualidade de ministros de um Governo de gestão que ainda não o é.
O ministro João Galamba, por exemplo,
foi ao Parlamento defender o orçamento do seu ministério, da sua competência,
mas foi duramente criticado por toda a gente, apesar da legitimidade e
obrigação que tinha de ir à Assembleia da República. Finalmente demitiu-se,
para alívio geral, dum Governo demissionário, tendo a sua demissão sido aceite
pelo Presidente. Já os outros ministros, ficaram num governo demitido, mas
ainda não demitido, logo sem o estatuto constitucional de Governo de gestão…
Como se não bastasse esta confusão
institucional (e não é demais repeti-lo), os pressupostos de tudo isto são
falsos.
A confusão vai alastrar à economia. Vai
ser difícil fazer esquecer o que aconteceu aos empresários (assim como ao
presidente da Câmara de Sines) que passaram três dias nos calabouços de uma
cadeia, vendo a sua vida desfeita. Calculo que lamentem a esta hora terem tido
a triste ideia de investir em Portugal, em vez de emigrarem, como era de bom
senso. Mas, o que lhes aconteceu nestes dias, será certamente apreendido por
outros que não vão cometer o mesmo erro e investir em Portugal, correndo os
mesmos riscos.
António Costa e a sua maioria vão borda
fora não por crime de corrupção, mas por sabe-se lá o quê. Mas a corrupção saiu
na Imprensa de todo o mundo e, agora, não há maneira fácil de toda essa
imprensa publicar que, afinal, António Costa não é o segundo Primeiro-Ministro
português a sair pelo motivo de corrupção (como ele próprio contribuiu para que
assim escrevessem a notícia), mas é o primeiro a sair por razões inexistentes
num processo que morreu ali.
Tudo isto é uma catástrofe para
Portugal. O País já está paralisado e assim vai ficar quatro ou cinco meses. Em
campanha eleitoral, sem decisões essenciais de governo, sem investimento, com
prazos dos fundos europeus a correr, sem solução para o SNS, para o ensino, sem
resolução do aeroporto, dos comboios, com custos económicos, financeiros, de
credibilidade sem igual nos anos recentes e diminuído em todas as participações
em organismos comunitários ou extra-comunitários.
Só uma decisão do Presidente da República
poderia travar esta catástrofe. O Presidente reconhecer que, afinal, o pretexto
para a dissolução é falso e que aceitou a demissão do Primeiro-Ministro em
razão de um processo com falsos fundamentos. E, já que arranjou este tempo
constitucionalmente estranho de colocar a democracia e a Constituição da
República em banho-maria, nada o impede de voltar atrás na sua decisão. Mas,
para isso, era necessário que, por uma vez, Marcelo Rebelo de Sousa tivesse a
coragem de colocar o interesse nacional acima dos seus interesses pessoais.
Teria assim a grandeza de pôr um termo a
esta notável “comédia de enganos” a que o País assiste atónito.
COMENTÁRIOS (de 22):
JOHN MARTINS: Querida Zita Seabra, Se o seu artigo tem alguma coisa de realidade, a maior parte é pura ficção. O governo não caiu por causa de um parágrafo, mas sim por um acumular de casos e escândalos durante um ano inteiro. Já devia ter sido demitido em maio depois do caso Galamba. E considera, que depois de ser conhecido o cofre bem recheado, com 75.000€ nas barbas de Costa, tinha algumas possibilidades de se aguentar??? Olhe que não! Olhe que não!!! Lily Lx: Coitadinhos! Tão inocentes! Quem nunca teve €75000 na gaveta do escritório atire a primeira pedra! São tão inocentes, tão inocentes, que o juiz arquivou o processo! Espera… não arquivou? Jura? Confirmou indícios de 17 crimes? Não pode… malandro do juiz… João Floriano: «Um desastre, uma calamidade, um disparate pegado de consequências impensáveis.» Seria ainda pior se como sugere Zita Seabra, Marcelo voltasse atrás e revertesse a demissão que foi anunciada e aceite a 7 de novembro. e desta vez a culpa não é da CS que se limita a registar uma série de acontecimentos precipitados por culpa dos agentes políticos. Nunca o provérbio popular que diz que «as cadelas apressadas parem cães cegos», foi tão bem aplicado. A 7 de novembro o país ficou de queixo caído com a demissão e a posterior declaração de António Costa. Ninguém o forçou a demitir-se. Logo de seguida os partidos políticos manifestaram o seu acordo com a decisão do PR. Galamba tornou-se personagem central e folclórica do enredo passeando o seu simpático Jack Russell ( é um Jack Russell?), em pijama de xadrez ( o ministro não o canito). Disse também no parlamento que não se demitia. Temos também a precipitação à volta de Centeno. Foi ou não convidado para formar governo? Marcelo diz que nunca o convidou e obriga Centeno a dar o dito por não dito já com a Europa a olhar para Portugal com certa desconfiança. A 11 de novembro um dos discursos mais estapafúrdios e mal preparados que já nos foi dado ouvir, António Costa deixa-nos novamente boquiabertos. Temos portanto aqui mais um grande exemplo de precipitação. E entretanto o que se passa no seio do PS? Num momento que devia ser de contenção, de avaliação dos estragos? Imediatamente Pedro Nuno Santos se apresenta para substituir Costa e Carneiro igualmente para fazer papel de figurante, personagem secundária, que vem abrilhantar a actuação e ovação da estrela principal. No dia 13 de Novembro PNS apresenta a sua candidatura e faz um discurso perante uma sala cheia de socialistas em êxtase. António Costa parece pertencer ao passado. Entretanto vão saindo as decisões do Juiz de instrução que muitos também precipitadamente assumem como conclusão do processo. E agora levantam-se opiniões no sentido de travar o processo (não o judicial). Primeiramente as vozes pediram a Marcelo que abreviasse a data das eleições: 10 de março ainda vem longe. Agora Zita Seabra pede que volte tudo á manhã de 7 de novembro e que se ignore a passada semana. Imaginem um autocarro que perdeu os travões num dia de chuva ao cimo da Rua do Alecrim e que agora vem por ali abaixo até ao Cais de Sodré em crescente aceleração. Conseguiria Marcelo parar o autocarro? «Alea jacta est» disse Júlio César. António Rocha: Só uma nota: creio que a demissão é do interesse do senhor primeiro-ministro...a verdadeira crise está na saúde, na educação, na defesa e, sobretudo, na pobreza. Para nenhuma delas o governo tem solução, é mais fácil, como SEMPRE fizeram, deixar que venha outro resolver os problemas, repor as penas da galinha e só depois voltarem para depenar Antonio Marques Mendes: O processo foi iniciado pelo próprio Costa baseando-se num simples comunicado. Terá sido manipulação para sair do Governo antes das eleições Europeias e tentar ir para Bruxelas como tanto deseja. A política portuguesa parece cada vez mais uma revista do Parque Mayer. José B. Dias: Será que a cronista está a tentar dizer que toda esta feira foi montada pela PGR por forma a permitir ao PS não ter de lidar com os problemas que criou num futuro que não se augura de risonho. Efectivamente tal encaixaria na panóplia de "artes políticas" do ainda Primeiro-ministro...
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