sexta-feira, 19 de maio de 2017

Chilreemos, pois!



Não dei, é certo, pelo apoio das moças ou do enrugado sénior do descanso governamental, que têm a seu cargo exclusivamente o jogo da defesa e o concomitante do ataque circunscritos à sua área da dedicação virtuosa das classes desprotegidas e de condenação das políticas que as desprotegeram, e que daí não passam, no dispêndio exaustivo da sua emotividade amalgamada com a sua razão, em autêntica consagração de uniformidade no zelo. Mas João Miguel Tavares, que lhes não pertence, afirma-se dentro das mesmas ondas panegiristas de exaltação clubística, quer se trate do ramo artístico, do ramo desportivo ou o da consagração hierática, como a de toda a gente por cá, necessitada dessas emoções de doce euforia que o país viveu.
João Miguel Tavares não destoa, pois, do conjunto optimista, e dá largas ao seu entusiasmo, com algumas alfinetadas justificativas do lado pessimista da sua argúcia crítica, que é sempre um prazer ler:

OPINIÃO
O que é que mais pode correr bem?
Vou converter-me ao costismo – o país está tão espectacular, que até parece mal dizer mal.
João Miguel Tavares
16 de Maio de 2017
Agora que Salvador Sobral venceu a Eurovisão, o Papa veio a Fátima canonizar dois pastorinhos, o Benfica foi tetracampeão, o primeiro-ministro revelou-se um magnífico primeiro-nanny para os meus filhos e a economia cresceu 2,8% no primeiro trimestre de 2017, suponho que a única coisa que me resta é começar a preencher este espaço com corações cor-de-rosa desenhados a caneta de feltro, um sol muito amarelo junto ao Bartoon do Luís Afonso, e um riacho azul a deslizar até à ficha técnica do jornal. Vou converter-me ao costismo – o país está tão espectacular, que até parece mal dizer mal.
Peguemos, por exemplo, no que era suposto ser a pior notícia do mês para o Governo – a greve dos médicos. À primeira vista, era uma greve importante. Metia médicos, a saúde dos portugueses, gente a bater com o nariz na porta de consultas marcadas há meses – e era o primeiro grande momento de contestação social à política do Governo. Mais: quando se juntava a greve do dia 10 e 11 à inacreditável tolerância de ponto de dia 12, estávamos a falar de três dias consecutivos sem médicos nos hospitais – cinco, se contarmos com o fim-de-semana. Pergunto: alguém deu por isso, tirando os pobres utentes que tiverem de voltar para casa com receitas vazias? Eu cá não dei. Embora os sindicatos do sector garantam que não só houve greve como a adesão terá atingido os 90%, ela foi praticamente invisível. Ou seja, na era de António Costa, não só há poucas greves, porque a esquerda apoia o Governo, como as poucas que há não têm qualquer impacto mediático. Quem fica malvisto ainda são os grevistas, tidos por excessivamente reivindicativos numa altura em que o senhor primeiro-ministro se está a esforçar tanto para endireitar o país.
Ajoelhem-se, caros leitores, porque diante de nós está a ressurreição de Portugal: tudo o que era sofrimento com Passos Coelho se transmutou em alegria com António Costa. Não se trata apenas de o Diabo não ter vindo – trata-se de, em vez dele, ter comparecido o Arcanjo Rafael, que tudo remedeia e tudo cura, em termos físicos, psíquicos e espirituais. Em vez das sete pragas do Egipto temos as sete bênçãos dos céus. Não pensem que estou a sugerir aqui qualquer espécie de manipulação mediática, com os jornalistas congeminados numa grande conspiração para perpetuar os socialistas no poder. Nada disso. Costa, simplesmente, conseguiu juntar: 1) um país cujo ajustamento mais doloroso já tinha sido feito à custa do odioso Passos; 2) uma Europa a crescer de forma significativa; 3) um Mario Draghi a prometer continuar a comprar dívida aos magotes; 4) uma esquerda que se mantém fora das ruas e deixou de ir gritar para as televisões; 5) um pragmatismo que o leva a borrifar-se para a estratégia política prometida, porque a prioridade continua ser o cumprimento das regras europeias; 5) uma postura optimista e sorridente que o distancia do ar macambúzio de Passos.
O resultado dos pontos 1 a 5 é este: tudo corre bem a António Costa. Ainda que no final do mês o dinheiro que sobra na carteira dos portugueses seja o mesmo que sobrava no tempo de Passos Coelho, o que antes era uma terrível tempestade agora é um quadro de William Turner. Com a habitual ciclotimia portuguesa, a besta passou a bestial. Voltámos a ser os maiores: campeões europeus a jogar à bola, campeões europeus a cantar, campeões europeus a acreditar. Passem os lápis de cera, por favor – sinto uma necessidade urgente de desenhar passarinhos a chilrear.


Augusto Santos Silva, Salvador Sobral e a RTP
Os irmãos Sobral criaram uma grande mas sem as boas ideias de profissionais competentes e independentes na RTP, não teriam chegado a criar coisa alguma.
João Miguel Tavares
O ministro dos Negócios Estrangeiros louvou ontem a vitória de Salvador Sobral no Festival da Eurovisão, num artigo de opinião no PÚBLICO , onde cruza a crítica musical arguta com a subtil análise política.Não se trata apenas de celebrar uma vitória nacional”, escreveu Augusto Santos Silva, “mas o modo como foi conseguida”. É um facto: os irmãos Sobral apresentaram-se com uma canção que qualquer pessoa com décadas de Eurovisão diria não ter quaisquer hipóteses, por ser pouco festivaleira – este equívoco torna a vitória de ambos ainda mais meritória.
Mas se Santos Silva percebeu bem a singularidade musical da canção, não resistiu depois a transformá-la numa singularidade lusitana, no sentido em que Salvador Sobral cantou em português, afirmou o seu talento individual e rompeu com a “lógica comercial, do marketing, da uniformidade e do monolinguismo” que dominava a Eurovisão. Como de costume, assim que nos apanhamos a vencer não resistimos a pregar ao mundo. Ora, se é verdade que Salvador Sobral demonstrou, como era seu desejo, que “a música não é um fogo-de-artifício”, também é verdade que ele e a sua irmã foram dois magníficos trunfos de marketing nos últimos meses – por causa da simpatia e espontaneidade de ambos, por dominarem um apreciável conjunto de línguas, e porque o próprio Salvador é uma personagem fascinante, que extravasa a dimensão estritamente musical. Sim, é verdade que ele é um intérprete notável e um justo vencedor, mas a vitória na Eurovisão não se deve apenas à sua singularidade enquanto intérprete – pelo contrário, deve-se à construção altamente profissional de um caminho que permitiu que essa singularidade se manifestasse.

 


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