Nem sequer conta já a “carne para canhão”, este em ponto morto, substituído por instrumentos marciais de um rebuscamento de extremo alcance e impacto, anulador de preceitos, que não sejam os da raiva ou do ódio sem tréguas, na bestialização absoluta, que os da inteligência criadora favoreceram, fingindo, contudo, princípios de moralidade reprovadora
Jus ad bellum e jus in bello
Num mundo de nações desunidas e grupos
destatalizados, num mundo religiosa e culturalmente disperso, pode haver
Direito da Guerra e Direito na Guerra?
JAIME NOGUEIRA
PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 04
nov. 2023, 00:2021
Quem pode e em que condições pode declarar a guerra? Quais
as regras que devem observar as partes em conflito – tipo de armamento,
tratamento de prisioneiros, distinção entre combatentes e não combatentes? Num mundo de nações desunidas e grupos
destatalizados, num mundo religiosa e culturalmente disperso, pode haver
“Direito das Gentes” ou consenso geral sobre princípios e regras a observar?
A propósito da invasão e da guerra na Ucrânia, do ataque do
Hamas a Israel e da resposta de Israel em Gaza, voltam-nos estas e outras perguntas
sobre o Direito da Guerra, jus
ad bellum, e o Direito na Guerra, jus in bello – as seculares tentativas de regular
e humanizar os conflitos perante a sua inevitabilidade.
Lendo
os poemas homéricos ou a narrativa bíblica damo-nos conta de que sempre houve
regras, códigos de conduta. Houve-os, por exemplo, entre os sitiantes e
os sitiados de Tróia. O duelo entre Heitor e Aquiles, ou a entrega por Aquiles
do corpo de Heitor a Príamo dão conta de alguns desses códigos de honra. Já
na Bíblia, a violência está mais à solta. Em Deuteronómio, 20, Moisés fala ao povo e prescreve condutas a seguir na
guerra aos povos estrangeiros, na guerra e conquista das terras da Palestina e
em relação aos seus habitantes – hititas, amalecitas, cananeus e outros. Não são propriamente a Carta das Nações Unidas ou as
convenções de Genebra …
A guerra na Idade Média
A diferença entre o Velho e
o Novo Testamento é radical. E Santo Agostinho, Agostinho de
Hipona, Pai e Doutor da Igreja vai, no século IV formular a primeira doutrina sistemática de guerra
justa. E
ensinará que a guerra, para ser justa, tem de ter como agente um príncipe justo e como causa uma justa
causa, movida por recta intenção. O “príncipe justo” é o agente legítimo ou
legal da guerra – um Estado, um Reino ou uma entidade pessoal ou colectiva, que represente uma comunidade política. Só esses
podem fazer a guerra. Percebe-se que os autores
cristãos, de Santo Agostinho a São Tomás de Aquino, se preocupassem com a ideia
de justiça e de “recta intenção” num conflito. Também S.
Raimundo de Penaforte enumerava
cinco condições e o canonista Henrique de Susa, sete.
Entretanto, ao lado destas
preocupações maiores, havia todo um direito da guerra e da paz nas represálias
e guerras privadas na Europa do feudalismo político, nas terras do antigo
império carolíngio e romano-germânico. Aí se instituíam, por costume e prática,
inúmeros códigos a observar – e
a violar. Nas lendas
arturianas e nos romances do ciclo da Bretanha também se observam costumes e
praxes que regulam a brutalidade dos confrontos, pelo menos entre as castas
guerreiras.
É daí que vêm práticas como as “tréguas de
Deus” e outros institutos e praxes com que a Igreja e os papas procuravam moderar os conflitos, por exemplo, através
da proibição de fazer a guerra contra determinadas pessoas e em determinados
lugares. Assim, o movimento Pax Dei desenvolve
cânones que prescrevem a sacralidade dos templos, onde a guerra é proibida. As “tréguas de Deus” limitam a guerra no tempo e lançam o
anátema da excomunhão sobre os violadores dos lugares sagrados, proibindo
também a luta em dias santos e de guarda e actos de pilhagem, roubo e violação.
Havia todos estes belos conceitos e
interditos, antigos apelos aos direitos humanos e velhas invocações da
inviolabilidade dos corredores humanitários: conceitos
e interditos que, então como agora, tinham contra si o clausewitziano fog
of war, que tudo tende a ofuscar. Tudo: desde os
massacres de prisioneiros nas batalhas da guerra dos Cem Anos, até às bombas
misericordiosas da democrática América sobre os feudais japoneses de Hiroshima
e Nagasaki, a caírem sobre civis, mulheres e crianças. Também
nas batalhas da feudalidade, os nobres eram poupados, porque podiam pagar
resgate, e os vilões, imprestáveis como moeda de troca, geralmente massacrados.
Da Reforma à Revolução
Os
reis, os papas e o imperador, numa vontade de centralizar a sua auctoritas, combateram incessantemente as guerras privadas e
as represálias dos feudais. Vão aparecendo textos neste sentido até
à última metade do século XIV, como o De Bello, de
Represaliis et de Duello, publicado em Bolonha, da autoria de Giovanni da Legnano.
A Reforma marcou o Direito das
Gentes, como marcou tudo. Por
um lado, ao romper e separar os
cristãos em dois
campos hostis, os católicos e as diversas igrejas protestantes, a Reforma
prejudicou o jus gentium, já que dividia as “gentes”; por outro,
e até pela competição – não esqueçamos
que era um tempo em que a impressão de livros, jornais e panfletos já se
generalizara na Europa – levou à rivalidade entre as diversas
comunidades religiosas e nacionais, proliferando os escritos. Assim, a escola espanhola de direito internacional
dos Magistri Hispanorum, com Francisco Suarez e Francisco Vitoria, vai
demarcar-se do direito cristão medieval da guerra e da paz na guerra, da
teoria geral da guerra justa, das relações entre as nações e do direito entre
os combatentes de Agostinho e Tomás de Aquino. O Tratado de Suarez tem um título
eloquente: Opus de
triplici virtute theologica, fide, spe, et charitate (Tratado das três virtudes teologais – Fé,
Esperança e Caridade). Virtudes particularmente difíceis de
aplicar nas guerras religiosas. Porém, saindo da linha jusnaturalista, Suarez,
revelando o seu extremo realismo, vem sustentar que a lei é, também e
acima de tudo, um comando, uma norma, uma expressão da vontade e do
exercício da autoridade pública.
Nesta época, o Direito das Gentes é sobretudo um direito
da guerra. Depois dos
teóricos católicos peninsulares chegam, em força, os protestantes holandeses,
suíços e alemães. Mas um dos primeiros e mais ilustres tratadistas é um
italo-inglês, Alberico Gentili (1552-1608). Profundo
conhecedor do Grego e do Latim, Gentili doutorou-se aos 20 anos na Universidade
de Perugia. Depois, suspeito de heterodoxia protestante, emigrou para
Heidelberg e Tübingen, onde leccionou; e em 1580 partiu para a Inglaterra de
Isabel Tudor, a grande rainha dos protestantes. Aí, graças a boas
relações na corte (o tutor da Rainha era um outro italiano, Giovanni Castiglione) passou a
ensinar em Oxford. Em 1598, publicou De Legationibus Libri Tres e De Jure Belli Libri Tres.
O Direito Público Europeu
Gentili, que para Carl Schmitt – numa tese que tem os seus
opositores – é o precursor da ideia fundadora do Ius Publicum
Europaeum, defende que
o jus ad bellum não
pode basear-se na justiça da causa (que sempre será discutível entre inimigos)
mas na qualificação dos beligerantes – que deverão ser, só e apenas, Estados soberanos, os únicos com direito a declarar guerra.
O holandês Hugo Grotius terá sido o último e mais famoso tratadista destas
matérias, no período que precede o século XVIII, com o seu famoso De
Jure Belli ac Pacis. Já no século XVIII, emerge um suíço, Emer
de Vattel (1714-1767), que escreve um Droit des gens onde, no
direito da guerra, sublinha que a guerra infame e ilegítima (vinda de
não-Estados) não obriga as comunidades atacadas a respeitar as leis formais da
guerra. E dá o exemplo da cidade de
Genebra que, em 1602, atacada por bandos de savoyards, os manda enforcar,
tratando-os como bandidos.
Num tempo em que a crença religiosa das
comunidades e dos chefes políticos – reis, imperadores e oligarquias
aristocráticas ou comerciais – pesava decisivamente sobre as opções em política
externa, a guerra religiosa ficou mais ou menos secundarizada, a
partir da Guerra dos Trinta Anos, terminada
pelos tratados de Vestefália, de 1648-1649. Depois, em
França, dá-se a ascensão do absolutismo com Luís XIV e, no Reino Unido, a
guerra civil, a República de Oliver Cromwell e a Gloriosa Revolução de
Guilherme de Orange e Maria, filha do último rei Stuart, Jaime II.
Até aos princípios do século XIX – de 1713, guerra da Sucessão de
Espanha, a Waterloo, 1815 –, Londres e
Paris estarão em guerra quase permanente, independentemente do regime
político. Regime que não muda em Inglaterra, mas que, em França, passa da
monarquia absoluta de Luís XVI à República de 1789 de Robespierre, e de
Thermidor à aventura napoleónica. É uma guerra essencialmente ligada a
interesses e territórios coloniais nas Américas e na Índia, em que a França sai
a perder.
Os prisioneiros
Um tema particularmente central e sensível do Direito na Guerra é o estatuto
dos prisioneiros. Quem leu
o Henrique V, de Shakespeare, estará lembrado da crudelíssima ordem
do rei inglês durante a batalha de Azincourt para que os prisioneiros
franceses feitos na primeira parte da luta fossem chacinados. Depreende-se, e é
histórico, que eram muitos; e o combate continuava, os ingleses não tinham
maneira de os vigiar e controlar e temiam que escapassem e se juntassem ao
exército francês.
Mas era uma excepção: na
Idade Média, o capturado ficava à mercê do captor; entre os grandes, pelos códigos feudais, pelo sentido religioso e pelo
interesse pecuniário no resgate, as coisas resolviam-se humanitariamente; com os pequenos era outra
história: a sorte do capturado que
não podia pagar um resgate era aleatória, ou ficava à mercê dos sentimentos
humanitários do captor, ou da ausência deles. Porém, à
medida que as monarquias se centralizaram e o poder se concentrou nos monarcas,
as coisas evoluíram para regras costumeiras de parte a parte. Regras que
passaram a ser escritas – como aconteceu na guerra da Sucessão de Espanha e na Guerra dos Sete Anos.
Aí
os beligerantes firmavam documentos sobre o modo de tratar os prisioneiros – os
contratos de Cartel – que
incluíam garantias de vida e tratamento, locais e condições de detenção e,
claro, o montante do resgate, havendo ainda a possibilidade de trocas em
espécie, isto é, de prisioneiro por prisioneiro. As garantias deixavam
de ser uma questão de classe social, pois os monarcas eram, em princípio,
responsáveis por todos os seus combatentes. E o factor reciprocidade
funcionava, além do respeito pelos compromissos assumidos. Assim o atestam estudos sobre o tratamento dos prisioneiros
na Guerra dos Sete Anos, na América do Norte, como o de Ian K Steele (Setting
All the Captives Free: Capture, Adjustment, and Recollection in Allegheny
Country) e o de Erika Charters, sobre os prisioneiros franceses na Inglaterra e
Irlanda.
A evolução do regime de tratamento dos prisioneiros melhorou com a
responsabilização pela sorte dos combatentes dos exércitos nacionais e dos
respectivos soberanos; não esquecendo que os resgates, custos e rendas eram
também um encargo público. E a reciprocidade – o facto de todos terem
prisioneiros – era, apesar de tudo, uma garantia.
Foi na guerra
da Crimeia (1853-1859) entre a França, a Grã-Bretanha e a Sardenha-Piemonte,
aliadas ao Império Otomano, e a Rússia Czarista, que Florence
Nightingale e as suas enfermeiras voluntárias
se iniciaram no tratamento dos feridos de guerra. Logo a seguir, no dia 24 de Junho de
1859, Henry Dunant, suíço, calvinista e homem de negócios, chegou ao campo
de batalha de Solferino, na Lombardia, onde franceses e italianos tinham
combatido os austríacos. O quartel-general do Imperador Napoleão III
estava em Solferino e Dunant ia visitá-lo. No campo de batalha estavam 40 mil feridos, privados de cuidados
médicos. Dunant organizou o apoio aos feridos, mobilizando
a população local; depois, regressou à Suíça e escreveu um livro sobre o que
vira e fizera. A Memória
de Solferino foi por
ele distribuída por líderes políticos e militares da Europa, chamando a atenção
para o sofrimento dos combatentes. Depois, com um conjunto de personalidades
voluntárias, Dunant lançou, em Fevereiro de 1863, o Comité Internacional da Cruz Vermelha, uma organização decisiva para o
Direito Internacional Humanitário.
Recebeu em 1901 o primeiro Prémio Nobel da Paz.
Graças a ele, em 1864 foi assinada a
Primeira Convenção de Genebra sobre o tratamento de prisioneiros, feridos e
vítimas dos conflitos. E em 1899 e 1907, em Haia, na Holanda, foram
reconhecidos vários documentos relativos ao Direito da Guerra e da Paz, para
regular e humanizar os conflitos entre “nações civilizadas” –
uma vez que o realismo sobre a natureza dos homens e dos Estados sempre
concluía pela inevitabilidade da guerra.
A Segunda Guerra Mundial começou como
uma guerra “normal” entre Estados mas, a Leste, rapidamente
passou a guerra ideológica de aniquilamento recíproco, com a luta entre alemães e soviéticos e o
extermínio dos judeus em zonas ocupadas. Na Ásia, foi marcada
pelas brutalidades dos japoneses na China e pela “solução final” atómica,
punitiva, desenvolvida cientificamente pela equipa Openheimer em Los Alamos e
aplicada por decisão de Truman. A jurisdição saída do triunfo anglo-americano e
soviético, com as Nações Unidas, era mais uma tentativa de jurisdicionar
futuras guerras.
Nos
conflitos coloniais, os guerrilheiros não estavam abrangidos pelo jus ad
bellum e, por isso, também não se lhes aplicava o jus in bello. Mas, tal como
noutros conflitos bem mais antigos, a conveniência própria impunha-se, e
ingleses, franceses e portugueses aplicaram, com algum sucesso, técnicas de
contenção e conversão do inimigo, acompanhadas por uma intensa acção social
junto das populações civis. O processo deu algum resultado, nomeadamente nos conflitos do Quénia e da Malásia, da
Argélia e de Angola.
Nas
guerras quentes da Guerra Fria, como o Vietname e o Afeganistão, os
“imperialistas” de cada lado perderam – os americanos no Vietname e os russos
no Afeganistão –, quando as respectivas opiniões públicas e dirigentes deixaram
de apoiar o esforço militar perante os custos humanos e financeiros. E nos
conflitos importantes da actualidade – a guerra russo-ucraniana e do Hamas
contra Israel, não parece que o “Direito das Gentes” tenha evitado a guerra e
que os direitos na guerra estejam a ser rigorosamente observados pelos contendores.
Contudo, apesar do utopismo de muitos
destes textos e do avanço civilizacional que querem representar, tem
funcionado sobretudo o princípio da reciprocidade… vamos ver por quanto tempo, dada a
fragmentação dos Estados e a dispersão de armas cada vez mais poderosas por
beligerantes “não justos” no sentido agostiniano e de Jus Publicam
Europaeum.
Mais do que as numerosíssimas
convenções aprovadas nos últimos 80 anos e sua manipulação propagandística e
mediática junto da opinião pública, a dissuasão mútua garantida, o medo de ser destruído pelo inimigo com armas iguais às utilizadas, é o que
mais eficazmente tem vindo a regular e a limitar a guerra.
A SEXTA
COLUNA HISTÓRIA CULTURA GUERRA CONFLITOS MUNDO
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