sexta-feira, 3 de novembro de 2023

O wokismo. A ideologia que nasceu na universidade para se espalhar pelo mundo

 


OBSERVADOR, 01 nov. 2023, 10:1919

JOSÉ CARLOS FERNANDES: Texto

Sem receio de ser polémico ou ofender sensibilidades, Jean-François Braunstein analisa em "A Religião Woke" uma ideologia que começou como "excentricidade académica" para "varrer o mundo ocidental".

Índice

De olhos bem abertos

Puritanos sem Deus

O wokismo é filho do pós-estruturalismo?

Por uma “antibiologia ginocêntrica”

A ciência como conto de fadas

A universidade ainda é a “casa da razão”?

À medida que o wokismo conquista territórios que se imaginariam a salvo da irracionalidade e do dogma e o seu discurso se torna mais afoito e petulante, há quem, considerando que não se trata de uma voga frívola e passageira, mas de uma séria ameaça civilizacional, se tenha dedicado a dissecá-lo e a denunciar os seus fundamentos, métodos e propósitos.

O filósofo francês Jean-François Braunstein (n.1953) tem tido como principal área de interesse a história das ciências e a filosofia das ciências, publicando livros sobre assuntos tão alheios à esfera da “actualidade” como as bases filosóficas da doutrina médica proposta pelo cirurgião oitocentista François Broussais ou as componentes, implicações e utopias biológicas e médicas do positivismo de Auguste Comte. Porém, em 2018, Braunstein voltou-se para um tema de grande actualidade e candência, publicando La philosophie devenue folle: Le genre, l’animal, la mort (A filosofia enlouqecida: O género, o animal, a morte), um veemente alerta contra “a eliminação da diferença sexual, a animalização do homem, o apagamento da morte”, três correntes ideológicas que, no seu entender, conduzem a um “mundo informe, sem limites nem fronteiras”.

Jean-François Braunstein

Em La religion woke (2022) Braunstein retoma o tema da identidade de género e da abolição do corpo biológico, junta-lhe outras componentes centrais do wokismo – como a “teoria crítica da raça” e a “epistemologia do ponto de vista”– e, sem receio de ser polémico ou ofender sensibilidades, analisa a génese e a natureza de uma ideologia que começou por ser vista como uma excentricidade circunscrita a algumas universidades americanas e se converteu “numa onda de loucura e intolerância [que] está a varrer o mundo ocidental”. O livro chega agora a Portugal sob o título A religião woke, com tradução de Ana Pinto Mendes e pela mão da Guerra & Paz, inserido na mui pertinente colecção “Os livros não se rendem”, consagrada a ensaios que constituem marcos culturais e que, não obstante, não tinham ainda sido alvo de edição portuguesa. Enquanto os outros títulos editados até agora na colecção têm já algumas décadas (Tempestade de aço, de Ernst Jünger, tem mesmo mais de um século) e ganharam o estatuto de “clássicos”, A religião woke é muito recente, mas tem qualidades para também se converter numa obra de referência.

A capa da edição portuguesa de “A Religião Woke”, de Jean-François Braunstein (Guerra & Paz).

De olhos bem abertos

A ideia de “despertar” era usada pelos activistas negros americanos, desde a segunda metade do século XIX, para descrever a tomada de consciência da sujeição que lhes era imposta pela sociedade e o imperativo de congregar forças para reivindicar um tratamento justo. Nas primeiras décadas do século XX, essa consciência racial foi sendo expressa pela palavra “woke”, que, nalgumas variantes do inglês usado pelos afro-americanos, é sinónimo de “awake” = “desperto”. O uso de “woke” neste contexto e com este sentido manteve-se marginal e só começou a ganhar curso na segunda década do século XXI, e em particular a partir de 2014, com o assassinato de Michael Brown, um rapaz negro, por um polícia, em Ferguson, Missouri, em Agosto de 2014, que deu forte impulso ao movimento Black Lives Matter.

A polícia usa gás lacrimogénio para dispersar manifestantes que protestam contra a violência policial, Ferguson, em Agosto de 2014

O uso alastrou tão rapidamente que, em 2017, o termo foi reconhecido pelos dicionários de referência, com o significado de alguém desperto para o preconceito e para a discriminação racial; entretanto, o uso de “woke” alargou-se a outras questões identitárias que não a étnica e passou a designar alguém particularmente atento a preconceitos, discriminações e desigualdades sociais de vária sorte. Foi preciso mais algum tempo – e mais algumas mortes de negros às mãos da polícia americana em circunstâncias envolvendo “uso desproporcionado de força” – para o termo chegar à Europa, o que aconteceu nos meses, marcados por numerosas manifestações e tumultos, que se seguiram à morte de George Floyd, a 25 de Maio de 2020, em Minneapolis.

Mapa-mundo das manifestações de protesto pelo homicídio de George Floyd

Mais recentemente, o termo sofreu nova mutação, agora por obra dos sectores conservadores americanos, que passaram a usar “woke” com conotação pejorativa, para designar uma hipersensibilidade – estridente, irritante, despropositada e agressiva – a assuntos raciais e identitários em geral. A evolução do significado de “woke” seguiu um percurso similar ao de uma expressão com a qual partilha afinidades: “politicamente correcto”. Quando o conceito de “correcção política” começou a ser promovido pela esquerda, tinha um sentido positivo, designando o cuidado em usar uma linguagem que não ofendesse ou apoucasse indivíduos ou grupos com algum tipo de “desvantagem” (presente ou passada), um comportamento não conforme ao “padrão” ou que fossem vítimas de algum preconceito ou injustiça; depois, os conservadores apropriaram-se do termo e conferiram-lhe conotação negativa, passando “politicamente correcto” a designar um excesso de zelo, muitas vezes insincero, no tratamento de grupos “historicamente oprimidos”, bem como o cerceamento da liberdade de expressão em função desse zelo excessivo.

Puritanos sem Deus

Braunstein, além de fazer a história do termo “woke”, chama também a atenção para o vínculo do wokismo com outro tipo de “despertar”, também ele intimamente ligado à história dos EUA: os Great Awakenings. Estes consistem numa série de “despertares religiosos” protestantes que agitaram aquele território do século XVIII ao início do século XX (com picos de intensidade nos períodos c.1730-55, c.1790-1840 e c.1855-1930). Estes “despertares” foram liderados quase sempre por pregadores inflamados e de linguagem colorida, que galvanizavam o público expondo a natureza pecaminosa do seu comportamento, denunciando o carácter corrupto do mundo, invocando por um deus colérico e implacável e agitando a ameaça de condenação ao fogo eterno; estes cenários tremendistas, por vezes de inspiração milenarista, produziam forte efeito nos ouvintes, que, tomados pelo arrependimento, se convertiam em massa e, com o fervor típico dos recém-convertidos, logo se empenhavam em obter novas conversões.

Edição publicada em Boston em 1741 do sermão “Pecadores nas mãos de um Deus irado”, da autoria do pastor Jonathan Edwards, proferido por este perante a sua congregação em Northamptom, Massachusetts, e repetido, perante uma multidão, em Enfield, Connecticut, a 8 de Junho de 1741, naquele que foi um momento pioneiro do First Great Awakening

Segundo Braunstein, os Great Awakeningsevocam irremediavelmente o entusiasmo dos jovens militantes woke, na sua maioria brancos, que, em grandes reuniões em público, se arrependem do seu racismo e pedem aos militantes negros perdão pelos seus pecados”(pg. 33). “A nova religião é pregada com exaltação por estes novos conversos, que, de repente, sentem ver o mundo de outra forma, descobrem o mal presente neles mesmos e dão um sentido novo à sua vida, combatendo este mal” (pg.34). Braunstein alinha com o filósofo americano Joseph Bottum e, em particular, com a sua obra An anxious age: The post-Protestant ethic and the spirit of America (2014), que postula uma deslocação, mais notória a partir de meados do século XX, das inquietações religiosas das elites WASP (brancos, anglo-saxónicos, protestantes) americanas para o domínio social e político, dando origem a um grupo que herdou dos avós a visão do mundo como estando dominado por forças malignas, a consciência de pertença a uma elite espiritual, a certeza de que fazem parte das “pessoas de bem”, uma grande autoconfiança e um pendor para o puritanismo e para fazer julgamentos sobre os outros. Segundo Bottum, estes “pós-protestantes” distinguem-se dos seus avós sobretudo por não serem religiosos e por o seu puritanismo nada ter a ver com sexo, matéria em que são assaz liberais. E a sua convicção de superioridade moral é tal que, como disse Bottum numa palestra de apresentação de An anxious age no American Enterprise Institute, em Washington DC, a 10.02.2014, “estão determinados a recorrer à lei para impor os comportamentos que consideram serem os correctos”.

A visão de Bottum da deslocação, ocorrida nos EUA, da religião para o campo da política é secundada pelo politólogo Joshua Mitchell, outro autor também citado por Braunstein. Em American awakening: Identity politics and other afflictions of our time, de 2020 (que não faz parte da abrangente bibliografia citada por Braunstein), Mitchell identifica o wokismo com aquilo que designa por Quarto Grande Despertar: “O Despertar que agora estamos a viver tem uma natureza religiosa que se manifesta através da política (ainda que não o reconheça), não tem lugar para o Deus que julga ou para o Deus que perdoa, e conduziu a América a um beco sem saída e para lá do qual nada se descortina. A política identitária faz julgamentos, baseada não em pecados por acção ou omissão, mas nos atributos, publicamente visíveis e insusceptíveis de alteração, que precedem seja o que for que um cidadão faça ou deixe de fazer. A política identitária não prevê perdão pelas transgressões, pois estas são irredimíveis. A política liberal [no sentido americano do termo] esteve, em tempos, consagrada em trabalhar conjuntamente para construir um mundo melhor. A política identitária […] transformou a política num evento religioso de natureza sacrificial. Para já, o irresgatável bode expiatório é o homem branco e heterossexual”.

Encontro campal metodista, EUA, 1839. A Igreja Metodista foi a instituição mais relevante no chamado Second Great Awakening

O wokismo é filho do pós-estruturalismo?

Muitos adversários do wokismo têm identificado a sua origem na filosofia pós-estruturalista, que no mundo anglo-saxónico é também conhecido por French Theory e tem entre as suas figuras de proa Roland Barthes, Jacques Derrida, Michel Foucault, Jacques Lacan ou Jean-François Lyotard. Braunstein rejeita esta tese com vários argumentos:

1) Os pós-estruturalistas “são teóricos puros não se preocupam em agir sobre o mundo” (pg. 19) e são mais “descritivos do que prescritivos”, ao contrário do wokismo, que está apostado em virar do avesso a ordem social.

2) “Os pensadores woke são ultra-identitários que pretendem combater em nome desta ou daquela comunidade oprimida”, enquanto “os filósofos da French Theory […] fazem por perturbar, ou mesmo apagar, as noções de identidade e de indivíduo” (pg.20).

3) O “pensamento sempre irónico e interrogativo [da French Theory] dá-se mal com a boa consciência satisfeita […], a seriedade e a ausência de questionamento que caracterizam o pensamento woke”. “É absoluta a diferença entre indivíduos que jogam com as normas e militantes fanáticos que aderem a uma norma predeterminada sem jamais a questionar. De um lado, filósofos, curiosos e móveis; do outro, militantes e pregadores” (pg. 22).

Porém, Braunstein não considera um importante – e obnóxio – contributo dos pós-estruturalistas para a filosofia: o questionamento sistemáticos dos “factos” comummente aceites, que estes filósofos vêem como meras ficções, criadas e promovidas de acordo com a conveniência quem detém o poder. Allan Bloom, um proeminente opositor do pós-estruturalismo, denuncia esta corrente filosófica em A destruição do espírito americano (que é outro dos ensaios incluídos na colecção “Os livros não se rendem”) nestes termos: “A escola [do] desconstrucionismo [uma ramificação do pós-estruturalismo] corresponde à última fase, previsível, da supressão da razão e da negação da possibilidade de verdade em nome da filosofia. A actividade criadora do intérprete é mais importante do que o texto; não há texto, apenas interpretação. Assim, aquilo que que é mais necessário para nós, o conhecimento daquilo que estes textos têm para nos dizer, passa para o controlo da personalidade subjectiva e criadora destes intérpretes, que negam quer o texto quer a realidade a que este se refere” (ver Platão, Nietzsche e Mick Jagger: Entre guerras culturais e crises civilizacionais). Estas concepções, nascidas no campo da literatura comparada, acabaram por estender-se à filosofia e às ciências sociais e humanidades em geral, promovendo a instabilização dos conceitos de verdade e de objectividade e a ideia de que tudo depende da interpretação.

(CONTINUA)

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