O Grande Irmão. Nada de queixumes. Vivemos – nós, portugueses
sujeitos, no melhor dos mundos. Os mais, é / foi lá com eles.
Excelente crónica de PATRICIA FERNANDES.
Só que acho que a mulher da rixa não era uma qualquer, era princesa e era uma
filha, boa menina, amada dos pais, e tinha a ver com ventos. Era uma discussão
de ventos, o clima já então relevante, para a escolha das Gretas heroínas das
histórias – irreais ou verdadeiras – que deixam eco. Connosco, não se trata de
ventos, mas de débitos, substitutos de esforço, mas o Grande Irmão assim ordena,
e ele sabe o quanto pode. Quanto aos de lá, dos próximos dos da rixa que causou
a primeira vítima literária, eles que se entendam. Haverá sempre melhores
ventos para as grandes guerras da História e o Grande Irmão não tardará a
impor-se, que tem meios para tal, sublinhados, por ora, em pinceladas de luzes destruidoras
nos céus, sem necessidade de ventos e causando danos na Terra, com vítimas embarda.
Até que o Grande Irmão se imponha, e há vários a concorrer. Que a submissão é
connosco, temos o sofá para os filmes - reais e fictícios – e sem lutas morais
sequer. E assim vamos admirando os apontadores das vítimas, buscadores dos
ventos favoráveis às suas próprias conquistas, criadoras de uma irmandade
própria.
Um grande texto de PATRICIA
FERNANDES, que grandes COMENTÁRIOS
mereceu. Vale a pena viver, com leituras destas, decifradoras do mundo
que assim vai… ou vem e em que todos somos vítimas, não o devemos esquecer.
A política de vitimização
Se não há paz social entre nós, tal
acontece porque o país tem muito pouco a oferecer à maioria dos portugueses, e
não só a certas identidades; e se há revolta social, ela não está confinada a
bolsas.
PATRÍCIA FERNANDES, Professora na Escola de Economia e Gestão da
Universidade do Minho
OBSERVADOR, 06 nov. 2023, 00:1826
1A cultura do herói
Em A Mancha Humana, Philip
Roth entrega ao professor de estudos
clássicos, Coleman
Silk, a famosa
formulação sobre o início da literatura europeia:
“Sabem
como começou a literatura europeia? Com uma discussão. Toda a literatura
europeia nasce de uma briga. (…) E acerca de que discutem essas duas violentas
e poderosas criaturas [Agamémnon e Aquiles]? De uma coisa tão primitiva como uma rixa de
taberna. Discutem por causa de uma mulher.”
Ao estilo rothiano, o argumento
desenvolve-se até chegarmos “à dignidade
fálica de um possante príncipe guerreiro”. Mas, como em quase tudo na vida,
importa mais como o livro termina do que como começa. Será possível esquecer o final de Mil novecentos e
oitenta e quatro?
“Mas
estava tudo bem, tudo bem, a luta chegara ao fim. Alcançara a vitória sobre si
próprio. Amava o Grande Irmão.”
Ou o de Submissão?
“Tal
como acontecera, alguns anos antes, com o meu pai, também agora se abriria
perante mim uma nova oportunidade; e seria a oportunidade de uma segunda vida,
sem grande relação com a vida anterior. Não teria nada de que me arrepender.”
Ora, se a literatura europeia começa
com uma discussão por causa de uma mulher, a Ilíada termina
com um funeral: “E assim
foi o funeral de Heitor, domador de cavalos”.
Poderia
parecer estranho que uma história contada para louvar a guerra que os Aqueus
venceram termine com o funeral de um troiano, ainda mais o responsável pela
morte de Pátroclo, vingada por Aquiles. Mas Heitor é, na verdade, o grande
herói da Ilíada – admirado por todos, gregos e troianos, pela sua
coragem, disciplina e honestidade (tão distante do orgulhoso Aquiles, do
violento Agamémnon ou do ardiloso Ulisses). Quando
Homero canta a Ilíada, canta todos os heróis, mas Heitor acima de todos, consagrando para as gerações seguintes o
modelo de cidadão.
A
literatura europeia começa, assim, não só com mulheres e sexo, mas sobretudo
com a dignidade heroica daqueles que admiramos e que nos fizeram, ao longo de
três mil anos, erguer estátuas e nomear ruas. Queremos
recordar esses heróis porque, de múltiplas formas, nos legaram algo que
valorizamos.
2A cultura da vítima
Numa perspetiva nietzschiana,
a corrupção da cultura de heroicidade começou com a adopção dos valores
do judaísmo e do cristianismo, que
representariam aquilo que Nietzsche designa como a moralidade do escravo. (As suas
ideias relativas aos conceitos de mal, culpa e ressentimento, úteis para
compreender os nossos dias, terão de ficar para outro artigo.) O
argumento de Nietzsche pode ser, naturalmente, contestado, mas ele parece ter
sido capaz de captar uma transformação que, no século XXI, se tornou evidente: vivemos
hoje numa cultura que coloca a vítima no cerne da reflexão política. Como chegámos até aqui?
Muitos factores parecem ter contribuído para essa transformação, mas
um dos mais relevantes resulta da viragem identitária que foi empreendida pelo
pensamento identitário ao longo da segunda metade do século XX. Essa viragem identitária traduz-se na ideia
de que o modo como percepcionamos
o mundo e a realidade depende da nossa identidade e, por isso, a história
humana desenrola-se a partir das relações de luta e poder entre diferentes
identidades, das quais resultam um grupo opressor e grupos oprimidos. Os oprimidos – as vítimas da história –
foram sempre silenciados, excluídos da história, pois esta é contada pelos
vencedores. Importa agora, de acordo com a lógica identitária, dar a voz às vítimas para que possam obter a
reparação e a compensação pelos danos passados.
A transformação que coloca a vítima no cerne da política
justificar-se-ia, então, por razões de justiça (e é por isso que a narrativa
identitária se torna tão sedutora): se a história tem sido contada pelos
vencedores, que foram silenciando as vozes dos grupos oprimidos, os princípios
de justiça exigiriam que o protagonismo seja agora dado aos grupos
historicamente silenciados.
Porém, esse processo de
reconhecimento de injustiças acabou por estabelecer o mais perigoso de todos os
princípios: o de
que só a voz da vítima é autêntica pelo que apenas a vítima
teria verdadeira legitimidade política. Nessa medida, as políticas identitárias têm transformado
os nossos sistemas democráticos em
sistemas vitimocráticos.
3As políticas de vitimização
Em Left is not
woke, Susan Neiman formula esta nova fonte de
legitimidade do seguinte modo: o
modelo de vitimização substitui a velha ideia de que as reivindicações
políticas se baseiam no que fizemos ao mundo por uma versão em que as
reivindicações políticas se passam a basear naquilo que o mundo nos fez. Assim,
o reconhecimento social e político deixa de decorrer do nosso contributo para a
sociedade para passar a ser entendido como nos sendo
devido independentemente daquilo que fazemos. E mais importante ainda:
passa a centrar-se no presumível sofrimento que nos foi infligido e do qual
somos os únicos avaliadores (isto, claro, se não pertencermos ao grupo
opressor, i.e., homens brancos cis heterossexuais).
Esta mudança gera dois movimentos igualmente perversos. O primeiro deles traduz-se no estímulo a que nos percepcionemos
e apresentemos como vítimas – é
dessa forma que asseguramos a nossa legitimidade política; e dentro desse paradigma de vitimização,
importa mostrar que somos mais vítimas do que os outros. É a chamada corrida pelo
estatuto de vítima, sempre acompanhada pela competição para se
ser a vítima-maior, levando a que
se amplifique artificialmente
o sofrimento, e que dispensa a assunção de qualquer
responsabilidade pessoal quanto às condições actuais.
O segundo movimento acontece por parte daqueles que não têm
material de vida suficiente para reclamar o lugar de vítima (ou porque
não pertencem a grupos identitários historicamente oprimidos ou porque, apesar
de pertencerem, têm privilégios sociais e materiais evidentes). Como diz
Claire Fox, em “I STILL find
that offensive”, estes “tentam muitas vezes compensar com uma
empatia excessiva em relação aos grupos de vítimas, como se o sofrimento dessas
pessoas lhes pudesse passar alguma credibilidade”. E seria
isto a explicar “a tendência crescente
de alguns liberais especialmente privilegiados para se sentirem particularmente
ofendidos em nome de grupos de vítimas e disfarçarem isso como uma forma de activismo
político de justiça social”.
É da confluência destes dois movimentos que têm resultado as
políticas de vitimização adoptadas nas últimas décadas no ocidente, e de que é
exemplo entre nós a chamada Lei
da Paridade. E conforme
a agenda racial vai sendo importada dos Estados Unidos para a Europa, começam a
surgir propostas para outro tipo de quotas, como as étnico-raciais. Foi
o que fez recentemente Francisca Van Dunem, conforme noticiou o Público, para que sejam introduzidas quotas para minorias
racializadas (sic), não só no ensino superior como também nas forças de
segurança e na função pública. Vou reservar, por agora, o facto de, mais uma
vez, a elite política confundir a realidade da zona metropolitana de Lisboa com
o resto do país, para me centrar na argumentação apresentada: estas medidas serviriam “para criar algum
apaziguamento social”, na medida em que “existem hoje bolsas de grande revolta”
entre estas minorias. Encontramos neste argumento dois erros que não podem ser
menosprezados.
O primeiro erro (que parece decorrer de malícia
intelectual) resulta da defesa de que medidas de discriminação
positiva “criam apaziguamento social”. Em
sentido contrário, o que os dados mostram é que, nos países em que este tipo de
medidas foi adoptado, a paz social diminuiu e as sociedades passaram a sofrer de uma forte
polarização política e social. Basta olhar para o que aconteceu nos
Estados Unidos ou no Brasil. E isso não constitui uma surpresa: o objectivo das
políticas identitárias é precisamente dividir a sociedade e fazer com
que nos percepcionemos uns aos outros como inimigos.
O segundo erro prende-se com o
facto de a abordagem identitária olhar para os problemas sociais exclusivamente
a partir do factor identitário, quando, na verdade, as razões para esses
problemas estão quase sempre para lá desse modo míope de ver realidade. E
no caso português isso é particularmente evidente: se não há paz social entre
nós, tal acontece porque o país tem muito pouco a oferecer à maioria dos
portugueses, e não só a certas identidades; e se há revolta social, ela não
está confinada a bolsas: o descontentamento é generalizado e resulta de anos de
desgovernação que têm prejudicado a maioria dos portugueses, e não só
certas identidades. Bastaria dar um passo para fora da bolsa privilegiada em
que a elite política vive para perceber isso – mas a maior preocupação hoje
parece ser a de seguir a moda da vitimização identitária.
POLITICAMENTE CORRECTO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS (de 26):
Ana Luís da Silva: Toda a mentira começa com uma
verdade distorcida. É por aí que surgem os movimentos (identitários ou outros),
convencendo as pessoas sem conhecimento profundo das questões ou sentido
crítico. 1. Quanto à acusação de Nietzche O que o cristianismo em relação à heroicidade
trouxe de novo foram duas consequências. A de que o herói não é auto-suficiente
(depende da graça de Deus, que é
o Bem, e deve cumprir a Sua vontade, os Seus mandamentos), por um lado, e a de que a
verdadeira batalha não é para ser travada com um inimigo exterior mas consigo
próprio (sendo a maior vitória vencer as
más inclinações e o egoísmo em prol dos outros com a ajuda do Espírito Santo), por outro lado. Ou seja,
continua a haver heróis, mas a batalha é quase sempre silenciosa e passa-se no
interior de cada um. 2. Quanto às políticas
identitárias, Concordo em absoluto com o que diz a autora: que o objectivo destas
políticas é precisamente dividir a sociedade, colocando as pessoas umas contra
as outras. Partindo da verdade de que na sociedade certos grupos de pessoas
podem ser vítimas por estarem numa posição mais fragilizada de força, poder,
dinheiro, etc, se outras tirarem partido da sua maior força, de terem mais
poder, ou mais dinheiro, o erro de base do pensamento identitário vem de
considerar a pessoa isolada numa determinada categoria (como uma molécula
retirada do seu meio e rodeada de um ambiente asséptico) em vez de
ser/co-existir num intrincado complexo de relações com outros seres humanos (e com
Deus) e mesmo outras realidades, como a sua cultura histórica. Com efeito, a vitimização é uma construção teórica perniciosa que
acaba por abafar as verdadeiras vítimas (aquelas que são abusadas) cuja maior
defesa são as leis justas (baseadas na verdade) e não a sua
categorização/guetização (vê-se por exemplo muitos negros norte-americanos bem
sucedidos a negarem a cultura Woke por
se sentirem repugnados com o rótulo de vítimas que esta cultura lhes impõe). O que acontece nos nossos
dias e é preocupante é que as leis deixaram de proteger a justiça das
situações (e portanto os mais fracos em relação a abusadores) para passarem a
servir ideologias desconstrutivas do ser humano, imanadas de uma mentalidade
socialista/marxista apostada em isolar a pessoa e em a tornar exclusiva e
totalmente dependente do Estado (totalizante por definição) e, com esse objectivo,
em destruir (a identidade biológica, familiar e histórica) o que de mais
essencial cada pessoa precisa de ter para ser não-vítima: a sua rede de apoio comunitário,
familiar e cultural, que a torna autónoma do poder politico e verdadeiramente
livre das derivas totalitárias, como o comunismo (última fase do socialismo) e
afins. Maria Tubucci: Excelente. Nos dias que correm
a “vítima” quer ser vítima, isso dá-lhe vantagens económicas e sociais. Repare,
o porta-voz do Hamas disse, quando lhe perguntaram porque não usavam os túneis
para protegerem os palestinianos, “os túneis em Gaza eram para eles fazerem a
guerra, as pessoas de Gaza são refugiados, como tal a ONU e Israel que os
protejam”. Este conflito não é sobre território, pois os árabes se quisessem
transformavam Gaza num país, é sobre o ódio a Israel e a chantagem sobre os
ocidentais, para poderem receber milhares de milhões de euros e de dólares para
manterem esse ódio, as próprias populações que se lixem não é problema deles. O
dinheiro que deveria ser usado para o bem é usado para a manutenção do mal e
sua propagação ao ocidente, com os idiotas úteis. O rei da Jordânia disse “ Não
aceitamos refugiados palestinianos, porque não temos de levar com os problemas
dos outros”. Palavras sábias, que foram ouvidas por poucos, muito poucos. A CS
só ouve as minorias guinchantes… joão Cerqueira: É raro encontrar textos tão bem fundamentados como os
de Patrícia Fernandes. Não é fácil traduzir a erudição para uma linguagem
acessível. Dito isto, parece-me que a palavra «liberal» nos EUA equivale em
Portugal a «esquerda caviar». Logo, julgo que no excerto colocado em baixo «alguns
liberais» poderia ser traduzido por «alguns caviares»: “a tendência crescente
de alguns liberais especialmente privilegiados para se sentirem particularmente
ofendidos em nome de grupos de vítimas e disfarçarem isso como uma forma de activismo
político de justiça social”.
Paulo Almeida: Esta senhora escreve muito bem, foi muito
esclarecedor. O fomentar do conceito de vítima tem implicações muito graves e
duradouras para as pessoas e sociedade num todo. E começa logo desde criança. Está na mão dos Pais essa
necessária tarefa de educar para as dificuldades, a responsabilização, a
resiliência. Os queixinhas não chegam a lado nenhum, o futuro reserva-lhes
mendigar e depender. João Floriano > Ana
Luís da Silva: Excelente comentário. Não sei quem foi que disse que toda a mentira para funcionar
melhor tem de conter alguma coisa de verdade e se for repetida muitas vezes
acaba por se tornar realidade. O mesmo acontece com as causas woke. Começam por
parecer alicerçadas em pressupostos justos de igualdade de tratamento, inclusão
e empatia. Rapidamente evoluem para campos de luta em que há uma escalada na
exigência de direitos e compensações. O que o marxismo não conseguiu entrando
pela porta da frente na construção social, já que a ideia de proletariado tipo
Revolução Industrial está completamente obsoleta, consegue agora entrando pela
porta do cavalo.
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