OBSERVADOR, 01
nov. 2023, 10:1919
Sem receio de
ser polémico ou ofender sensibilidades, Jean-François Braunstein analisa em
"A Religião Woke" uma ideologia que começou como "excentricidade
académica" para "varrer o mundo ocidental".
Índice
O wokismo é filho do pós-estruturalismo?
Por uma “antibiologia ginocêntrica”
A universidade ainda é a “casa da razão”?
À medida que o wokismo conquista
territórios que se imaginariam a salvo da irracionalidade e do dogma e o seu
discurso se torna mais afoito e petulante, há quem, considerando que não se
trata de uma voga frívola e passageira, mas de uma séria ameaça civilizacional,
se tenha dedicado a dissecá-lo e a denunciar os seus fundamentos, métodos e
propósitos.
O filósofo
francês Jean-François Braunstein
(n.1953) tem tido como principal área
de interesse a história das ciências e a filosofia das ciências, publicando
livros sobre assuntos tão alheios à esfera da “actualidade” como as bases
filosóficas da doutrina médica proposta pelo cirurgião oitocentista François
Broussais ou as componentes, implicações e utopias biológicas e médicas do positivismo
de Auguste Comte. Porém, em 2018, Braunstein voltou-se para um tema de grande actualidade e candência, publicando La philosophie devenue folle: Le genre, l’animal, la
mort (A filosofia
enlouqecida: O género, o animal, a morte), um veemente alerta
contra “a eliminação da diferença
sexual, a animalização do homem, o apagamento da morte”, três correntes ideológicas que, no seu entender, conduzem a um “mundo
informe, sem limites nem fronteiras”.
Jean-François Braunstein
Em La religion woke (2022) Braunstein retoma o tema da identidade de
género e da abolição do corpo biológico, junta-lhe outras componentes centrais
do wokismo – como a “teoria crítica da raça” e a “epistemologia do ponto de
vista”– e, sem receio de ser polémico ou ofender sensibilidades, analisa a
génese e a natureza de uma ideologia que começou por ser vista como uma
excentricidade circunscrita a algumas universidades americanas e se converteu “numa onda de loucura e
intolerância [que] está a varrer o mundo ocidental”. O livro chega agora a Portugal sob o
título A religião woke, com tradução de Ana
Pinto Mendes e pela mão da Guerra & Paz, inserido na mui pertinente colecção “Os livros não se rendem”, consagrada a ensaios que
constituem marcos culturais e que, não obstante, não tinham ainda sido alvo de
edição portuguesa. Enquanto os outros títulos
editados até agora na colecção têm já algumas décadas (Tempestade de aço,
de Ernst Jünger, tem mesmo mais de um século) e ganharam o estatuto de
“clássicos”, A religião woke é muito recente, mas tem
qualidades para também se converter numa obra de referência.
A capa da edição portuguesa de “A Religião Woke”, de
Jean-François Braunstein (Guerra & Paz).
De olhos bem abertos
A ideia de “despertar” era usada pelos activistas negros americanos, desde a segunda metade do
século XIX, para descrever a tomada de consciência da sujeição que lhes era
imposta pela sociedade e o imperativo de congregar forças para reivindicar um
tratamento justo. Nas primeiras décadas do
século XX, essa consciência racial foi sendo
expressa pela palavra “woke”, que, nalgumas
variantes do inglês usado pelos afro-americanos, é sinónimo de “awake” =
“desperto”. O uso de “woke” neste
contexto e com este sentido manteve-se marginal e só começou a ganhar curso na segunda
década do século XXI, e em particular a partir de 2014, com o assassinato
de Michael Brown, um rapaz negro, por
um polícia, em Ferguson, Missouri, em Agosto de 2014, que deu forte impulso ao
movimento Black Lives Matter.
A polícia usa gás lacrimogénio para dispersar
manifestantes que protestam contra a violência policial, Ferguson, em Agosto de
2014
O uso alastrou tão rapidamente que, em 2017, o termo
foi reconhecido pelos dicionários de referência, com o significado de alguém
desperto para o preconceito e para a discriminação racial; entretanto, o uso de “woke” alargou-se a
outras questões identitárias que não a étnica e passou a designar alguém
particularmente atento a preconceitos, discriminações e desigualdades sociais
de vária sorte. Foi preciso mais algum tempo – e mais algumas mortes de negros às
mãos da polícia americana em circunstâncias envolvendo “uso desproporcionado de
força” – para o termo chegar à Europa, o que aconteceu nos meses, marcados por
numerosas manifestações e tumultos, que se seguiram à morte de George Floyd, a
25 de Maio de 2020, em Minneapolis.
Mapa-mundo das manifestações de protesto pelo
homicídio de George Floyd
Mais
recentemente, o termo sofreu nova mutação, agora
por obra dos sectores conservadores americanos, que passaram a usar “woke” com
conotação pejorativa, para designar uma hipersensibilidade – estridente,
irritante, despropositada e agressiva – a assuntos raciais e identitários em
geral. A evolução do significado de “woke” seguiu um percurso
similar ao de uma expressão com a qual partilha afinidades: “politicamente correcto”. Quando o conceito de “correcção política” começou a ser promovido pela
esquerda, tinha um sentido positivo, designando o cuidado em usar uma linguagem
que não ofendesse ou apoucasse indivíduos ou grupos com algum tipo de
“desvantagem” (presente ou passada), um comportamento não conforme ao “padrão”
ou que fossem vítimas de algum preconceito ou injustiça; depois, os conservadores apropriaram-se do termo e
conferiram-lhe conotação negativa, passando “politicamente correcto” a designar
um excesso de zelo, muitas vezes insincero, no tratamento de grupos
“historicamente oprimidos”, bem como o cerceamento da liberdade de expressão em
função desse zelo excessivo.
Puritanos sem Deus
Braunstein, além de fazer a história do
termo “woke”, chama também a atenção para o vínculo do wokismo com outro tipo
de “despertar”, também ele intimamente ligado à história dos EUA: os Great
Awakenings. Estes consistem numa série de “despertares religiosos” protestantes que
agitaram aquele território do século XVIII ao início do século XX (com picos de
intensidade nos períodos c.1730-55, c.1790-1840 e c.1855-1930). Estes
“despertares” foram liderados quase sempre por pregadores inflamados e de
linguagem colorida, que galvanizavam o público expondo a natureza pecaminosa do
seu comportamento, denunciando o
carácter corrupto do mundo, invocando por um deus colérico e implacável e
agitando a ameaça de condenação ao fogo eterno; estes cenários tremendistas,
por vezes de inspiração milenarista, produziam forte efeito nos ouvintes, que,
tomados pelo arrependimento, se convertiam em massa e, com o fervor típico dos
recém-convertidos, logo se empenhavam em obter novas conversões.
Edição publicada em Boston em 1741 do
sermão “Pecadores nas mãos de um Deus irado”, da autoria do pastor Jonathan
Edwards, proferido por este perante a sua congregação em Northamptom,
Massachusetts, e repetido, perante uma multidão, em Enfield, Connecticut, a 8
de Junho de 1741, naquele que foi um momento pioneiro do First Great Awakening
Segundo
Braunstein, os Great Awakenings “evocam irremediavelmente o
entusiasmo dos jovens militantes woke, na sua maioria brancos, que, em grandes
reuniões em público, se arrependem do seu racismo e pedem aos militantes negros
perdão pelos seus pecados”(pg. 33). “A nova religião é pregada com exaltação por estes novos conversos,
que, de repente, sentem ver o mundo de outra forma, descobrem o mal presente
neles mesmos e dão um sentido novo à sua vida, combatendo este mal”
(pg.34). Braunstein alinha com o
filósofo americano Joseph Bottum e, em particular, com a sua obra An anxious
age: The post-Protestant ethic and the spirit of America (2014), que postula
uma deslocação, mais notória a partir de meados do século XX, das inquietações
religiosas das elites WASP (brancos, anglo-saxónicos, protestantes) americanas
para o domínio social e político, dando origem a um grupo que herdou dos avós a
visão do mundo como estando dominado por forças malignas, a consciência de
pertença a uma elite espiritual, a certeza de que fazem parte das “pessoas de
bem”, uma grande autoconfiança e um pendor para o puritanismo e para fazer
julgamentos sobre os outros. Segundo
Bottum, estes “pós-protestantes” distinguem-se dos seus avós sobretudo por não
serem religiosos e por o seu puritanismo nada ter a ver com sexo, matéria em que são assaz
liberais. E a sua convicção de
superioridade moral é tal que, como disse Bottum numa palestra de
apresentação de An anxious age no American Enterprise
Institute, em Washington DC, a 10.02.2014, “estão
determinados a recorrer à lei para impor os comportamentos que consideram serem
os correctos”.
A visão de
Bottum da deslocação, ocorrida nos
EUA, da religião para o campo da política é secundada pelo politólogo Joshua Mitchell, outro autor também citado por
Braunstein. Em American awakening: Identity politics and other
afflictions of our time, de 2020 (que não faz parte da abrangente bibliografia citada por Braunstein), Mitchell identifica o wokismo
com aquilo que designa por Quarto Grande Despertar: “O Despertar que agora estamos a viver tem uma natureza religiosa que se
manifesta através da política (ainda que não o reconheça), não tem lugar para o Deus que julga ou para o Deus que perdoa, e
conduziu a América a um beco sem saída e para lá do qual nada se descortina.
A política identitária faz julgamentos, baseada não em pecados por acção ou omissão, mas nos atributos,
publicamente visíveis e insusceptíveis de alteração, que precedem seja o que
for que um cidadão faça ou deixe de fazer. A política identitária não prevê
perdão pelas transgressões, pois estas são irredimíveis. A política liberal [no sentido
americano do termo] esteve, em tempos,
consagrada em trabalhar conjuntamente para construir um mundo melhor. A
política identitária […] transformou a política num evento religioso de
natureza sacrificial. Para já, o irresgatável bode
expiatório é o homem branco e heterossexual”.
Encontro
campal metodista, EUA, 1839. A Igreja Metodista foi a instituição mais
relevante no chamado Second Great Awakening
O wokismo é filho do pós-estruturalismo?
Muitos
adversários do wokismo têm identificado a sua origem na filosofia
pós-estruturalista, que no mundo anglo-saxónico é também conhecido por French
Theory e tem entre as suas figuras de proa Roland
Barthes, Jacques Derrida, Michel Foucault, Jacques Lacan ou Jean-François
Lyotard. Braunstein
rejeita esta tese com vários argumentos:
1) Os pós-estruturalistas “são
teóricos puros não se preocupam em agir sobre o mundo” (pg. 19) e são mais “descritivos do que
prescritivos”, ao contrário do wokismo, que está apostado em virar do avesso a
ordem social.
2) “Os pensadores woke são ultra-identitários que pretendem combater em nome
desta ou daquela comunidade oprimida”, enquanto “os filósofos da French Theory […] fazem por
perturbar, ou mesmo apagar, as noções de identidade e de indivíduo”
(pg.20).
3) O “pensamento sempre irónico e interrogativo [da
French Theory] dá-se mal com a boa consciência satisfeita […], a
seriedade e a ausência de questionamento que caracterizam o pensamento woke”. “É absoluta a diferença entre indivíduos que jogam com as normas e militantes fanáticos que aderem a uma norma
predeterminada sem jamais a questionar. De um
lado, filósofos, curiosos e móveis; do outro, militantes e pregadores” (pg.
22).
Porém,
Braunstein não considera um importante – e obnóxio – contributo dos
pós-estruturalistas para a filosofia: o questionamento sistemáticos dos
“factos” comummente aceites, que estes filósofos vêem como meras ficções,
criadas e promovidas de acordo com a conveniência quem detém o poder. Allan
Bloom, um proeminente opositor do
pós-estruturalismo, denuncia esta corrente filosófica em A destruição do
espírito americano (que é outro dos ensaios incluídos na colecção “Os livros
não se rendem”) nestes termos: “A escola
[do] desconstrucionismo [uma ramificação do pós-estruturalismo] corresponde à
última fase, previsível, da supressão da razão e da negação da possibilidade de
verdade em nome da filosofia. A actividade criadora do intérprete é mais
importante do que o texto; não há texto, apenas interpretação. Assim, aquilo
que que é mais necessário para nós, o conhecimento daquilo que estes textos têm
para nos dizer, passa para o controlo da personalidade subjectiva e criadora
destes intérpretes, que negam quer o texto quer a realidade a que este se
refere” (ver Platão, Nietzsche e Mick Jagger: Entre guerras culturais e crises
civilizacionais). Estas concepções, nascidas no campo da literatura comparada,
acabaram por estender-se à filosofia e às ciências sociais e humanidades em geral,
promovendo a instabilização dos conceitos de verdade e de objectividade e a
ideia de que tudo depende da interpretação.
(CONTINUA)
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