Destes tempos de belicismo odiento, um
poema (transcrito da Internet), sobre A
Paz –
“ODE À PAZ” – de Natália Correia, heroína graciosa dos meus tempos do
após nossa guerra - uma guerra não de ódios mas de pura defesa pátria, anulada
esta pelos muitos cravos de um Abril libertador, a pedido das muitas Natálias e
Natalinos de que a nossa pátria mimosa era prenhe então. É um poema facundo e intencional,
este da Natália Correia, mas bonito
e bem aplicado aos dias de hoje, lá fora - por ora, a leste.
De toda a maneira, pretende homenagear a
grande
Natália e todos os seus intérpretes, incluindo o autor de “As
Idades de Natália”, e as suas inspiradoras. É, de facto, um poema portentoso:
Ode à Paz
Pela
verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!
Natália
Correia, in "Inéditos (1985/1990)"
As idades
de Natália
A estrear-se na encenação, Ana Rocha
de Sousa leva ao Teatro da Malaposta “O Dever de Deslumbrar”, partindo da
biografia de Natália Correia por Filipa Martins. A peça abre oficialmente o
LEFFEST.
OBSERVADOR, 06 nov. 2023, 16:22
Pode dizer-se que haverá sempre uma
faceta de Natália Correia por descobrir. Outras
tantas sobre as quais ainda hoje se desvendam particularidades. 30 anos
depois da sua morte e num ano em que se comemora também o seu centenário,
voltar à história daquela que foi uma das mais importantes autoras da segunda
metade do século XX português é inevitável. E dessa mesma inevitabilidade
surgiu O Dever de Deslumbrar, peça com encenação de Ana Rocha de Sousa,
a partir da biografia homónima de Filipa Martins, que estará em cena no Teatro
da Malaposta, em Odivelas, a 10 e 11 de novembro, no âmbito da abertura
da 17.ª edição do LEFFEST — Lisboa Film
Festival. Seguem-se apresentações no espaço Escola de
Mulheres, de 30 de novembro a 3 de dezembro, e no Teatro Turim, em Benfica, de
5 a 21 de janeiro de 2024.
No cenário, uma cama com folhas de
papel, uma mesa de maquilhagem, uma secretária e diversos objectos colocam-nos
num espaço de profunda intimidade. Ouve-se a voz de Natália. Há uma bailarina em palco (Ana Jezabel) e duas mulheres (Teresa Tavares e Paula Mora),
que personificam duas Natálias em diferentes momentos da sua vida. Trilham-se
memórias, entre imagens de arquivo que recordam a verdadeira Natália Correia e
os diálogos, em que se fala da infância, da ausência do pai e da mulher
artista e activista que se foi formando. “Nasci numa família terrivelmente
retrógrada, conservadora, a que podemos chamar ‘ultramontana’” recorda a
Natália mais velha. Não falta a
boquilha em punho e a palavra afiada. Mas há também espaço para um diálogo
emocional e de perspectiva sobre o seu posicionamento face à história recente
do país.
A peça, que marca a estreia na encenação
da realizadora Ana Rocha de
Sousa, surge, necessariamente, como “homenagem”
à autora de O
Vinho e a Lira. Mas é mais do que isso. Num espectáculo
multidisciplinar, onde se enceta um falso
monólogo percorremos a obra, vida, pensamento, declarações públicas e privadas
de Natália Correia, sem que se torne necessariamente num exercício performativo
puramente biográfico. Pelo contrário: o facto de assistirmos a uma conversa de Natália Correia consigo mesma abre uma outra perspetiva, que vai
para lá daquela que conservamos no imaginário coletivo. Vemos
uma mulher que é feita de coragem, destemida e irreverente, mas também uma
Natália que falha, que se contradiz e que sofre. É
a Natália Correia que fazia troça dos boatos que sobre ela eram lançados, mas a
também a Natália Correia que se emociona profundamente quando se recorda do
arquipélago dos Açores, onde nasceu em 1923.
Ao Observador, Ana Rocha de Sousa explica que o desafio de trabalhar sobre
a vida de Natália Correia lhe interessava não apenas pela sua biografia, mas
pelo jogo do tempo, colocando a própria figura de Natália a falar consigo
própria. “Havia a ideia base da Filipa Martins, de ter uma Natália
mais nova e outra mais velha, com a premissa de ‘o que diriam uma à outra?’; e
a verdade é que isso me cativou. Isso
e o facto de ser sobre a Natália Correia, figura perante a qual tenho hoje uma
percepção diferente da que tinha no passado”, diz. O crescimento e a percepção
durante a sua vida de quem era Natália, explica Ana Rocha de Sousa, está ligada à política – “à Natália no
parlamento abraçada à Cicciolina” e, curiosamente, a dois livros
esquecidos. “Fiquei traumatizada e a minha mãe muito irritada, porque tinha
acabado de comprar dois livros dela que esqueci numa paragem de autocarro.
Quando lá voltei já tinham desaparecido”, conta. A verdade é que o
universo literário e artístico de Natália Correia nunca mais desapareceu do seu
imaginário.
Na mátria cósmica de Natália
“O poema não é o canto/ Que do
grilo para a rosa cresce. / O poema é o grilo/ É a rosa/ E é aquilo que
cresce”: declamam-se os versos do poema e volta a olhar-se
ao espelho. É Natália Correia em primeira pessoa que nos continua a interpelar.
Estamos no passado, por vezes no presente e de certa forma sempre a olhar para
o futuro. A mulher do Estado Novo é “mãe
da família” e são donas de casa com especialidade em economia das artes
domésticas. A poetisa contrapõe: “Não
aceitei essa disciplina que me era imposta de fora, não aceito nenhuma que me
seja imposta”. Fazem-se críticas
à classe intelectual, sobretudo aos escritores que procuram não ser emotivos, e
Natália reconhece em si as qualidades precisas para exercer espionagem. Estamos
nesse universo muito seu.
Voltamos uma vez mais à biografia. Em
especial durante as décadas de 1950 e 1960, era na sua casa que se reunia uma das
mais vibrantes tertúlias de Lisboa, onde compareciam as mais destacadas figuras
das artes, das letras e da política (oposicionista) portuguesas e também
internacionais. A certa altura recorda-se os processos em tribunal e
a censura, nomeadamente pela publicação, em 1966, da Antologia da Poesia
Portuguesa Erótica e Satírica, considerada ofensiva dos costumes. Para a autora de Descobri Que Era Europeia: impressões
duma viagem à América (1951),
era urgente ter sucesso na luta do povo contra um regime que discriminava e
censurava a liberdade, assim como era urgente pôr fim à guerra colonial, onde
“não se limpam armas” e se perdiam gerações de jovens portugueses.
À sua utopia libertária, Natália
Correia chamava de “mátria” cósmica, um conjunto de características
femininas que devem ser retomadas elevadas à cena cultural. Era também a sua
forma de criticar o poder patriarcal que em Portugal
acirrava com a política de repressão. A certa altura de O Dever de
Deslumbrar, abrem-se novos caminhos. A 25 de abril de 1974, dá-se a
Revolução dos Cravos e Natália começa a escrever aquele que é, ainda hoje, uma
das obras mais destacadas do seu percurso: Não Percas a Rosa. Ouve-se a canção de José Mário
Branco, com letra sua: “Dão-nos um
bolo que é a história da nossa história sem enredo e não nos soa na memória
outra palavra que o medo”.
▲ A
Natália de "O Dever de Deslumbrar" corrobora a imagem de uma
mulher “muito construída pelo tempo”, explica a encenadora Ana Rocha de Sousa
Mas nem tudo foram rosas no processo revolucionário. Também Natália se desiludiu, ainda que
não se tenha desligado da política. Contra outras formas de totalitarismo, a
peça aborda a sua entrada para o Partido
Social-Democrata. “Cometo o
crime de ser flexível, compassiva e humana”, diz. Nesses anos
antecipa também o futuro. “No ano 2000, sociólogos vaticinaram que o poder
transitaria para a liderança feminina”, mas acima de tudo, diz não
se importar que os homens fiquem a gerir as coisas menos interessantes desde
que a política de desenvolvimento cultural seja um pelouro das mulheres. “Com esta mulher existe, em muitas de nós, existe a
possibilidade de se encontrar uma conexão, mesmo que por vezes ela fosse
contraditória ou polémica”, salienta a encenadora.
“Há muitas coisas que ela disse, numa
época difícil e complexa, que foram de uma grande coragem. Sou uma
grande admiradora da força dela”, sintetiza. A Natália de O Dever de Deslumbrar corrobora a imagem de uma mulher “muito
construída pelo tempo”, explica Ana Rocha de Sousa, mas é por isso que a
consegue compreender. Tudo isto, leva-nos a interpretação e ao lugar que hoje
também ocupa. É por isso que a peça não esquece o tempo que vivemos.
São as próprias Natálias em palco que citam nomes de mulheres
assassinadas ou violentadas pelos maridos. Criticam-se os juízes, numa clara
ligação com alguns casos polémicos que têm sido debatidos na opinião publico ao
longo dos últimos anos. Essa viagem para o agora, diz a encenadora, surge
porque, “infelizmente continua a ser
preciso dizer e falar destes problemas”. Ser mulher continua a ser um
arriscar. O machismo na nossa sociedade continua a ser a prova dessa mátria que
não se realizou ainda. “É demolidor e
emociona-me ter a oportunidade de dar voz a isto, porque quero mesmo que não
esqueçamos esta realidade que ainda se vive”, acrescenta Ana Rocha de Sousa.
Estamos para lá do dispositivo cénico o
estético. As palavras de Natália Correia, no passado como no
presente, emanam urgência. “Talvez a pergunta a fazer seja: o que fazer por
estas mulheres, senhores Juízes?” diz. Mais do que tudo, nesta peça celebra-se
a vida de uma escritora prolífica que ainda se interroga, tanto jovem como na
idade mais avançada, sobre porque é que se começa a escrever. A resposta é ‘não
sei’. “Não te posso responder e penso
que todo o escritor que te responder dá-te uma resposta abstracta para não
dizer falsa”, explica Natália Correia. Talvez este diálogo consigo própria seja
precisamente o livro que tentou escrever durante a sua vida. Agora em palco é,
sinal da sua memória, mas também uma carta para as gerações vindouras.
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