Refiro-me ao “caso
Costa”, que o terceiro comentador da crónica de MARIA JOÃO AVILLEZ põe em causa, na questão do rato parido pela
montanha aos berros. Não vejo isso assim. O nosso alarido useiro e vezeiro
costuma, de facto, ser diminuto nos seus efeitos. Mas desta vez, eu diria antes
uma floresta de partos, de ratos que sejam, à nossa medida, (pese embora o “milagre”
do evento contado na fábula, um monte jamais talhado para parir, nem mesmo um
rato, o que seria sempre um milagre absurdo). Não, a nossa montanha berra com
toda a razão para o fazer, e nem sequer metaforicamente. Mas inutilmente, sim.
Deus? (e conversas em causa própria)
Diante dos nossos olhos distraídos e
de passividade conivente, a desocidentalização faz o seu caminho. À vista
desarmada, o Ocidente esmorece, Cristo desaparece. Não é uma “impressão”, é um
facto.
MARIA JOÃO AVILLEZ Jornalista,
colunista do Observador
OBSERVADOR, 08
nov. 2023, 00:2210
1Foi um dia, já há um bom de
anos, ainda o Cardeal José Tolentino de Mendonça estava na Capela do Rato,
mas lembro-me bem porque foi aí que começaram as “Conversas”. Recordo-me
sobretudo do porquê. Ou seja da razão de ser de uma escolha concreta, no caso,
esta mesma que hoje me traz: conversar com figuras públicas (peço desculpa da
horrenda expressão) com Deus lá dentro. Arte, literatura, cidadania, ciência,
música, política: sentidas, interpretadas, transmitidas por aqueles e aquelas
que sendo seus protagonistas, o fazem num traço de união com a fé. Posso dar
outro nome: com uma relação com o sagrado. E ainda outro: com a noção de uma
inspiração que por vezes transcende os limites da própria existência.
O caso da beleza-versus-sagrado
questiona e interpela: criar pode ser uma forma de interpretar o divino? Bach
ou Boticcelli estariam a falar com Deus quando pintavam ou compunham? (Ou Deus
a falar com eles?) A fé celebra a criatividade ou transtorna-a?
Numa palavra: de que coisa falamos, quando arte e sagrado, beleza e
espiritualidade interagem ou dialogam? De Deus?
2O (então) Padre
Tolentino, talvez uma das pessoas no mundo a quem estou mais grata e com
quem superlativamente gostei de colaborar mais de uma vez, sugerira-me colaborar
com a Capela Rato da qual era na altura o capelão. Seguindo aliás a
tradição de muitas ocorrências e intervenções ali ocorridas desde há muitos
anos. Assentámos na natureza destas “Conversas”. Chamavam-se “E
Deus, nisso tudo?” e ouviram-se muitas e muitos,
num leque que se ia abrindo, sempre de modo e modos diferentes, para deixar ver
percursos, opiniões, histórias, surpresas, desabafos, memórias. Em torno de uma
espiritualidade e uma verdade com substância. Tornei a fazê-lo na Igreja do
Campo Grande (a convite do seu jovem prior, Hugo Gonçalves) e hoje volto à
Capela do Rato.
O Padre
António Martins, “sucessor” do Cardeal Tolentino, sugeriu uma reedição:
perguntar, perguntar, ouvir, ouvir. O que será
andar com Deus na mochila? Um desejo, uma responsabilidade, uma oportunidade,
uma provação, um privilégio? Eles dirão. Sebastião Bugalho, Matilde Trocado,
David Lopes, Martim Sousa Tavares, Ilda David, dirão.
3Dará que
pensar a maior – ou menor – procura de Deus neste tempo sombrio. A fé responsabiliza o discernimento. Mas diante dos écrans da barbárie
ouço por vezes – atribuir a “culpa” a Deus por “permitir “ o não permissível. O
desnorte e a aflição substituem facilmente a racionalidade. E no entanto… a
escolha entre a vida e a morte está na vontade do ser humano em usar da sua
liberdade mesmo que nem sempre possamos perceber o que nos perturba.
4Uma coisa é
certa e parece em curso. Chama-se desocidentalização (e deveria dizer também
descristianização). Pode ainda não parecer mas não é de hoje, tem vindo
a ser plantada e o seu solo a ser criteriosamente adubado. Diante dos nossos
olhos distraídos e de uma passividade conivente, a desocidentalização vem
fazendo um caminho. À vista desarmada, o Ocidente esmorece, Cristo
desaparece. Não é uma “impressão” ou um pressentimento, é um facto. Não deveria
ser disfarçado ou apenas visto como um tempo entre guerras, um atordoado entre-parêntesis,
um corte temporário, como numa avaria eléctrica. Parece-se com a dissolução
de uma matriz, o termo de uma longa era, o fim de uma história tecida pelos
melhores valores espirituais e civilizacionais. Apesar dos cortejos do mal,
apesar do que o Ocidente permitiu de terrível ou promoveu de inominável no
século XX, há uma marca e uma herança que julgo não terem a mesma exacta
correspondência noutras latitudes. Sempre invejado, apetecido e
incansavelmente procurado, o Ocidente vai-se esvaindo, corroído pelos vírus da
decadência. Talvez desapareça daqui a dez anos ou meio século, as civilizações
extinguem-se, a decadência tome o seu tempo: há muito que com uma indiferença
pastosa e difícil de interpretar, os vírus da decadência se activam com sucesso
na gangrena ocidental. Não contariam certamente com a benevolência com que
são acolhidos num corpo doente, nem ainda menos esperariam tão cúmplices mãos a
abrirem-lhes o caminho.
5Um pouco mais de vinte quatro
horas após o dia 7 de Outubro, ficámos informados – porque o testemunhámos em
directo – de que as ruas ocidentais se confundiam com as ruas árabes no calibre
do seu ódio a Israel. Repulsa visceral. Os dias seguintes ampliaram a escalada
desta escolha. E nesse sentido, na liberdade dessa demissão do ocidente, as
ruas mais cultas, mais desenvolvidas, mais intelectualmente sofisticadas e mais
caras de muitas cidades europeias certificaram o pasmo aflito pelo que pode vir
a suceder.
6 Então porquê estas “Conversas” – e acreditando nelas –
se quase descrevi um requiem? Porque não se pode desistir. Não pode. Continuar,
dá “anima” à esperança, consola-a. A esperança é desafiadora e depois ou
perde-se ou ganha-se mas respondeu-se ao desafio. Ao menos isso. E conversar
sobre o belo e o transcendente é em si um sinal dessa esperança.
A crónica acima
foi entregue antes da demissão do Primeiro Ministro. Três notas que
acrescentei:
Ontem foi o pior
dia político da vida de António Costa e o melhor da vida de André Ventura. Há
muito por esclarecer mas isto ficou esclarecido: o Primeiro Ministro saiu da
mais terrível das maneiras, o fantasma de José Sócrates não cabia naquela sala;
André Ventura entrará da melhor maneira no portão das eleições.
Não só não
julgo que António Costa tenha que fechar a porta ao seu próprio regresso à política
como não acho que o tenha feito. Havia a
obrigação de uma demissão – um chefe de gabinete está no coração do poder e
Galamba era o detonador de todos os furacões. Isto dito, parecem esbatidos
os indícios de mais. Pode ser que eu esteja enganada e Costa tenha partido de
vez. Em qualquer caso o país merecia que a Justiça se despachasse de vez.
Por muito que
não me caiba a mim qualquer “parecer” antes da Justiça se pronunciar sobre os
detidos de ontem de manhã, a verdade é que dois deles – Lacerda Machado e
Vítor Escária – nunca me pareceu coincidirem com o que a política mais exige e
recomenda: ética, ética, ética. Todos os sinais vermelhos de promiscuidade
entre o dinheiro e a política estavam há muito acesos. Por ambos.
OCIDENTE MUNDO RELIGIÃO SOCIEDADE ANTÓNIO
COSTA POLÍTICA IGREJA
CATÓLICA CONFLITO
ISRAELO-PALESTINIANO
COMENTÁRIOS (de 10)
João Floriano > Américo Silva: «............ninguém toma partido pela
Europa.........» Nem mesmo os europeus. Quem toma partido pela Europa é
mimoseado com uma longa lista de adjectivos nenhum deles particularmente
empático. O mainstream de que fala corre contra a Europa.
JOHN MARTINS: Quanto à parte final da crónica, a demissão de Costa,
era notório e adivinhava-se o fim de ciclo; mas não com este estrondo. Ser
obrigado a apresentar o seu pedido de demissão, perante o PR,
manifestamente menosprezado e galambado, por casos, uma vez mais, relacionados
com os seus mais directos colaboradores, deve ter sido dificílimo de
aguentar...Fraco legado de Costa, que deixa o Partido Socialista e o País em
estado pobre e pandémico...
João Floriano > JOHN MARTINS: Já estão em plena reorganização, encontraram
para já uma linha inicial de discurso e um inimigo comum: o Ministério
Público. De facto nunca o MP foi tão alto na investigação de crimes económicos:
um PM em funções investigado e alguns dos seus ministros e colaboradores mais
próximos detidos ou arguidos, é notável. Portanto para bem da justiça é bom
que isto não seja mais uma montanha que pariu o rato.
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