quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Demos beleza ao momento de Rui Rio

Com António Gedeão que o define. Ou mesmo com Adriano Correia de Oliveira, que o canta. Enquanto reflectimos nas argumentações de Maria João Avillez e de João Miguel Tavares que o descrevem – um outro e o mesmo - homem nascido.
Talvez Rui Rio seja também uma força da natureza. À nossa maneira. Mais uma.

Fala do Homem Nascido
Venho da terra assombrada
do ventre de minha mãe
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém

Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci

Trago boca pra comer
e olhos pra desejar
tenho pressa de viver
que a vida é água a correr

Venho do fundo do tempo
não tenho tempo a perder
minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada

Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham
nem forças que me molestem
correntes que me detenham

Quero eu e a natureza
que a natureza sou eu
e as forças da natureza
nunca ninguém as venceu

Com licença com licença
que a barca se fez ao mar
não há poder que me vença
mesmo morto hei-de passar
com licença com licença
com rumo à estrela polar

OBSERVADOR, 17/1/2018
Se o PSD fizer escolhas mais adequadas à nossa realidade e às suas circunstâncias em vez de alinhar na semi-ficção do país das maravilhas onde garantem que vivemos já estará a ser diferente. E melhor.
1. Tratou-se sempre dele, primeiro ponto, primeira constatação. Não havia equipa, nem núcleo duro, nem colectivo, nem “conselheiros”, ou se havia estavam nos bastidores, a bom recato. Assim mandava a estratégia previamente delineada por Rui Rio e pode ver-se nisto um sinal de autoridade, vaidade, solidão, prudência mas o que é facto é que esta escolha de actuação, de certo modo o ampliou: era ele, para o bem e para mal. Percorreu o país “do” PSD praticamente sozinho ou na companhia de meros funcionários, dispensou quase sempre caras e nomes ao seu lado, num frente a frente com o PSD há muito adiado e nem sempre pelas melhores razões. Agora ficou feito, está assinado por baixo, terá data de Fevereiro mas o pano já subiu sobre o mais tenso e denso dos actos da peça (e muitas contas serão pedidas ao novo líder pelo seu  sucesso ou não, do seu epílogo) Até aqui a campanha, embora certamente exaustiva como costumam ser, foi um passeio profissionalmente bem aberto por caciques recrutados a dedo, porque sabiam o que faziam. Também a próxima escolha de equipas, nomes, listas, substituições — tarefa que ciclicamente galvaniza a media, deslumbra os escolhidos e revolta os expatriados – exigirá apenas do novo líder critério e equilíbrio entre a urgência de mostrar autoridade e a recusa de que ela se confunda com uma (prometida) purga ou com o desejo de sangue por parte de oligarcas ressentidos. O resto é o “depois” e o depois é tudo.
2. Conhecem-se alguns traços do personagem: sólido economista, escasso currículo político, gelada intransigência, autoritarismo cortante, convicções, seriedade de aço, algumas hesitações em momentos cruciais; poucos amigos. E depois, uma manifesta preferência por uma espécie de “fechamento” à palpitação da vida, como se houvesse nele uma vontade de distância do mundo e dos seus vários universos; uma sempre expressa relutância face a Lisboa desprezivamente tratada de “corte” que nos lembra os “cubanos” de Alberto João Jardim e será sempre mais nefasta para o próprio Rio do que para quem o ouve denegrir Lisboa e lisboetas. E claro, o rigor com as contas.
O que num país permanentemente endividado e sobrevivendo à custa do oxigénio do Estado, evidentemente se estranha e simultaneamente se saúda. (Não terá sido por acaso que Cavaco Silva conversou com Rui Rio algumas vezes nos últimos meses).
Tudo isto que é apenas uma parte das coisas vem adubado politicamente de alguns temas desde sempre eleitos pelo novo líder da oposição (justiça, contas públicas, regime, media) mas não sempre — ou quase nunca — evocados com felicidade ou sequer sensatez.
Desde que faço jornalismo, há uma eternidade, que se diz e se escreve (às vezes eu também, mea culpa) que os programas dos sucessivos candidatos são pobres, inócuos, vazios, sem “nada de novo”, e as suas moções de estratégia, idem. O que não é inteiramente verdade nem foi o caso com Santana Lopes e com Rui Rio, o problema deles foi outro. Telmo Faria liderou com acerto e empenho a equipa de Santana onde houve muito trabalho de casa, e Rio sugeriu pistas de actuação e defendeu um perfil de actuação política numa eventual liderança do país. O (inconcebível) problema deles foi terem-se deixado enredar num (ronceiro) carrocel de faits divers e enlear na recordação acusatória de dispensáveis episódios.
Depois houve o tiraço no pé daquele anúncio-bomba de bondosa disponibilidade para um Bloco Central, ainda hoje para mim um mistério, pesem embora as sábias “explicações” publicadas por colegas e amigos. Aliás quer-me parecer que a (fatal) promessa de casamento de Rui Rio teve peso e sedutora influência na militância laranja: sentiram-se logo convidados para o banquete. Não é verdade que mais vale um resto do bolo, do que bolo nenhum? Em nome do país, claro está e dos superiores interesses da pátria.
3. Se os únicos desafios interessantes são os “impossíveis” não haverá mais adequada ferramenta política do que a “impossibilidade” para ressuscitar o dantes potente motor do PSD. Não é, contudo, preciso ser original, nem vai ser necessário “reinventar” como recomenda licealmente o Presidente da República, é só preciso fazer o que falta e que é urgente. Breves mas elucidativos exemplos que distintamente marcam uma desejável fronteira: governar Portugal atendendo a todos e não privilegiando apenas umas classes; ocupar-se dos portugueses em vez apenas do funcionalismo público; olhar para o Estado e exigir-lhe um funcionamento sério, responsável e “accountable”, erradicando de vez a habitual irresponsabilidade de sempre. Tomar cuidado com a embriaguez do turismo — vejam-se os modestíssimos salários que produz — e subir antes o “investimento” nas empresas exportadoras, parte de leão da nossa economia; contas públicas saudáveis mas não à custa de cativações, sempre semi-disfarçadas, sempre prejudiciais ao cumprimento das responsabilidades do serviço publico; menos apelos ao consumo e promoção da poupança e da sua remuneração.
4. A oposição é um deserto inóspito. E quando o povo está feliz como nos dizem ser o caso, o deserto torna-se inabitável: ninguém lá quer estar. Temos os olhos e a memória cheia de pequenas e médias traições, infidelidades, abandonos, dessas travessias dos desertos oposicionistas. Se o PSD enveredar por escolhas mais adequadas à nossa realidade e às suas circunstâncias em vez de alinhar na semi-ficção do país das maravilhas onde nos garantem que vivemos — um Estado falido e inoperante, prioridades trocadas na economia e apenas meio país a ser tido em conta — já estará a ser “diferente”. Melhor.
É assim que nasce uma alternativa.
5. Isto dito, convinha um pouco mais: que quer o novo líder da oposição do seu país? Que propósito e que destino? Quer fazer o quê com os portugueses, desafiá-los para que marcos?
E já agora… como olha ele a Europa, o mundo, a guerra e a paz, Trump ou Putin, a China ou a Turquia, a partir do Porto? Que lhe ouvimos sobre a UE e a espécie de viragem/mudança que lá está em curso? Qual a sua opinião sobre o que a nova coligação alemã acaba de propor à mesma UE? Numa palavra, como entende as prioridades, o significado, o lugar de Portugal no tabuleiro da política externa?
Dir-me-ão que é cedo, o tempo se encarregará de tornar clara a, digamos assim, visão externa do PSD. Eu direi que o que se estranha é ter de perguntar por ela.
6. O que acima escrevi em nada colide com o que aqui deixei na última semana e repito hoje: não tenho por onde – nem porquê – excluir que não possa haver boas iniciativas na próxima liderança do PSD. Além de que admiro sempre quem se desinstala ao ponto de galopar uma campanha eleitoral como foi o caso com Santana Lopes e Rui Rio. Um perdeu, o outro ganhou. Vitória de desfecho incerto? Incertíssimo. Sucede, porém, que conheço poucas moradas onde a surpresa possa ser tão pródiga como a da política.

OPINIÃO          Rui Rio ganhou… a pensar na derrota de 2019
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 16 de Janeiro de 2018
Há muita gente espantada com o facto de Rui Rio ter anunciado durante a campanha para a liderança do PSD a sua disponibilidade para se aliar com António Costa em caso de derrota nas eleições de 2019. Nos debates com Santana Lopes, Rio não recorreu às habituais evasivas sobre o tema – “não é o momento para discutir esse assunto”, “não admito à partida a hipótese de derrota”, e outras banalidades –, preferindo assumir a possibilidade de perder as próximas legislativas e a abertura para formar um novo Bloco Central. Muita gente não percebeu esta opção e achou mesmo que ela iria beneficiar Santana – e pode, de facto, ter reduzido a margem da sua vitória. Mas, se pensarmos um bocadinho, o que Rui Rio fez é perfeitamente compreensível, e até avisado: o novo presidente do PSD tem menos de dois anos para se preparar para a derrota nas próximas legislativas, e por isso começou em Janeiro de 2018 a construir o caminho para a sua sobrevivência política após Outubro de 2019.
A não ser que o desacreditado diabo sempre acabe por aparecer, o que nesta altura ninguém prevê, António Costa vai ganhar as próximas eleições com facilidade, por mais intervenções vistosas que Rui Rio faça. A razão é simples: os governos caem por demérito próprio ou cansaço dos eleitores, e não pelo brilhantismo da oposição. Ora, o país não está cansado de Costa e do seu Governo. E Rio não esteve tanto tempo à espera de chegar à liderança do PSD para o seu mandato durar um ano e nove meses, e de seguida ser corrido por um qualquer Montenegro. A sua estratégia não pode, portanto, passar por imitar Santana Lopes, com um discurso exageradamente optimista e um voluntarismo inversamente proporcional à sua eficácia, mas sim de cautelosamente gizar uma estratégia que lhe dê alternativas para se aguentar na São Caetano à Lapa após uma vitória por maioria relativa do PS.
Claro que se Costa ganhar por maioria absoluta Rui Rio está condenado. Mas se o PSD encurtar distâncias para o PS e conseguir uma derrota honrosa, ele pode ter hipóteses de se manter no lugar. Se o PS aceitar a criação de um novo Bloco Central com o argumento das reformas de que o país precisa, o PSD acabará por regressar ao poder. E se o PS não aceitar – como, no fundo, penso que Rio pretenderá –, ele poderá então argumentar que o PS se encostou, por vontade própria, à extrema-esquerda, solidificando a posição do PSD como alternativa moderada a uma segunda “geringonça”, que certamente não terá a estamina da primeira.
Não vale a pena estar aqui a argumentar com a imprevisibilidade da política. Sim, tudo isto pode correr mal. Mas, em cada momento, é necessário ter um plano para o futuro, e, se este for o de Rui Rio, não me parece mal construído – até porque Rio terá em Marcelo um aliado, por mais desentendimentos que possam ter tido no passado. Marcelo é pragmático e está pouco interessado em que os portugueses ofereçam uma maioria absoluta ao PS, desde logo porque isso iria diminuir o seu próprio poder. Visto desta perspectiva, a ideia de assumir à partida a possibilidade de um Bloco Central é a estratégia mais interessante para Rui Rio não ser um simples líder a dois anos. É evidente que aquilo que é bom para Rui Rio não é necessariamente bom para o PSD. Mas essa é uma outra conversa. Por mais ideias que Rio tenha para o futuro do país e do seu partido, ele precisa de permanecer na liderança para as implementar. A sua prioridade até ao final de 2019 será só uma: sobreviver.


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