Desta vez reais. Com dragões a sério,
mas sem Quixotes que os ataquem, com eficiência, reduzidos ao seu papel de
Sanchos Panças, interesseiros e sem ideais nem nobreza. Lessem, ao menos, Jaime
Nogueira Pinto, em
revisão de posições e de sentimentos.
Um socialista às direitas
Quando o socialismo e a esquerda
espanhola parecem enterrar-se no compromisso separatista para manter o poder a
qualquer preço, é bom ouvir a voz crítica e patriota de um dos seus pais
fundadores.
JAIME NOGUEIRA
PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 11 nov. 2023
O esforço de Pedro
Sanchéz para se manter no poder depois do resultado das
eleições de Julho mergulhou a Espanha numa encruzilhada política e existencial. É que para o chefe do governo de Madrid e líder
do PSOE não bastava a aliança com a extrema-esquerda, com o Sumar, de Yolanda
Diaz: precisava também dos separatistas, dos vascos do EH Bildu, que agrega
antigos membros da ETA, como o líder do Herri Batasuna, Arnaldo Otegi, e dos
catalães do ERC e do Junts. Separatistas esses que, depois de terem
chumbado, com o PSOE e o Sumar, a candidatura de Alberto Feijóo, líder do PP,
apoiada pela Direita nacional-conservadora do Vox e pelos representantes da UPN
e dos regionalistas das Baleares, não estavam dispostos a viabilizar a
investidura do governo de Sanchéz sem contrapartidas. As
contrapartidas eram a amnistia ou indulto para os condenados pelos
referendos ilegais da Catalunha e a garantia de plebiscitos à independência do
País Vasco e da Catalunha.
Ora semelhantes exigências, além de serem contra a letra da
Constituição, são uma machadada na unidade de Espanha. Mas Sanchéz, para se aguentar no poder,
estava disposto a satisfazê-las – e satisfez. Mas nem todos os socialistas
estão com ele.
O problema dos separatismos
A Espanha tem um problema nacional que, em épocas de crise, renasce
e se torna ameaçador para a sua existência enquanto nação.
Os
separatismos vasco e catalão, que se definem como nacionalismos, renasceram com o romantismo político do
século XIX, como reacção ao ímpeto centralizador da administração espanhola,
influenciado pela revolução de 89 e o império bonapartista.
Houve
fenómenos regionais ou regionalizantes noutras áreas de Espanha – na
Galiza, na Andaluzia, nas Baleares – mas sem a intensidade dos da Catalunha e
do País Vasco. A abolição
dos fueros, integrada no movimento centralista do século XIX,
também contribuiu para isso, bem como o desenvolvimento industrial, que teve
como núcleos principais precisamente a Catalunha e o País Vasco. No entanto,
como sempre me lembrava o meu saudoso
amigo Juan Vellarde Fuertes, os industriais e os banqueiros
catalães e vascos também sabiam que só tinham a ganhar com a unidade da Espanha
e o consequente proteccionismo.
O “desastre del 98” – o fim do império espanhol, com a perda
traumática de Cuba e das Filipinas – animou os separatismos
entre as elites regionais. Mas quer o
fundador do separatismo vasco, Sabino Arana, quer os catalães Prat de la Riba e
Francesc Cambó se queixavam de não encontrar grande entusiasmo popular pelas
suas ideias, referindo-se mesmo à recusa ou à indiferença dos seus conterrâneos
e contemporâneos perante a causa da independência. Os riscos de
fragmentação ou desagregação das metrópoles quando o objectivo comum imperial
desaparece é um fenómeno recorrente em Estados plurinacionais no sentido
geográfico-cultural. No século XIX, com a perda do Brasil e até à
crise e humilhação do Ultimato, também
entre as nossas elites intelectuais surgiu uma tentação de desagregação ou de
reagregação oposta à de Espanha: o iberismo.
Os “nacionalismos” vasco e catalão
Os fundadores dos nacionalismos catalão e vasco eram católicos e
conservadores. De direita, diríamos. Isso iria mudar, mais cedo na Catalunha,
mais tarde no País Vasco. E não esqueçamos que, em ambas as regiões, o carlismo teve forte implantação; mas o carlismo
foi sempre pela unidade espanhola.
Tudo mudou com a crise dos anos Trinta – depois da queda de Miguel Primo de Rivera e da sua
ditadura comissarial para salvar a ordem e a monarquia (à semelhança de João Franco que, vinte anos
antes, tentara, em Portugal, salvar a Coroa) – e a guerra civil que a Frente Popular
desencadeou, começando a matar padres e a incendiar igrejas. A República
e a Guerra Civil deram lugar a uma institucionalização dos
separatismos, com a Esquerda Republicana
de Catalunya a ganhar hegemonia, muito apoiada pelos anarquistas da
Confederação Nacional do Trabalho. No
País Vasco foi diferente: entre as cúpulas separatistas do PNV persistiu a
direita católica, embora numa aliança “republicana” com movimentos socialistas
e comunistas.
Franco ganhou a Guerra Civil
ao cabo de quase três anos; depois, suprimiu os governos separatistas,
tornou o espanhol língua oficial e obrigatória e proibiu o vasco e o catalão. Com a transição
pós-franquista e a restauração da dinastia borbónica, na pessoa de D. Juan
Carlos I, neto do último rei de Espanha, Afonso XIII, os partidos separatistas
voltaram à legalidade e o separatismo renasceu no País Vasco e na Catalunha.
No País Vasco, o partido separatista tradicional – o Partido
Nacionalista Vasco – seguiu a via político-eleitoral; mas,
paralelamente, com força e a marcar com sangue e cadáveres a reivindicação, afirmou-se o terrorismo da ETA, apoiada
por estratos esquerdistas e radicais da sociedade vasca.
Bem pelo contrário, na Catalunha, triunfou a guerra cultural, a
estratégia gramsciana da longa marcha através das ideias e das instituições,
contida no chamado “Plano 2000” de Jordi Pujol, Presidente da Generalitat. Consistiu esta estratégia em impregnar de
nacionalismo catalão o ensino, introduzindo e aprofundando o estudo da Língua,
da História e da Geografia da Catalunha e dos “Països Catalans”. Tudo
isto foi complementado no ensino universitário, pondo os meios de comunicação
da Generalitat ao serviço do catalanismo e fazendo com que fossem vistos,
ouvidos e lidos em qualquer ponto da Catalunha. Houve também uma
“catalanização” do desporto e dos tempos livres.
Com
tudo isto, os movimentos independentistas, claramente minoritários à morte de
Franco, foram crescendo nos últimos 50 anos. E os partidos nacionais – o PSOE
como o PP – foram-nos normalizando e caucionando ao negociar com eles para
fazer passar governos no Parlamento de Madrid.
Contra a negociação
Agora,
perante este acordo inédito, há duas figuras do socialismo espanhol
pós-franquista que se têm desmultiplicado em intervenções públicas,
demarcando-se e criticando veementemente as negociações do seu sucessor e
correligionário Sanchéz para guardar o poder: o antigo
primeiro-ministro Filipe Gonzalez e o seu vice-presidente Alfonso Guerra.
Guerra voltou a
fazê-lo no Domingo passado (5 de Novembro de 2023) em entrevista a Ignacio
Camacho no quotidiano madrileno ABC – um jornal de centro-direita. Encarnando
uma linha que sempre foi a sua, Guerra
sai da reserva institucional por coerência patriótica e nacional para se
pronunciar contra os seus continuadores dispostos a tudo, ou a quase tudo, para
permanecerem no poder. E não hesita em dizer: “La izquierda ha perdido el norte. Ha olvidado su misión”, frase
que serve de chamada de capa no ABC. E o que é, para Guerra, a
“missão” da esquerda? É “defender a maioria de umas minorias insaciáveis”
e não deixar que se sacrifiquem os ideais sociais à “correcção política” e às
“políticas de género”. Diz Guerra que “hoje os partidos de Esquerda têm secretarias da Igualdade que se
ocupam exclusivamente da igualdade entre homens e mulheres” e não da “igualdade
de oportunidades” entre os filhos e filhas de diferentes classes sociais.
“Agora está tudo fragmentado em
função do sexo”, acrescenta.
Fala também na sua intervenção na Constituição de 78 que, diz, pôs
fim, não só à guerra civil, mas “a dois séculos de enfrentamento entre
espanhóis” (Não resisto a lembrar que um seu correligionário, Rodriguez
Sapatero, com a lei da Memória Histórica, veio reabrir um dossier que, melhor
ou pior, estava fechado). Mas Guerra
fala, sobretudo, contra os indultos, as amnistias e o negócio com os
separatistas, reservando especial indignação para a fotografia de Sanchéz com Otegi,
dirigente da ETA, agora dirigente do EH Bildu: “Otegi é o
mesmo. E agora [os Etarras] vão ser meus sócios? Não, esses não são meus
sócios, são meus inimigos”. “Yo, esa
foto no la trago”. Alfonso Guerra não esquece os seus
amigos e companheiros de partido, assassinados pela ETA, sublinhando que quer
um governo socialista, mas não a qualquer preço.
Nos comentários pessoais, regressa à sua
velha causticidade: falando da
amnistia, refere-se a Puigdemont como “uma personagem cobarde, atrabiliária e
delinquente”; e afirma que nunca falou com Pablo Iglesias, apesar de ter
recebido solicitações nesse sentido. Quanto à guerra contra Don Juan Carlos,
sai em defesa do “rei Emérito”:
“De
faldas e de dinero se puede pensar todo lo que se quiera pero… eso no pueda opacar
que un Rey que ha recibido de Franco todos los poderes, diga que no los quiere,
que quiere una democracia.”
Mesmo que ideologicamente estejamos noutros meridianos, um político
da Esquerda socialista, anticomunista e patriota, que recusa os jogos e os
artifícios dos seus correligionários para ficarem no poder em geringonças que
poem em risco a unidade do país, não deixa de ser um exemplo.
Era bom que a nossa Esquerda assim fosse – esclarecida,
patriota e lembrada dos velhos ideais sociais – e não uma classe de
políticos profissionais, uma burocracia clientelista e predadora do Estado, uma
rede opressiva que, para se manter no poder, se vai socorrendo de toda e
qualquer moda ideológica e cedendo a todo e qualquer grupo de pressão, por mais
destrutivos, censórios e contrários ao senso e ao sentimento comum que possam
ser; uma classe que, lá e cá, cada vez mais se parece com uma
cleptocracia de interesses dedicada à pilhagem do Estado e da sociedade.
Pacto anunciado em Bruxelas e atentado em Madrid
Na
quinta-feira, 9 de Novembro, para grande choque de parte da sociedade
espanhola, tornou-se público o acordo entre Sanchéz e Puigdemont. O governo do PSOE garante ao Junts amnistia
total e aceita que um mediador internacional negoceie um acordo para um referendo.
A oposição logo se pronunciou contra este pacto que põe em causa a
unidade de Espanha. Feijóo
qualificou-o de “processo de capitulação” e Abascal chamou “ditador” a Sanchéz.
O acordo foi anunciado em Bruxelas, onde estiveram Puigdemont e o número três
do PSOE, Santos Cerdán.
Não deixa de ser sintomático que o acordo sobre o que poderá vir a
ser a fragmentação de Espanha se tenha celebrado no exterior, em Bruxelas, e
que o país entregue a um mediador internacional a preparação e negociação do
referendo.
Também
sintomático foi o acto inédito de terrorismo que vitimou Alejo Vidal-Quadras,
antigo Presidente do Partido Popular da Catalunha e um dos fundadores do Vox
(partido de que, entretanto, saiu). Vidal-Quadras é um dos mais acirrados
críticos dos acordos PSOE-separatistas e foi alvejado na Calle Nuñez de Balboa,
em pleno bairro de Salamanca, quando regressava a casa, vindo da missa.
A SEXTA COLUNA HISTÓRIA CULTURA ESPANHA
EUROPA
MUNDO
COMENTÁRIOS (de 19):
José Carvalho: Muito boa análise do separatismo espanhol. A constituição de 1978
foi uma solução de compromisso entre as "duas Espanhas" eternamente
enfrentadas, recém-saídas da "pax franquista". Ao permitir
partidos regionalistas com assento no parlamento nacional, que pela sua
dimensão acabam por fazer de charneira, acabou por colocar nas mãos dos
separatistas a governação do país. Muitos avanços
do separatismo foram assim conquistados em contrapartidas. O pior é quando surge um tipo
sem uma réstea de escrúpulos, capaz de entregar o país por meia dúzia de votos. Kakuri
Kanna: Mais uma excelente análise de
Jaime Nogueira Pinto, sempre baseado na história. Um artigo que mostra o que se passa em Espanha, com
base histórica e mostra igualmente o que sucede quando a ideologia degenera e
desaparece, para apenas manter o poder e o poder serve apenas para sustentar
clientelas, lá como cá, as coisas não são diferentes como de forma implícita
está no magnífico texto. João Floriano: Excelente, como tudo o que sai
do pensamento de Jaime Nogueira Pinto. Há uma questão que nunca é colocada: a
Espanha sobrevive sem a Catalunha mas a Catalunha sobrevive sem a Espanha?
Quando falo em sobreviver falo em manter a pujança económica que sempre
associamos a Barcelona e à Catalunha. Barcelona já esteve na moda como Londres
estava nos anos 70. Vou a Barcelona com uma certa frequência sobretudo no verão
desde 1997 e posso testemunhar que Barcelona dessa época era muito diferente do
que é hoje: era muito melhor no passado, mais limpa, mais segura se bem que os
carteiristas das Ramblas fossem igualmente eficientes. Os restantes espanhóis
não morrem de amores pelos catalães. Uma das constantes indicações que o meu
filho me dá quando cá ou em Madrid me encontro com o seu grupo de amigos é
sempre a mesma: «Bico calado sobre a Catalunha!». Os catalães terão de
estar preparados para ver o seu nível económico descer e não sabemos como a UE
irá reagir ao separatismo se se vier a concretizar. Entretanto Sánchez
anda a brincar com o fogo. João Floriano > José B. Dias: Em Espanha é Sánchez que desvirtua
um partido com muita tradição como o PSOE. Em Portugal essa tarefa cabe a
António Costa.
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