terça-feira, 14 de novembro de 2023

O desastre


Há muito advertido, mas passivamente vivido, numa sociedade de falsas superioridades desdenhosas. Fomos dos que participámos nas advertências, perante a o desprezo ou a indiferença alheios, naturalmente. Ainda bem que pessoas mais salientes, no tablado diarístico ou social, como Patrícia Fernandes, retoma o tema, como é urgente, se queremos elevar-nos acima do terceiro mundismo educacional, se me é lícita a expressão. Suponho, contudo, que não vamos mais a tempo. Nunca iremos a tempo. Et pour cause.

O legado

Oito anos é muito tempo – mas não podem ser esquecidos nestes quatro meses. Importa recordar o legado que os governos de António Costa nos legaram, em particular no que diz respeito à educação.

PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 13 nov. 2023, 00:2017

Um momento que parecia tão distante tornou-se, de repente, tão próximo. Vemo-nos agora em contagem decrescente para o fim da governação de António Costa e, infelizmente, a discussão política parece limitar-se a contornos jurídicos. Discutem-se parágrafos da Procuradoria-Geral da República, escutas, prazos judiciais; distinguimos corrupção de tráfico de influências e tentamos compreender quem tentou forçar quem a fazer o quê; voltamos, mais uma vez, aos casos de corrupção no Partido Socialista e aos negócios promíscuos entre estado e privados; dividimo-nos entre acreditar na integridade de António Costa e espantarmo-nos com a irresponsabilidade de se ter rodeado por aquelas pessoas. Mas, enquanto nos distraímos com estas discussões, importa fazer o balanço de oito anos de governo.

Importa, acima de tudo, que não se sedimente a ideia de que foram bons governos que, por azar, tiveram infortúnios. Recordemos o estado a que chegou o serviço nacional de saúde, as condições nos tribunais, a desastrosa política de imigração e a destruição do SEF; e recordemos o país em que a maioria se sente pobre, ou porque percebeu que o seu salário está hoje muito próximo do salário mínimo ou porque a maioria dos comentadores, querendo contestar a subida do IUC, passou a designar como pobre quem tem um carro igual ao seu – éramos, há não muitos anos, a classe média: agora somos pobres.

E, claro, a educação. A inaptidão de pensar a longo prazo (há quanto tempo se sabia que os mestrados de ensino não estavam a formar professores em número suficiente para cobrir as reformas?); a incapacidade de ter uma visão política global e coerente entre as diferentes áreas governativas (se adotamos políticas de imigração tão amplas, isso não tem necessariamente impacto no número de professores de que necessitamos?); as medidas incompreensíveis durante a pandemia e a recusa em reconhecer o seu impacto negativo; a desvalorização dos problemas materiais e concretos da classe docente enquanto se despendem energias com legislação sobre autodeterminação de género; e a primazia dada às questões da “cidadania” em detrimento de um ensino de conteúdos. Sim, devemos recordar tudo isso. Mas, acima de tudo, não podemos esquecer uma das primeiras medidas tomadas pelo governo de António Costa, ainda em tempos de geringonça: a destruição de um sistema educativo plural, com a redução drástica dos contratos de associação.

Estes contratos, celebrados entre escolas privadas ou cooperativas e o estado, garantiam um financiamento estatal com a contrapartida de essas escolas fazerem parte do sistema de ensino público. Isto significa que, apesar de manterem autonomia para a determinação dos seus projectos educativos, as regras de acesso para os alunos eram iguais às de qualquer escola estatal e eram fiscalizadas pelo estado. Esta solução foi fundamental para o regime democrático, pois permitiu garantir o direito à educação de todos os portugueses: não havia escolas estatais suficientes e, por isso, os privados foram incentivados a providenciar um serviço que o estado não conseguia garantir.

Ainda assim, mesmo cumprindo a sua missão, estando perfeitamente integradas na comunidade, revelando uma procura mais elevada quando competindo com escolas estatais e, como se viria a verificar mais tarde, apresentando maior eficiência económica do que o sistema estatal, o primeiro governo de António Costa concretizou a sua destruição.

O contexto político permite compreender a razão: o acordo parlamentar entre a esquerda tinha de assentar numa base comum, que foi constituída substancialmente por medidas de reposição, mas que se abriu também à educação. Esta abertura resultou de uma mudança geracional dentro do Partido Socialista que se traduz numa visão ideológica muito mais centralista e estatista. Esta nova geração, muitas vezes designada, por comodidade, como jovens turcos (embora não sejam jovens, nem turcos), engloba muitos dos protagonistas dos últimos dias (João Galamba, Duarte Cordeiro, Pedro Nuno Santos); mas entre eles também poderíamos incluir João Costa e Alexandra Leitão. Tendo vivido uma outra história que não a história da formação do Partido Socialista, sentem-se mais próximos dos partidos à sua esquerda do que as gerações anteriores, são menos propensos a pensar soluções ao centro e de iniciativa privada e tendem a ter uma visão muito mais estatista da economia e centralizada da educação.

Não é possível pensar hoje a educação sem considerar o modo como ela tem vindo a ser entendida, no mundo ocidental, como local de disputa política e cultural. Entre nós, o plano educativo tem sido submetido, na última década, a um assalto político declarado, que visa substituir uma educação baseada em conteúdos por uma educação para a cidadania e em que o conhecimento e a exigência cedem lugar a “competências” e à relativização do mérito. Esta nova visão para a educação exige uma crescente centralização das funções educativas no estado – e isto permitiu aproximar as novas ideias do PS dos partidos à sua esquerda, levando a um acordo mobilizado socialmente contra as escolas com contratos de associação, com o desejo que correspondia ao receio de Tocqueville: “Forçar todas as crianças a frequentar as escolas do Estado. Eis que chegámos a Esparta.” Foram estes novos valores a conduzir à decisão relativa aos contratos de associação, que o Partido Socialista sempre havia respeitado e que eram genericamente aceites pelas gerações mais velhas.

Para o bem ou para o mal, a ambição centralizadora resulta sempre em desastre e não são, por isso, surpreendentes os problemas que a escola pública tem revelado. A consequência tem sido o crescimento do ensino particular e cooperativo (garantido pelo art. 43º/4 da CRP), que tem um peso cada vez maior nas grandes zonas urbanas, como notou Rodrigo Queiroz e Melo recentemente. Mas esta liberdade está limitada às famílias com mais recursos económicos, pelo que o PS, na sua viragem ideológica, acabou por produzir uma sociedade mais desigual, em que as famílias com maiores rendimentos são livres de escolher um ensino de qualidade, enquanto as famílias de menores rendimentos estão condenadas a uma escola pública com poucos recursos, mal-organizada e sujeita a uma carga ideológica crescente. (O repto lançado por João Miguel Tavares, no sentido de se saber quantos dos ministros socialistas têm filhos em escolas privadas, faz todo o sentido.)

Oito anos é muito tempo – mas não podem ser esquecidos durante os quatro meses que o Presidente da República considerou necessários para que os partidos se organizem e a sociedade se prepare para novo momento eleitoral. Importa recordar o legado que os governos de António Costa nos legaram, em particular no que diz respeito à educação.

CRISE POLÍTICA     POLÍTICA     EDUCAÇÃO     GOVERNO

COMENTÁRIOS (de 17):

Jose Ferreira > Paulo Silva: A pedir um epitáfio. Requiem por Abril.               Paulo Silva: Cara Patrícia, com o 25 de Novembro de 1975 finaram-se os aventureirismos prequianos e perigosos da extrema-esquerda, e, para grande infelicidade do Dr. Cunhal e apaniguados, Portugal e os portugueses lá puderam abraçar uma “democracia burguesa”. Mas esta nunca se livrou da marca indelével de nascença do socialismo… até hoje, ao fim de meio século. Ainda cá está! Mas importa fazer um pequeno historial dos partidos socialistas nas democracias ocidentais. Com estes aconteceu uma coisa curiosa. Após décadas no poder acabaram inevitavelmente por se corromper, e das duas uma: ou acabavam na quase extinção, casos de França, Itália ou Grécia, ou se radicalizavam, casos ibéricos do PS ou do PSOE… A geringonça não se limitou às reposições das condições socio-económicas que anteriormente nos conduziram contra a parede. A sua acção estendeu-se também a transformações no campo da Cultura, onde se insere obviamente a Educação. A Patrícia refere e bem o desperdício de energia com a legislação sobre a autodeterminação de género, e eu recordo logo a abrir, com o derrube do XX Governo Constitucional de Passos Coelho, a 20 de Novembro de 2015, ainda nem o executivo de António Costa tinha tomado posse, eram aprovadas na AR, já dominada pelos partidos da geringonça, a Lei da adopção plena por todos os casais, (ou adopção gay), e a revogação das taxas moderadoras da IVG. Mas voltando à Educação gostaria de dizer, como já aqui escrevi em resposta a um colega comentador, que o sector foi o calcanhar de Aquiles do regime democrático. Se a Saúde foi a menina dos olhos dos arautos do Estado social, mimada de consensos, a Educação foi sempre a enteadaPau para todo o serviço transformada em laboratório e campo de batalha de visões concorrentes de ideologia educativa. As reformas e mudanças de programas escolares foram constantesPaixão das esquerdas e obsessão dos totalitários - propaganda e controlo das massas oblige – a Educação foi no meu entender o maior falhanço da democracia pelas razões apontadas. Com o fim dos contratos de associação Costa produziu uma sociedade mais desigual, sim, mas qual o problema se o que conta mesmo é a lavagem cerebral e o controlo das massas?...                  João Eduardo Gata: O Legado de António Costa e do PS é ARRASADOR: Caos na Educação, Caos na Saúde, Caos na Habitação, Caos na Democracia com Constantes Derivas Autoritárias, Facadas Constantes na Democracia e na Separação de Poderes, e com Reputação de Portugal de Rastos. Este Legado é tão mau como o Legado deixado por José Sócrates, que foi um de Profunda Crise Social e Económica, e de uma Colossal Dívida Pública


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