quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Um país vocacionado


De preferência para o lazer e a desconcentração. Mas também para a devoção de cariz sentimental, não parente de uma reflexão do foro intelectual mas propiciadora do queixume que a canção nacional – o fado – tão bem representa, mais os dois ff da nossa tríade devota e fatalista com Fátima e o futebol aduzidos. Mas este é um ponto de vista pessoal, sumário e despretensioso, sobre as causas do atraso português, como dado fatal, que não tem a ver com a justificação superiormente fundamentada de Nuno Palma sobre o tema que Antero de Quental expusera em “As causas da decadência dos povos peninsulares” e que reduzira a três, (segundo síntese extraída da Internet): «A Contrarreforma dirigida pelos Jesuítas; A Centralização Política realizada pela Monarquia Absoluta; O Sistema Económico realizado pelos Descobrimentos.»

Pré-publicação. A maldição dourada: "Foi no século XIX que Portugal bateu no fundo"

Observador: Texto de NUNO PALMA

"Foi no século XIX que Portugal bateu no fundo". É uma das conclusões de Nuno Palma no livro "As Causas do Atraso Português". O Observador pré-publica o capítulo que analisa Marquês de Pombal.

OBSERVADOR, 28 nov. 2023, 16:567

I

O livro “As Causas do Atraso Português”, editado pela D. Quixote, da autoria do economista Nuno Palma analisa a evolução económica de Portugal, para perceber “as origens históricas do atraso do país”. É isso que se propõe fazer neste livro. Conforme explica no preâmbulo, deste livro de 405 páginas, pretende desconstruir mitos do passado

O Observador pré-publica parte do capítulo dedicado à gestão de Marquês de Pombal que Nuno Palma não se coíbe de apelidar de “desastre em termos de economia”. 

Nuno Palma é professor catedrático e director do Arthur Lewis Lab for Comparative Development, na Universidade de Manchester, e investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e do Centre for Economic Policy Research em Londres. 

Há muito que alguns historiadores, outros estudiosos, e até políticos, tentam explicar as causas do atraso português. «País periférico, com demasiada gente no campo, e governado por uma elite tacanha» é uma possível paráfrase da tese desta geração de intelectuais sobre as causas do atraso. Um deles foi Vitorino Magalhães Godinho no livro Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa. Um momento de reflexão é o suficiente para compreendermos que estas não podem ser as explicações profundas das causas do atraso. A qualidade das instituições políticas e as elites de diferentes regiões e épocas históricas influenciam o atraso, mas também são algo que tem de ser explicado em si: não é satisfatório tomarmos a qualidade das instituições como um dado adquirido. E o mesmo é verdade relativamente à estrutura organizacional da economia.

"Pelo menos até ao século XVIII, o império não foi nem um motor nem um impedimento ao crescimento do país. Também argumentei que a cultura e religião portuguesas não foram as culpadas deste atraso – ou, pelo menos, não foram a sua causa profunda. Como apresentei na primeira parte do livro (capítulos 2 e 3), o atraso apareceu durante o século XVIII, tento tido manifestações simultaneamente económicas e políticas, e aprofundou-se depois no XIX". Nuno Palma, economista, no livro "As Causas do Atraso Português"

Todos os países foram sociedades agrárias, ou seja, baseadas na produção e manutenção de culturas e terras de cultivo, antes de se desenvolverem. A Inglaterra também o era até à Revolução Industrial. Portugal também, até tudo mudar no século XX. Com o tempo tudo pode mudar, e a mudança estrutural, ou seja, a passagem das populações da agricultura e pescas para outros sectores que historicamente tinham mais valor acrescentado (a indústria e os serviços) tem de ser explicada. Como tal, a estrutura organizacional da economia – «demasiada gente no campo» – que levaria à baixa produtividade do país não pode ser por si uma explicação. É antes e apenas um mecanismo através do qual causas mais profundas operam. Na linguagem dos economistas, é um factor endógeno.

Finalmente, consideremos a localização geográfica do país: Portugal é periférico. Parece ser verdade, mas relativamente a quê? Na verdade, toda a Europa Ocidental foi periférica relativamente aos grandes centros culturais e económicos do mundo, pelo menos até finais da Idade Média. Esses correspondiam a regiões como o império bizantino na antiguidade tardia, o mundo islâmico na sua época de ouro entre os séculos VIII e XIII, bem como a China por volta da mesma altura. Ou seja, toda a Europa Ocidental foi, até finais da Idade Média, uma parte marginal do mundo, de importância relativamente secundária. Mas essa condição «periférica» não foi destino: tudo viria a mudar, através de um processo radical no qual Portugal até teve um papel importante, como expliquei no capítulo 4. Do mesmo modo, a periferia geográfica de Portugal não foi, em certas épocas históricas, impedimento ao desenvolvimento do país.

Temos, portanto, de encontrar melhores explicações para o atraso histórico português. Nos capítulos anteriores, mostrei que, pelo menos até ao século XVIII, o império não foi nem um motor nem um impedimento ao crescimento do país. Também argumentei que a cultura e religião portuguesas não foram as culpadas deste atraso – ou, pelo menos, não foram a sua causa profunda. Como apresentei na primeira parte do livro (capítulos 2 e 3), o atraso apareceu durante o século XVIII, tento tido manifestações simultaneamente económicas e políticas, e aprofundou-se depois no XIX.

"Tanto a nível político como mais diretamente económico, as dinâmicas auspiciosas dos finais do século XVII foram interrompidas por um processo que designo como Maldição dos Recursos: a descoberta de enormes quantidades de ouro (e, com menos importância, de diamantes) no Brasil. Este acontecimento viria a ter implicações profundas para o país." Nuno Palma, economista, no livro "As Causas do Atraso Português"

Neste capítulo, explico uma causa fundamental do atraso. Começo por aprofundar a discussão sobre a transformação do sistema político português entre a segunda metade do século xvii e o início do seguinte. Mostro que, a partir da Restauração de 1640, Portugal entrou num encorajador processo de melhorias políticas e institucionais que poderia ter tido melhor continuação. Depois irei argumentar que, durante a segunda metade do século XVII, se assistiu a mudanças económicas positivas e promissoras.

Em finais desse século, existiam em Portugal várias regiões rurais industrializadas, com redes bem integradas de produção e distribuição, e Lisboa era uma capital mercantil, que estimulava a procura por bens, e onde era feito o retalho. Além disso, existia o Brasil, que era uma fonte adicional de procura, assim como de oferta de matérias-primas. Por volta de 1680, Portugal até exportava têxteis para Castela. Caso a dinâmica dos finais do século XVII tivesse continuado, o país poderia ter-se tornado, no século seguinte, numa importante potência mercantilista e exportadora. Além disso, as melhorias institucionais poder-se-iam ter também consolidado. Mas o que veio a acontecer não podia ter sido mais diferente. Tanto a nível político como mais directamente económico, as dinâmicas auspiciosas dos finais do século XVII foram interrompidas por um processo que designo como Maldição dos Recursos: a descoberta de enormes quantidades de ouro (e, com menos importância, de diamantes) no Brasil. Este acontecimento viria a ter implicações profundas para o país.

Não há dúvida de que a entrada de ouro aumentava os rendimentos das pessoas, em particular no curto prazo. O ouro do Brasil enriqueceu, em primeiro lugar, os portugueses que o obtinham e que remetiam os fundos para Portugal, ou que, estando no Brasil, os usavam localmente, em particular comprando os bens que chegavam nas três frotas anuais vindas da metrópole. A maior parte do ouro já chegava a Portugal cunhado e as moedas eram entregues a mais de duas mil pessoas a quem pertenciam, além do rei. Os rendimentos pessoais, agora aumentados, eram depois gastos tanto em bens domésticos, não transacionáveis, como em bens importados. O aumento de procura dos bens importados não tinha um efeito notório no seu preço, dado o tamanho pequeno do nosso país já à época, enquanto que a procura adicional dos bens domésticos teve, de facto, um efeito significativo no aumento do preço dos mesmos. Por sua vez, esta mudança de preços relativos levou a uma retirada de recursos do sector transacionável da economia portuguesa. Foi o que aconteceu com a produção industrial que se retraiu. Isto foi uma resposta natural da economia às chegadas do ouro, e que foi agravada pelo aumento do poder de compra das pessoas. Tornou-se mais barato importar, e mais caro exportar, mas a diferença podia ser paga em ouro.

Como tal, a indústria portuguesa entrou em declínio. Além disso, o ouro teve um efeito político desastroso: os recursos adicionais disponíveis para a Coroa implicaram o desaparecimento de uma limitação importante ao poder executivo que até aí existia. Nomeadamente, como deixou de ser necessário o rei negociar para obter recursos, as Cortes não foram convocadas durante todo o século XVIII. Nas primeiras décadas do século ainda se falou dessa assembleia a propósito de matérias como os novos impostos que a Coroa ia impondo, pois existia a memória de que eram um órgão que controlava a acção do monarca. À medida que o século avançou, no entanto, o ambiente político que se instalou começou a encarar a reunião das Cortes como uma cedência por parte dos monarcas que não era aceitável, recusando a esse órgão qualquer papel de controlo constitucional ou de limitação da vontade da Coroa. Seria neste contexto que, na sequência do Terramoto de 1755, Pombal se iria tornar no político mais importante do país, com graves consequências a prazo.

O legado político e económico de Pombal para o atraso do país

O governo do país por parte de Pombal foi desastroso. Mas também é preciso compreender o contexto que o tornou possível: uma Monarquia Absoluta, como não tinha existido nos séculos anteriores. Consideremos a seguinte analogia: se um condutor embriagado atropelar um peão, ninguém vai dizer que o problema é o condutor não ter travado. A causa mais profunda foi outra. Voltando ao século XVIII, o problema foi terem faltado limites ao poder executivo. E isso foi, por sua vez, um resultado das chegadas do ouro brasileiro, que, como expliquei, levaram a essa alteração na natureza das instituições políticas portuguesas. Pombal desprezava o parlamento inglês, que considerava um mero instrumento dos grandes interesses comerciais da Inglaterra. No entanto, sabemos hoje que esse sistema parlamentar é precisamente uma das chaves para compreendermos porque foi aí possível a Revolução Industrial. No que toca às relações comerciais de Inglaterra com Portugal, Carvalho e Melo culpava os Tratados comerciais por só serem vantajosos para a Inglaterra. Nas suas palavras:

Examinando o presente estado do comércio entre as duas nações [Portugal e Inglaterra] por uma rigorosa análise dos tratados recíprocos e da observância com que eles hoje se praticam em ambos os domínios, achei que Portugal sustenta todo o peso das convenções enquanto estas são onerosas e que a Inglaterra, com pouco ou nenhum encargo, recolhe delas todo o proveito, praticando-as somente na parte em que lhe são úteis.

Na realidade, como veremos, a política alternativa que Pombal promoveu não beneficiou o país. Uma dessas políticas, a nível económico, foi a criação de várias companhias comerciais. A sua fundação ajuda a compreender as motivações de Carvalho e Melo para expulsar a Companhia de Jesus. Em Portugal, os jesuítas opunham-se ao seu despotismo e ao Absolutismo régio em geral, e no Brasil resistiam ao monopólio do comércio externo imposto pela Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, uma companhia criada por Pombal que operava numa região do Brasil onde o Governador era o seu irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Este último, Governador Geral do Estado do Grão-Pará e Maranhão de 1751 a 1759 e secretário de Estado da Marinha e do Ultramar entre 1760 e 1769, também esteve envolvido na conspiração que levou ao assassínio dos Távora e do jesuíta Gabriel Malagrida, que foi queimado na fogueira num auto de fé no Rossio em setembro de 1761. Como tantas vezes tem sucedido na nossa História, existia aqui um conflito de interesses: Pombal não só nomeava os irmãos e outros familiares para altos cargos, como depois ainda beneficiava financeiramente das suas ações políticas.

No caso da Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, beneficiava dos lucros da companhia através de acções que estavam em nome da sua segunda mulher. Através do seu irmão, Carvalho e Melo ordenou que as leis régias fossem executadas rigorosamente, sendo que a sua violação devia ser considerada crime de lesa-majestade. Ordenou mesmo que qualquer missionário jesuíta que no púlpito insinuasse qualquer crítica à política real fosse imediatamente destituído das suas funções e expulso.

Pombal promoveu uma vasta campanha propagandística, acusando os jesuítas de quererem criar um «império secreto» no Brasil, na obra conhecida como Relação Abreviada em 1757. Publicada inicialmente de forma anónima – o spin não é uma invenção dos dias de hoje –, este opúsculo foi promovido por Pombal.

Na sequência do Tratado de Madrid (1750), que definia as fronteiras entre o Brasil e o Império Espanhol (substituindo o Tratado de Tordesilhas, que não era respeitado), a Companhia de Jesus, por ordem do seu Geral e Provincial, obedeceu às ordens do Rei de Portugal e mandou sair os seus missionários dos Aldeamentos ou Reduções. A maioria, de facto, obedeceu e saiu. Houve, no entanto, um pequeno grupo de jesuítas, muito minoritário, que ficaram ao lado dos ameríndios e resistiram. É essa colaboração de alguns jesuítas na resistência indígena, e em particular nas Guerra Guaranítica (1753-1756), que será usada como pretexto e mitificada pela documentação pombalina para incriminar toda a Companhia de Jesus, atribuindo-lhe um plano secreto mirabolante segundo o qual estaria a construir um Estado autónomo, como princípio de um projecto maior de dominação universal. Carvalho e Melo enviou também queixas à Santa Sé, acusando os jesuítas de serem rebeldes contra a autoridade real e papal. O esforço de propaganda contra os jesuítas continuou com outras obras, como a Dedução Cronológica e Analítica, de 1761, também encomendada por Pombal.

Carvalho e Melo era um político que não olhava a meios para atingir os seus fins. A Mesa do Bem Comum dos Homens de Negócio foi extinta em resposta a uma representação que apresentou à Coroa contra a instituição do monopólio dessa companhia de que Pombal beneficiava. Para isso foram utilizadas cartas apreendidas aos acusados, apesar de existir à época uma grande auto-censura relativamente ao que era deixado por escrito. Depois de exilar os líderes da Mesa do Bem Comum, Pombal criou uma nova agência, a Junta do Comércio, que não era mais do que um braço político do governo, existente para defender os seus interesses, ao contrário do que tinha acontecido com a Mesa do Bem ComumExistem hoje vários casos bem documentados referentes ao enriquecimento dos irmãos Carvalho e Melo graças ao seu controlo do aparelho do Estado. Mesmo um autor estrangeiro, que até mostrava alguma admiração por Pombal, o descrevia como: «Altivo, vingativo, cruel, ávido de honras e de dinheiro».

Neste contexto, não será talvez surpreendente que os supostos esforços de fomento industrial promovidos por Pombal tenham, na realidade, falhado. Pombal, de resto – nesta fase ainda apenas como Conde de Oeiras – mandou construir um magnífico palácio com um luxuoso jardim nessa região próxima de Lisboa, que ainda hoje pode ser visitadoEra um homem que não hesitava em subornar aqueles de quem precisava. Por exemplo, enviou uma embaixada ao Papa, em setembro de 1757, chefiada pelo seu primo direito Francisco de Almada Mendonça, que pagou a cardeais com anéis de diamantes, o seu apoio nas políticas preparatórias para a expulsão da Companhia de Jesus. As prisões continham milhares de presos políticos, sendo alvo de críticas ferozes por parte de visitantes estrangeiros, a forma de funcionamento do sistema de justiça, assim como os conflitos de interesse relacionados com a proximidade das autoridades policiais a Pombal.

A Companhia Geral da Agricultura e das Vinhas do Douro, criada por Pombal em 1756, supostamente com o objectivo de melhorar a qualidade do vinho exportado para Inglaterra, fornece um outro exemplo de compadrio e de defesa do interesse próprio promovidos por Pombal. Em fevereiro de 1757, os taberneiros do Porto revoltaram-se contra a Companhia que, ao criar um monopólio, tanto os prejudicava. A revolta foi violentamente suprimida por Pombal, com a execução de 26 pessoas e com mais de 300 condenados a confisco, deportação, ou chicotadas. Foram dadas ordens aos habitantes da cidade do Porto para alimentarem as tropas enviadas para acabar com a revolta, e para pagarem um imposto que iria cobrir os salários e munições dos soldados. Pombal ainda aproveitou este contexto para acusar os jesuítas de serem responsáveis por instigar esta revolta (o que era falso), expulsando-os de imediato da Corte de D. José, onde eram até então confessores. Este episódio, assim como a Relação Abreviada, mostra que a aversão de Pombal aos jesuítas, que se opunham a ele, era anterior à tentativa de assassinato do Rei D. José que ocorreu no ano seguinte, em 1758. Na sequência desse atentado, os jesuítas foram incriminados com base em confissões conseguidas sob tortura, tendo Pombal encabeçado um enorme esforço de propaganda – que viria a ter reflexos noutras partes da Europa – em que a Companhia de Jesus era apresentada como o maior obstáculo ao progresso do país.

Pombal fez mesmo a acusação, absurda, de que eram os jesuítas os responsáveis pela forma de funcionamento da Inquisição, bem como pelo bloqueio cultural e intelectual do país. Acabou assim por expulsá-los, um ano depois do atentado. Entre os cerca de 1500 jesuítas que existiam em Portugal à época, mais de 1100 foram exilados para o Vaticano, 222 foram presos, acabando 80 por morrer no cárcere, e tendo alguns sendo ainda deportados para África.

(Continua)

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