Um artigo elucidativo de José Manuel Fernandes
sobre as nossas políticas económicas, que misteriosamente elevam 79 euros
à categoria de salvadores da nação, por alturas de 2015, o que retira verdade à
acusação de que o governo de Passos Coelho causara o empobrecimento do país,
acusação do actual governo, para embandeirar em arco as suas próprias políticas,
que acabaram por retirar Portugal do peso do Défice Excessivo e o
mais que se seguirá. É claro que todos ficamos contentes com a vitória da
Geringonça, e José Manuel Fernandes elabora a sua narrativa em termos de novelística
policial, cheia de suspense, mas repondo as verdades no contexto da actual
saída do Procedimento por Défice Excessivo, saída que fora preparada
pelo governo anterior, numa economia que começava a dar os seus frutos então.
Como todos ficámos contentes por não estarmos mais sequestrados
na lixeira em que chafurdamos há muito, transcrevo também da Internet, de 22 de
Maio, uns passos sobre a nossa saída do PDE, e resolvermos fazer as pazes com hombridade:
O mistério dos 79 euros
OBSERVADOR,
22/5/2017
Em
2015, na era do "empobrecimento", o rendimento médio mensal das
famílias subiu 79
euros. Uma surpresa tão grande como a economia crescer
exactamente pelas razões opostas às defendidas pelo Governo.
Neste
tempo em que todos os portugueses, e sobretudo todos os políticos, se tornaram
especialistas em economia, há um mistério de que ninguém falou. É o mistério
dos 79 euros.
O
número surgiu num relatório
do INE divulgado a semana passada sobre os resultados do Inquérito às Condições
de Vida e Rendimento dos portugueses mas que não deu grandes títulos. Contudo
estava lá, preto no branco: “O rendimento médio mensal por agregado
familiar aumentou 79 euros em 2015”.
Como?
Em 2015, nesse tempo negro de “empobrecimento deliberado dos portugueses”, o
rendimento médio das famílias aumentou 79 euros por mês? Antes da famosa
“devolução de rendimento”? Antes do “milagre” de que agora toda a gente fala, o
do crescimento económico do primeiro trimestre deste ano?
É
verdade. Esse relatório
do INE que tão despercebido passou diz-nos mais coisas curiosas. No último ano
desse “tempo das trevas”, o “rendimento monetário disponível mediano por adulto
para a população em risco de pobreza” aumentou 7,6%, ou seja, o rendimento
nesse tempo de “ódio aos pobres” aumentou mais para os pobres do que para o
conjunto da população (onde só aumentou 4,1%). E não só: foi entre os mais
pobres do pobres, os 10% com menos rendimento da sociedade portuguesa que,
proporcionalmente, o rendimento aumentou mais. Como escreve o INE, “o
crescimento dos rendimentos monetários equivalentes entre 2014 e 2015 foi
abrangente a todas as classes de rendimento, mais expressiva para as pessoas
com menores rendimentos (1º decil)”.
Esse
relatório quase só fez títulos por causa
do número de portugueses em risco de pobreza ou exclusão social (2,6 milhões),
mas a verdade é que também aí as notícias eram de uma evolução positiva: os
25,1% registados nesse ano face ao conjunto da população representam menos 1,5
pontos percentuais do que no ano anterior.
Mas
deixemos todos estes números, para regressar aos nossos 79 euros. Não
sabemos de onde eles vieram, mas é possível que o crescimento registado no
último ano do “empobrecimento”, 1,6%, tenha ajudado alguma coisa. Talvez mesmo
um pouco mais do que os 1,4% registados no primeiro ano do “enriquecimento”, ou
seja, da era da geringonça. Quanto ganharam os portugueses (e não só os
funcionários públicos e uma pequena minoria dos pensionistas) com a “devolução
de rendimentos”? Só saberemos quando sair um relatório idêntico a este daqui
por um ano, e talvez nessa altura fiquemos a saber mais sobre o mistério de como
“empobrecendo” as famílias ficam, afinal, com mais 79 euros disponíveis por
mês.
Mas
algo sabemos já: os 4,1% de crescimento do rendimento disponível das famílias
coincide com os 4,1% de crescimento do PIB per capita em 2015. Ora isto
conduz-nos ao número de que se tem falado mais nos últimos tempos: os 2,8% de
crescimento homólogo no primeiro trimestre de 2017. Até porque, ao contrário
do que propôs Marcelo Rebelo de Sousa,
devemos procurar perceber que políticas públicas tiveram mérito para estarmos
agora a festejar aquele resultado. E também porque, não esqueçamos, a lição que
António Costa tirou do crescimento do primeiro
trimestre foi que “muito gente entendeu que era preciso empobrecer para sermos
competitivos”, elogiando depois a “prioridade que foi dada à reposição de
rendimentos” que “reforçou a coesão e a confiança, que são indispensáveis ao
crescimento”. O que não deixa de ser uma declaração curiosa se recordarmos os
nossos 79 euros a mais por mês em… 2015.
Se
pensarmos que, mesmo sendo mérito primeiro das empresas e dos portugueses, o
sucesso económico não é independente das políticas públicas, então há mais
alguns dados nos relatórios do INE que vale a pena considerar.
Primeiro,
sobre o que nos aconteceu em 2016, ano 1 da geringonça e em que o crescimento
económico ficou pelos 1,4%. Todos nos recordamos que o alfa e
ómega das políticas públicas da era Mário Centeno eram a “reposição de
rendimentos” para “estimular o consumo privado” e a “procura interna”. Isto
por contraponto a um muito criticado modelo de crescimento assente no
crescimento das exportações, o tal que vinha do “tempo do empobrecimento”.
E
o que é que já nos disse o INE sobre o crescimento de 2016?
Que houve “ligeiro abrandamento do consumo privado” e uma “redução do
investimento”, esta última consequência directa do corte do investimento
público para valores tão baixos que nem nos confins do salazarismo se
registavam. Escreve mesmo o INE, vejam lá, que em 2016, o ano em que voltámos a
enriquecer, “o investimento diminuiu 0,9% em termos reais, após ter registado
um aumento de 4,6% no ano anterior”, o tal ano em que ainda vivíamos submetidos
ao odioso neoliberalismo. Já as exportações cresceram 4,4% em 2016, mesmo assim
menos do que tinham crescido em 2015, com excepção de uma área, pois
verificou-se “uma aceleração na componente de turismo”.
Depois,
o que é que já sabemos sobre o que se está a passar em 2017, ou seja, o que é que
o INE já nos disse
sobre como se alcançaram os 2,8% de crescimento por comparação com o primeiro
trimestre de 2016? No essencial que “esta aceleração resultou do
maior contributo da procura externa líquida”, o mesmo é dizer que foram de novo
as exportações que sustentaram o crescimento. Mais: por comparação com o
trimestre anterior até houve uma desaceleração do consumo privado.
O
que esta breve revisita ao que já sabemos sobre o crescimento permite perceber
que este está a acontecer precisamente ao contrário do que era proposto pelo PS
(e por Mário Centeno em particular) e pela restante geringonça. Quer isto
dizer que o “milagre” aconteceu não por obra do Governo, mas apesar do Governo?
Sim, no que respeita à retórica. Não, no que concerne a um elemento fundamental
da sua prática: a manutenção de uma austeridade sob novas roupagens, uma
austeridade que permitiu a diminuição do défice público para os 2,0%, um número
que muito irritou Mariana Mortágua, que considerou essa descida “radical” e “contraproducente”.
É
por haver esta divergência tão radical entre o discurso político (e também
mediático) e o que realmente está a acontecer que é interessante recordar o
paradoxo do povo que empobrece esta diferença tão mesmo quando o rendimento
mensal das famílias cresce os tais 79 euros. É também por haver grande diferença
entre o que se prega e o que acontece que não podemos ignorar duas coisas: primeiro,
que a criação de riqueza na economia é antes do mais fruto das escolhas dos
cidadãos e das empresas, sobretudo quando estes teimam em contrariar o que os
políticos pregam; segundo, que o principal mérito das políticas públicas nunca
será o de dizer o que os agentes económicos devem fazer, mas o de lhes dar
condições para o fazerem e, ao mesmo tempo, proporcionarem os incentivos certos
e não atrapalharem.
Na
verdade o que o crescimento dos últimos trimestres nos mostra é que houve mesmo
uma enorme reforma estrutural da economia portuguesa durante os anos da troika
– e essa reforma foi aquela que permitiu que as exportações passassem de 29% do
PIB em 2010 para mais de 40% do PIB em 2015. Houve muitos factores que
contribuíram para que isso acontecesse, mas nenhum terá sido mais forte do que
a necessidade: as empresas portuguesas, confrontadas com a crise,
reinventaram-se.
Num
texto recente, João Pires da Cruz é bastante
gráfico a ilustrar essa profunda mudança: no princípio deste século cada
trabalhador “vendia” 7 mil euros ao estrangeiro; em 2016 “vendeu” 17 mil euros.
É um salto impressionante. E é um salto que, nos últimos anos, tem contado com
a ajuda preciosa da venda de serviços, em particular de serviços turísticos.
Neste
milagroso primeiro trimestre o turismo cresceu 6,7% em número de hóspedes, 5,6%
em dormidas e 13,5% em receitas, isto quando as dormidas de cidadãos nacionais
estão a cair 2%, o que significa que nem aqui é o “estímulo ao consumo interno
que está a funcionar”. Mais: a tímida recuperação da indústria da construção,
que cresceu no trimestre passado depois de 13 anos a cair, não resulta de
investimento público, que continua a não se materializar, mas sobretudo de
obras induzidas pelo turismo, nomeadamente as inúmeras obras de reconstrução de
imóveis que têm vindo a transformar o centro das nossas principais cidades,
antes um terreno de ruínas.
Não
é necessário falsificar os números para falsear a percepção da realidade. Basta
falar muito de uns, como os 2,8% do crescimento, e omitir outros, como os
nossos misteriosos 79 euros, para que se confunda toda a chamada “narrativa”. E
o perigo é que foi com “narrativas” falseadas que não há muitos anos se dizia
que tudo corria bem quando tudo já estava a correr mal.
Por
enquanto, na sua imensa sabedoria, o povo ainda não começou a ir em conversas,
pois ainda não se pôs de novo a consumir de forma desregrada. Mas
cuidado, que depois tantos sinais errados, de tanto estímulo ao facilitismo
(caso da recente tolerância de ponto) e de reais reversões de políticas
estruturantes (como no arrendamento urbano), podemos embriagar-nos de novo. Já
esteve mais longe esse dia.»
Da Internet:
- «A «Recomendação da Comissão Europeia abre portas a uma
saída também da categoria de “lixo” e isso é um
“sinal de confiança" da economia.»
-
«Deixando o PDE, “passaremos para o nível seguinte, de ‘apenas com
desequilíbrios’, mas continuaremos no quadro de país que vai ser alvo de uma
análise mais aprofundada, ainda que mais longe da situação que poderia estar
sujeito a sanções”.
-
Ou seja, Portugal passa do "braço correctivo" para o "braço
preventivo" do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), ficando obrigado
a apresentar ajustamentos estruturais todos os anos e a baixar a dívida pública
a um ritmo mais acelerado.
-
“Estamos longe dos 60% do PIB fixados pela União Europeia” para a dívida
pública, afirma o economista (João Cerejeira).
-
Para melhorar este cenário, “é preciso dar sinais de que haverá uma redução
anual e sustentável no médio prazo”, enviando “um sinal de confiança” também às
agências de notação e levando assim que retirem “a dívida portuguesa da
categoria de ‘lixo’”.
-
“Assim, desceria a taxa de juro que temos de pagar”, explica João Cerejeira.
- O professor da Universidade do Minho acredita que
“só este ano poderemos notar alguma diminuição no peso da dívida pública no
PIB, o que será positivo para as contas públicas”.
Para que tal aconteça, “além de diminuir o défice, é
importante que o próprio crescimento económico acelere e é isso que tem vindo a
acontecer nos últimos trimestres, o que dá uma perspectiva favorável ao
cumprimento dos objectivos nesse domínio”, conclui.»
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