quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Uma Espanha partida


Ou repartida, tanto faz. Sendo frustração para os de fora, como aceitam isso os de dentro? E lembrei-me dos inícios do 1º Capítulo do segundo livro mais traduzido no mundo, depois da Bíblia - (leio na Internet) -  El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha” - que de menina colhi na estante do meu pai, em português, mais tarde comprei-o em francês e hoje consulto na Internet em espanhol. Dele extraio as frases que a leitura dos livros de cavalaria dos primórdios literários que fizeram a cabeça do Don Quijote girar em crenças de amores e loucuras andantes, colhidas nesses tais livros, como coisas reais e o dispuseram a seguir as pisadas dos Amadises e Cia, em busca das suas Orianas, ou, neste caso, de uma doce Dulcineia, nome atribuído a uma lavradora Ana Lourenço, das suas paixões primárias mais reais, embora com desconhecimento da própria eleita do seu coração. E daí que tais leituras de trocadilhos e exaltações hiperbólicas, nos tais livros, tenham contribuído para o fortalecimento das crenças empreendedoras dos percursos hispânicos do Dom Quixote, em aventuras imitadoras das que lia, de longa data, irreais embora, que ele se propôs imitar, percorrendo os espaços do seu território. Apenas um breve trecho, não só de saudade dos tempos moços em que o li e reli em português, como porque está na génese e justificação da sua criação ficcional:

«Es, pues, de saber que este sobredicho hidalgo, los ratos que estaba ocioso, que eran los más del año, se daba a leer libros de caballerías, con tanta afición y gusto, que olvidó casi de todo punto el ejercicio de la caza, y aun la administración de su hacienda; y llegó a tanto su curiosidad y desatino en esto, que vendió muchas hanegas de tierra de sembradura para comprar libros de caballerías en que leer, y así, llevó a su casa todos cuantos pudo haber dellos; y de todos, ningunos le parecían tan bien como los que compuso el famoso Feliciano de Silva; porque la claridad de su prosa y aquellas entricadas razones suyas le parecían de perlas, y más cuando llegaba a leer aquellos requiebros y cartas de desafíos, donde en muchas partes hallaba escrito: «La razón de la sinrazón que a mi razón se hace, de tal manera mi razón enflaquece, que con razón me quejo de la vuestra fermosura». Y también cuando leía: «... los altos cielos que de vuestra divinidad divinamente con las estrellas os fortifican, y os hacen merecedora del merecimiento que merece la vuestra grandeza». (Extraído da Internet)

Foi com gosto que reli estes inícios de um livro extraordinário de graça e saber, quer devido aos episódios rocambolescos criados por um escritor de génio em torno de uma figura genial, na sua loucura como no sua sabedoria, e mais uma vez me admirei pela traição desses catalães e desses candidatos ao governo espanhol, cuja união deveria resultar do orgulho nacional, firmado não só numa história de valentias, que a História de Espanha traduz, mas de engenhos múltiplos, entre os quais o desse imortal Miguel de Cervantes Saavedra.

Sim, MARIA JOÃO AVILLEZ, tem toda a razão no seu repúdio pela traição. Que um Quixote sábio – grotesco também, mas em resultado da fantasia imorredoira do seu autor – servisse ao menos para reflectir… e envergonhar.

O disponível

Face a duas guerras a quem interessa o jogo sujo entre um político-madrileno-muito disponível e um traste-foragido-nacionalista catalão? Mas é simples: ou acabam eles ou acaba a Espanha que conhecemos

MARIA JOÃO AVILLEZ Jornalista, colunista do Observador

OBSERVADOR, 01 nov. 2023, 00:2236

1Só faltou o champagne, mas talvez tenha havido. Ou castanholas, coisa muito dos vizinhos. O que manifestamente houve foi o subentendido do “haja o que houver”, formaremos governo: com jubilo e o (inconfundível) aroma da propaganda, o “par” espanhol do momento, Pedro e Yolanda, anunciaram há dias, com notável desenvoltura política, o seu casamento político. O PSOE do cinematográfico Pedro e o Sumar (grupo de partidos de esquerda e de extrema esquerda) da turbulenta Yolanda reluziam de felicidade pela assinatura do seu acordo com vista à formação de um novo governo. Era o primeiro mas muito leve andamento da partitura governamental que Pedro Sánchez se entretém a compor há meses, mas era preciso tocá-lo com sorrisos para amaciar o resto da composição. O resto é de ardilosa escrita e duvidosíssima execução mas o maestro não se atemoriza: está habituado a disponibilizar-se e o hábito facilita muita coisa. Desta vez — e ele sabe — irá até ao “ilimite” de si próprio: a permanência no Palácio da Moncloa vale bem qualquer missa. E mesmo que esta seja de luto pela soberania espanhola, a disponibilidade de Pedro Sánchez é magnânima. Está-lhe na massa do sangue, nos genes e agora — talvez houvesse uma réstia de dúvida — na alma.

2Alberto Nunez Feijoo, líder do PP, ganhou as eleições em Agosto, não conseguiu formar governo, a esquerda não deixou, a direita não passará, decidiu Pedro. Para reunir os votos indispensáveis à sua própria indigitação para formar governo, o líder do PSOE bateu à porta menos recomendável do xadrez partidário, os independentistas catalães do Junts. Comandado por um foragido à Justiça, Carles Puidgemont e acolitado por outros foragidos e ex-detidos, pelas convulsivas consequências da convocação em 2017, de um referendo a favor da independência da Catalunha, realizado ilegalmente no primeiro dia de Outubro desse ano. O gesto anti constitucional desaguou nos tribunais. Houve condenações e detenções por crime contra a Constituição, mas Puidgemont já fugira de Barcelona, fê-lo logo nesse mês, a 30 de outubro, ou seja apenas 30 dias após a mediatizadissima realização do referendo: a fuga como opção política.

3Hoje negoceia-se. Sem sombra de remorso, negoceia-se a Espanha. Primeiro houve conversações, depois a lista das exigências – uma amnistia após os indultos já aliás acordados pelo mesmíssimo Pedro Sanchéz na anterior legislatura; e hoje há uma chantagem: o reconhecimento da Catalunha como “nação”. Puidgemont não pode ter sido mais claro, Pedro Sánchez não se pode ter mostrado mais disponível. (No pacote do Junts vinha ainda, à laia de post scriptum, a exigência de 7 milhões de euros para redimir os implicados no “procés” da Catalunha além da garantia (?) verbal da substituição imediata do autarca de Barcelona, democraticamente eleito há meses, por outro partido. Depois da disponibilidade de Pedro (e de Yolanda Díaz e dos outros ) para assegurar uma amnistia a um partido fora da lei e com um líder fugido à Justiça, veio a última chantagem, a última até à próxima: ”reconhecimento” da Catalunha como “nação”. O Tribunal Constitucional vetou a pretensão: dotar o termo “nação” de “valor jurídico” era como pôr ao lume a fragmentação da Espanha: atrás da Catalunha, outras “catalunhas” viriam.

Ou seja, Pedro Sánchez estaria disponível para deixar uma Espanha em estilhaços. O mais extraordinário é que nem sempre foi assim: a possibilidade de uma amnistia foi sempre um sinal vermelho que nem Sanchez nem o PSOE, nem os ministros socialistas que governavam em coligação com o Podemos, queriam passar. Era um tabu. Fora de causa porque marcada pela inconstitucionalidade. “Uma amnistia é um esquecimento”, dizia nessa altura — nas penúltimas legislativas – um dos ministros do PSOE.

Hoje, não: Sánchez, o disponível, defende agora uma amnistia em nome do “interesse da Espanha e da defesa da convivência”. E para que receba luz verde após ter passado a linha vermelha, despachou o seu número três para Bruxelas, para ultimar o acordo com Puigdemont.

4Pensar-se-ia que uma parte dos quadros e militantes socialistas espanhóis se indignassem, o PSOE é um fortíssimo pilar do regime, um partido de governo, fundador da democracia mas – até à hora a que escrevo – não se indignaram por aí além (com as honrosas excepções de alguns dos seus ex-líderes nacionais e regionais). É aterradoramente pouco. Tanto mais que nesta empreitada a escalada da chantagem política de Puigdemont é directamente proporcional aos sinais exteriores de optimismo de Pedro Sánchez. Dos termos negociações entre os dois, não se sabe muito de concreto– só se sabe o pior – porque o chefe do governo vai falando ao país de assuntos sempre menos relevantes mas dando-lhes importância política e mediática, como se as inomináveis cedências aos Junts não passassem de uma trivialidade. Uma indecência política.

5Porque falo nisto? Porque ontem a Princesa das Astúrias, filha dos Reis de Espanha, que atingiu a maioridade há dias, jurou a Constituição perante as Cortes espanholas. Leonor jurou uma Constituição ameaçada face à possibilidade real de uma amnistia que tornará incerta a soberania da Espanha.

E mesmo que a tragédia deste 7 de Outubro – para sempre inscrita na escolha do mal em estado puro na história da humanidade – e o actual desconcerto do mundo atirem a Espanha para fora dos radares mediáticos, vale a pena reter esta má história.

A quem interessa o jogo sujo entre um disponível-político-madrileno e um traste-foragido-nacionalista catalão? Interessa: aprende-se sempre sobre o uso do poder.

Além de que é muito simples: ou acabam eles, ou acaba a Espanha que conhecemos.

6E Portugal? Portugal em caso de desastre pagará uma parte da factura.

PS: Pequena nota com importância: nos últimos dias li várias notícias sobre a compra pelo museu do Louvre de um primitivo português. Uma óptima notícia, o Louvre é grande! Mais porém do que a compra; que o definitivo prestígio do museu; que o pintor, as suas influências – ainda flamenga e já italiana – a luminosidade suave das suas cores ou a sensualidade na pose das suas personagens; mais do que a perspectiva de que “isto” seja o principio de outra era para a nossa pintura de ontem, o que me interessou, foi o que tornou possível este feito. E que vi pouco contado.

O autor do feito chama-se Philippe Mendes, é luso francês e vive a cavalo entre Paris, Lisboa e o mundo. Em Paris tem duas galerias de arte; em Lisboa torce pela nossa; no mundo, compra, vende e aconselha. Mas isto já se sabe. O que se sabe menos mas conta mais é que só uma pessoa dotada de invulgaríssima iniciativa e inabalável, quase feroz persistência, seria capaz de ir ultrapassando as várias etapas desta aquisição. Coisas pouco portuguesas embora esta seja uma história patriótica e não apenas artística ou cultural: há muito tempo que Phillipe Mendes trabalha com um empenho quase fervoroso como “embaixador” e traço de união da nossa cultura, apoiado por um critério certificado internacionalmente pelos directores dos melhores museus e grandes colecionadores. Ama a nossa arte (e ainda acima disso ama Portugal, seu berço), conhece-a bem, fala dela, compra-a, mostra-a, explica-a. Convence. Acredita-se nele. Tudo isto que ficara já bem impresso na entrevista que me deu aqui mesmo no Observador há uns meses, foi agora ampliado com a “operação-compra” do quadro atribuído a Cristóvão Figueiredo e Garcia Fernandes, a sua venda ao Louvre e as perspectivas de futuro abertas por este surpreendente gesto. Mas oh quanta persistência, minúcia, rigor, trabalho não foi indispensável nos estudos, restauros, investigações, peritagens, exames, certificações, reuniões, desde que Philippe comprou o quadro numa leiloeira portuguesa até que ele passou a porta do museu francês. Um feito, sim, e afinal o Louvre comprará por ano talvez meia dúzia de grandes quadros.

Há pouquíssimas coisas que eu aprecie tanto desde sempre como a iniciativa produtiva. Como a de Philippe Mendes. Espero bem que as “autoridades” já tenham dado por ele.

ESPANHA     EUROPA     MUNDO

COMENTÁRIOS (de 36)

Rui Lima: Para o Pedro é melhor reinar no inferno do que servir no céu, hoje mais do que nunca poucos aceitam abandonam o poder quando era natural no passado , há muito que procuro explicações, há um facto os políticos hoje são gente sem vida fora da política na verdade eu não entregaria a gestão de uma taberna a muitos dos ministros que nos governam.                       JOHN MARTINS: Hoje, a MJ fez uma incursão a Espanha e de lá veio com um interessante e pertinente artigo. E se de facto Sanchez para continuar detentor do poder ter que se aliar de vária formas, a tudo quanto pôde, depois de perder as eleições, em nada dignifica a democracia; bem pelo contrário. Já sobre repercussões em Portugal; nada de novo, essa baixa política tem o selo de Costa que a exportou para Espanha...                         Filipe Paes de Vasconcellos: É minha profunda convicção que Felipe VI ainda vai surpreender Espanha a bem da sua unidade territorial e política consagrada constitucionalmente.

E terá 99,999 por cento dos Espanhóis a aplaudir.                   Domingas Coutinho:  Lá como cá os Socialistas vendem a alma e no caso de Espanha, até o próprio País, para se manterem no poder. Dão cambalhotas e perdem a dignidade e hipotecam o País. Um exemplo muito triste este de Espanha.                João Floriano: É na verdade uma indecência política e não pelo facto de Sánchez e a esquerda se terem entendido para, mesmo tendo perdido as eleições de julho, impedirem  a direita de formar governo. Tal como cá, Pedro Sánchez aprendeu com António Costa que a direita não passará, porque tal como cá a esquerda decide quem são os bons e quem são os maus, tal como cá Sánchez traça linhas vermelhas. O parlamentarismo permite o que se passa em Espanha e em Portugal. O que é uma indecência em Espanha é a integridade de um país muito complicado e complexo cujo governo fica refém nas mãos de partidos como o Junts catalão e o BILDU basco, sendo que no caso do  partido basco há uma história de terrorismo e assassinatos políticos. O que choca tanto em Sánchez como em Costa é a obsessão com que se agarram ao poder com as consequências que estão à vista. A indecência política leva esta gente a quebrar tabus. Em Portugal António Costa manifestou o seu orgulho por ter derrubado um muro que deveria ter sido ainda reforçado. Achei interessante o pedido de 7 milhões de euros para pagar os exílios chiques dos trastes catalães. E que mais haverá escondido? A princesa Leonor jurou a constituição como prenda dos seus 18 anos: bonita princesa. A partir de agora é oficialmente e separada da mãe Letícia (cheia de pés de galinha) e do rei Filipe (grisalho), um motivo de interesse para a Hola: os namorados, as festas, as férias. A sua defesa da constituição parece-me bastante simbólica.                       António Sennfelt: Esplêndido artigo. E tem toda a razão; caso a Espanha se esfrangalhe, Portugal pagará por tabela! PS: só é pena a autora não ter aproveitado a ocasião para registar que a abjecta "geringonça" espanhola teve um percursor cá do burgo!                     Cisca Impllit: Quando se vota é  na extensão  de toda as consequências  e responsabilidade. Já  não  há  políticos institucionais e com limites do bem agir.                  GateKeeper: A Espanha que "conhecemos" já acabou. E o rasto nojento de quem acabou com ela,  a nação, está  ainda bem fresco. A mim só  me desiludiu o Rei de Espanha. De resto, tudo normal, expectável, no "mundo narcisista e ideológico" esquerdalha-populista do "pedrito" e da barbie berloque. A única  coisa que souberam "sumar" foram votos para uma derrota feliz [ a new fashion europeia]. Habituem-se à  "trotineta 2. 0" de nuestros hermanos. Convém  que o façam,  até  porque se os Portugueses insistirem no sofá &tv no dia das eleições  2026, garantem à  partida uma "trátinete 2. 0" também por cá. Seremos, na Península  Ibérica mais um case study académico de hara kiri colectivo. Interessante, né?!             João Floriano > Filipe Paes de Vasconcellos: Bom dia Filipe Já me explicaram aqui que o rei não tem o poder de impedir a formação deste governo. Penso que a surpresa teria de vir da rua espanhola e da força de manifestação do PP e demais partidos que não concordam com esta pouca vergonha.                    António Tomás Ribeiro (tuga) > Filipe Paes de Vasconcellos ; Gostava de acreditar...

 

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