Não
dei, é certo, pelo apoio das moças ou do enrugado sénior do descanso
governamental, que têm a seu cargo exclusivamente o jogo da defesa e o concomitante
do ataque circunscritos à sua área da dedicação virtuosa das classes desprotegidas
e de condenação das políticas que as desprotegeram, e que daí não passam, no
dispêndio exaustivo da sua emotividade amalgamada com a sua razão, em autêntica
consagração de uniformidade no zelo. Mas João Miguel Tavares, que lhes não
pertence, afirma-se dentro das mesmas ondas panegiristas de exaltação
clubística, quer se trate do ramo artístico, do ramo desportivo ou o da
consagração hierática, como a de toda a gente por cá, necessitada dessas
emoções de doce euforia que o país viveu.
João
Miguel Tavares não destoa, pois, do conjunto optimista, e dá largas ao seu
entusiasmo, com algumas alfinetadas justificativas do lado pessimista da sua
argúcia crítica, que é sempre um prazer ler:
OPINIÃO
O que é que mais pode correr bem?
Vou converter-me ao costismo – o país está
tão espectacular, que até parece mal dizer mal.
João Miguel Tavares
16 de Maio de 2017
Agora que Salvador Sobral venceu a Eurovisão, o Papa veio a Fátima canonizar dois pastorinhos, o Benfica
foi tetracampeão, o primeiro-ministro revelou-se um magnífico
primeiro-nanny para os meus filhos e a economia cresceu 2,8% no primeiro trimestre
de 2017, suponho que a única coisa que me resta é começar a preencher este
espaço com corações cor-de-rosa desenhados a caneta de feltro, um sol muito
amarelo junto ao Bartoon do Luís Afonso, e um riacho azul a deslizar até à
ficha técnica do jornal. Vou converter-me ao costismo – o país está tão
espectacular, que até parece mal dizer mal.
Peguemos, por exemplo, no que era suposto ser
a pior notícia do mês para o Governo – a greve dos médicos. À primeira vista, era uma greve importante. Metia médicos,
a saúde dos portugueses, gente a bater com o nariz na porta de consultas
marcadas há meses – e era o primeiro grande momento de contestação social à
política do Governo. Mais: quando se juntava a greve do dia 10 e 11 à
inacreditável tolerância de ponto de dia 12, estávamos a falar de três dias
consecutivos sem médicos nos hospitais – cinco, se contarmos com o
fim-de-semana. Pergunto: alguém deu por isso, tirando os pobres utentes que
tiverem de voltar para casa com receitas vazias? Eu cá não dei. Embora os
sindicatos do sector garantam que não só houve greve como a adesão terá
atingido os 90%, ela foi praticamente invisível. Ou seja, na era de
António Costa, não só há poucas greves, porque a esquerda apoia o Governo, como
as poucas que há não têm qualquer impacto mediático. Quem fica malvisto ainda
são os grevistas, tidos por excessivamente reivindicativos numa altura em que o
senhor primeiro-ministro se está a esforçar tanto para endireitar o país.
Ajoelhem-se, caros leitores, porque diante de
nós está a ressurreição de Portugal: tudo o que era sofrimento com Passos
Coelho se transmutou em alegria com António Costa. Não se trata apenas de o Diabo não ter
vindo – trata-se de, em vez dele, ter comparecido o Arcanjo Rafael, que
tudo remedeia e tudo cura, em termos físicos, psíquicos e espirituais. Em
vez das sete pragas do Egipto temos as sete bênçãos dos céus. Não pensem
que estou a sugerir aqui qualquer espécie de manipulação mediática, com os
jornalistas congeminados numa grande conspiração para perpetuar os socialistas
no poder. Nada disso. Costa, simplesmente, conseguiu juntar: 1) um país
cujo ajustamento mais doloroso já tinha sido feito à custa do odioso Passos; 2)
uma Europa a crescer de forma significativa; 3) um Mario Draghi a
prometer continuar a comprar dívida aos magotes; 4) uma esquerda que se
mantém fora das ruas e deixou de ir gritar para as televisões; 5) um
pragmatismo que o leva a borrifar-se para a estratégia política prometida,
porque a prioridade continua ser o cumprimento das regras europeias; 5) uma postura optimista e sorridente que o distancia do ar macambúzio
de Passos.
O resultado dos pontos 1 a 5 é este: tudo
corre bem a António Costa. Ainda que no final do mês o dinheiro que
sobra na carteira dos portugueses seja o mesmo que sobrava no tempo de Passos
Coelho, o que antes era uma terrível tempestade agora é um quadro de William
Turner. Com a habitual ciclotimia portuguesa, a besta passou a bestial.
Voltámos a ser os maiores: campeões europeus a jogar à bola, campeões europeus
a cantar, campeões europeus a acreditar. Passem os lápis de cera, por
favor – sinto uma necessidade urgente de desenhar passarinhos a chilrear.
Augusto Santos Silva, Salvador Sobral e a RTP
Os irmãos Sobral criaram
uma grande mas sem as boas ideias de profissionais competentes e independentes
na RTP, não teriam chegado a criar coisa alguma.
João Miguel Tavares
Mas se
Santos Silva percebeu bem a singularidade musical da canção, não
resistiu depois a transformá-la numa singularidade lusitana, no sentido
em que Salvador Sobral cantou em português, afirmou o seu
talento individual e rompeu com a “lógica comercial, do marketing, da
uniformidade e do monolinguismo” que dominava a Eurovisão. Como de
costume, assim que nos apanhamos a vencer não resistimos a pregar ao mundo. Ora, se
é verdade que Salvador Sobral demonstrou, como era seu desejo, que “a música
não é um fogo-de-artifício”, também é verdade que ele e a sua irmã foram
dois magníficos trunfos de marketing nos últimos meses – por causa da
simpatia e espontaneidade de ambos, por dominarem um apreciável conjunto de
línguas, e porque o próprio Salvador é uma personagem fascinante, que extravasa
a dimensão estritamente musical. Sim, é verdade que ele é um intérprete
notável e um justo vencedor, mas a vitória na Eurovisão não se deve apenas à
sua singularidade enquanto intérprete – pelo contrário, deve-se à construção
altamente profissional de um caminho que permitiu que essa singularidade se
manifestasse.
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