No seu cantinho por ora apagado, porque os monstros se multiplicaram, no
conforto específico do seu exemplo de subterfúgios civilizados, que os monstros
aplicam sem subterfúgios de espécie alguma. ALBERTO
GONÇALVES, como sempre eficaz, na desmontagem da sua agudeza
crítica e corajosa.
O ódio que não tem vergonha de dizer o
seu nome
A dependência da propaganda leva a que
as principais operações aconteçam nos “media” internacionais, quase sempre
permeáveis a divulgar “informações” provenientes de uma organização terrorista.
ALBERTO GONÇALVES Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 04 nov. 2023, 00:228
Talvez
a fim de celebrar a presidência do Fórum Social do Conselho dos Direitos
Humanos da ONU, que assumiu na quinta-feira, o Irão decidiu devolver ao
Afeganistão os mais de cinco milhões de refugiados que fugiram dos talibãs. Não
tenho acompanhado o “ranking”, mas deve ser uma das maiores deportações da
História – e, dadas as circunstâncias e o destino, sem dúvida uma das mais
cruéis. Notícias a propósito? Poucas
e breves. Manifestações de protesto e dor nas cidades europeias e
americanas, organizadas pela extrema-esquerda e por islâmicos em fúria? Que eu
saiba, cerca de zero. “Posts” aflitos das manas Mortágua? Exactamente zero. Mensagens
compungidas de Guterres, o Vácuo? Até ver,
menos que zero.
Uns dias antes, o Paquistão iniciara a deportação de um milhão e
setecentos mil afegãos, com repercussões idênticas, leia-se nulas, no Ocidente.
E não, o Público não divulgou um abaixo-assinado de setenta
“personalidades” chorosas.
Há anos que os uigures da
China, quase nove milhões deles, são reprimidos, torturados, enfiados em
campos de trabalho, deslocados em massa e esterilizados. Salvo as vítimas e os
carrascos, ninguém, incluindo os “humanistas” do PCP, liga ao assunto.
Há décadas que o povo rohingya, que ainda há pouco tempo chegava ao
milhão e meio e hoje não atinge metade, não possui direito à cidadania em
Myanmar, antiga Birmânia. De
brinde, ainda desfruta de perseguições, torturas, linchamentos, violações
sexuais colectivas e aquilo que, antes da banalização do termo, se designava
por “genocídio”. A universidade de Harvard pronunciou-se a
respeito? Qual quê: os desgraçados nem sequer tiveram direito a uma vigília de
dez minutos no Bairro Alto.
Limitei-me a referir situações em que os oprimidos são muçulmanos,
dado que a opressão dos fiéis de outros credos nunca é sequer tratada enquanto
tal.
A benefício da concisão, excluí tragédias de natureza similar ou
comparável que decorrem, igualmente com muçulmanos, no Vietname, nas Filipinas,
no Tajiquistão, no Sri Lanka, no Tibete, etc. Não importa. A indiferença ao
sofrimento de toda essa gente é absoluta. Aparentemente, a extrema-esquerda e o
“mundo islâmico” só se comovem com o sofrimento dos muçulmanos dos territórios
da Palestina. Aparentemente.
Na verdade, a extrema-esquerda e o “mundo islâmico” são bastante
selectivos mesmo no que toca ao sofrimento dos palestinianos. Se estes morrem a expensas de “rockets”
transviados do Hamas, não contam. Se morrem porque o Hamas os utiliza como
escudos humanos e concentra armas e centros operacionais em hospitais, escolas,
mesquitas e edifícios afins, não contam. Se morrem porque o Hamas os abate a
tiro para evitar que fujam das zonas bombardeadas, não contam. Se morrem porque
o Hamas confisca água, comida, electricidade e combustível para alimentar a
guerra, não contam. Se morrem porque o Hamas os mata sob acusações de
colaboracionismo “sionista” ou filiação na Fatah, não contam. Ou contam:
contam para se filmar os respectivos cadáveres e acusar Israel. E isto, e só
isto, é que conta.
Em nome do rigor, não se pode dizer
que a extrema-esquerda e o “mundo islâmico” não se interessam pela quantidade
de mortos palestinianos. Interessam sim: reais
ou imaginários, quantos mais mortos, melhor. É que,
apreciando ou não o Hamas em particular, todos partilham o objectivo do Hamas,
que é eliminar Israel. Para isso,
todos subscrevem os meios a que o Hamas recorre, os quais curiosamente
consistem em eliminar as pessoas que depois se diz que Israel elimina.
Desde que, sobretudo após as derrotas de 1948, 1967 e 1973, uma das
partes abandonou o combate tradicional, o conflito israelo-árabe deve ser dos raros em que um dos lados faz
os possíveis para reduzir as baixas civis do inimigo e o outro lado se esforça
por aumentar as baixas civis próprias. A dependência da propaganda leva a que, nesta peculiar guerra, as
principais operações aconteçam nos “media” internacionais, quase sempre
permeáveis a divulgar “informações” provenientes de uma organização terrorista,
e nas cabeças dos fanáticos do Islão e dos fanáticos do marxismo, que por
razões não excessivamente distintas se interessam pela demonização de Israel.
Não
tenho maneira de pesar os diferentes critérios em jogo. O velho antissemitismo, que por definição Israel
atrai, mistura-se com a repulsa pelo
Ocidente, que por tradição Israel representa. E o caldo final é este culto das trevas,
esta sombra que alguns julgavam enclausurada na memória. Contra as expectativas
dos optimistas, regressaram de um passado não demasiado remoto as caricaturas,
as teorias da conspiração, as variações revistas e actualizadas da “difamação
de sangue”, as ameaças, as agressões, as estrelas de David pintadas nas casas e
nas lojas, a vandalização de sinagogas.
A sete de Outubro, o verniz civilizacional partiu-se e o ódio passou
a desfilar em público, ruidoso e gaiteiro. “Palestina livre, do rio ao mar”, berra-se
na rua, a fingir aflição com mortes que no fundo lhes convêm. Se não há mortes,
inventam-se, mediante a intervenção de amadores dramáticos e uma câmara de
vídeo. Se as mortes são insuficientes, multiplicam-se por cinco, vinte ou cem.
Se são responsabilidade directa ou indirecta do Hamas, culpa-se o tradicional
bode expiatório. E grita-se de novo “Palestina livre, do rio ao
mar”, na maioria da vezes
sem assumir que o sonho geográfico nega a existência física de Israel. O que
eles querem, à semelhança de inúmeros sonhadores dos últimos séculos, é que não
reste um único judeu. E não ficarão aborrecidos se não sobrarem muitos
palestinianos.
ISRAEL MÉDIO
ORIENTE MUNDO HAMAS CONFLITO
ISRAELO-PALESTINIANO DIREITOS
HUMANOS SOCIEDADE TERRORISMO
COMENTÁRIOS (de 11)
F. Mendes: Excelente
artigo, factual e triste. Infelizmente,
falta humanidade à Humanidade. Interrogo-me, de há muito, sobre as nossas
origens como seres pensantes e supostamente racionais. O que parece
distinguir-nos de outras espécies é o prazer que tantos sentem em infligir
sofrimento aos seus semelhantes. A
questão do anti-semitismo e da multisecular perseguição aos judeus é um
exemplo, entre muitos, das consequências da intolerância religiosa e do
desrespeito por minorias, étnicas ou outras. Os Muçulmanos também sofrem, e
de que maneira. Como o AG bem escreve e sugere, parafraseando Orwell, todos
os perseguidos são diferentes, mas alguns são mais diferentes do que outros;
depende de quem supostamente oprime e persegue.
Alfredo Vieira: A
lição destes tempos é que se apanha mais depressa um anti-semita que um coxo...
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