Paulo Rangel traz-me um pouco o
cheiro do mundo por que ansiava Cesário Verde, jovem ainda e buliçoso, desejoso
de ilustrar-se, que escreveu ao seu amigo Silva Pinto o quanto gostaria de sair
para o estrangeiro para se “desemburrar”. Essa ânsia evasiva fixou-a no seu
vasto e magistral poema “em quatro andamentos”, “O Sentimento dum Ocidental”,
que contempla a sua deambulação por uma Lisboa do entardecer e nocturna, de “quadros
revoltados” mas plenos de pinceladas de brilho e movimento, que remata num
arrastar poderoso de alegoria “A Dor humana busca
os amplos horizontes, / E tem marés de fel, como um sinistro mar!”. Poema
deambulatório, pois, com recurso a sentimentos e evocações que vão semeando de
subjectividade os tais “quadros revoltados” da sua perspicácia e sensibilidade
de artista, em que a terceira estrofe da primeira parte vai ao encontro do
desejo de se desemburrar viajando, da carta ao seu grande amigo:
Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
Por vezes os textos de Paulo
Rangel produzem esse mesmo efeito de surpresa e ânsia de conhecer outros “lugares
da esfera”, talvez também para desemburrar-nos, lugares que percorrem esses deputados
eleitos para o PE.
De facto, trazem referências,
como essa dos lugares que o Brexit proporcionou no PE, o que deve dar lugar à
satisfação de novas ambições, coisas, afinal, de calibre idêntico às de cá do
burgo, pesem embora as discrepâncias que os parâmetros da boa educação e da
cerimónia devem impor por lá, atentos, os deputados, sobretudo à defesa dos direitos
das respectivas nações. Entretanto, o primeiro ministro é que é figura cimeira,
nas declarações que faz, e Paulo Rangel desmonta a perfídia de ele apresentar
duas caras – uma para uso interno seu, face aos seus compinchas, outra para uso
externo, para ganhar os abraços estrangeiros e os sorrisos que a media mostra.
Paulo Rangel é atrevido,
desmascarando assim o seu ministro. Mas, afinal, é essa desenvoltura também uma
forma de arejamento viageiro.
OPINIÃO
Listas
transnacionais: Governo e PS à deriva
Há uma coisa que pode já concluir-se: o PS e o
seu Governo têm duas caras. Uma, na frente nacional; outra, nos fóruns
europeus.
PAULO RANGEL
PÚBLICO,
30 de Janeiro de 2018
1- Os sinais que o Governo português e o PS
continuam a dar sobre a adopção de listas transnacionais e a criação de um
círculo eleitoral europeu são cada vez mais contraditórios e confusos (para lá
de alarmantes, em vista do que julgo ser o interesse nacional e até o interesse
europeu). Faz hoje precisamente uma semana, foi votado na Comissão de Assuntos
Constitucionais o relatório sobre a composição do Parlamento Europeu (PE), de
que eram co-relatores a deputado polaca do PPE, Danuta Hübner, e o deputado
socialista português, Pedro Silva Pereira. Nesse relatório – embora
abusivamente, como abaixo explicarei – figuram uma série de parágrafos que
fazem um apelo político à adopção das listas transnacionais e procuram
conformar a sua disciplina. O deputado do PS e o Partido Socialista Europeu
votaram, sempre que isso estava em causa, a favor das listas transnacionais. E
com este voto, deu-se mais um sinal errante e errado à diplomacia europeia. Afinal, o Governo português – que é um
Governo unicamente composto pelo PS – é contra ou a favor da criação das listas
transnacionais? O primeiro-ministro Costa diz que sempre fora contrário
às listas; depois, em Roma, assina uma declaração, com mais 6 estados, que é
manifestamente favorável; a seguir, em Lisboa, esclarece que a declaração não é
categórica e, por isso, ele, primeiro-ministro, mantém-se contra; finalmente,
no primeiro voto disponível, e já em Bruxelas, o PS – ainda por cima pela mão
de um co-relator – revela-se ostensivamente a favor. Em que ficamos? Nas
intenções de Roma, nas afirmações de Lisboa ou nos votos de Bruxelas? Nos
corredores do Parlamento e do Conselho é cada vez mais firme a convicção de que
o governo português diz uma coisa em Lisboa, mas acabará a fazer outra em
Bruxelas. E com tanta ambiguidade, falta de clareza e até desinformação, há uma
coisa que pode já concluir-se: o PS e o seu Governo têm duas caras. Uma, na
frente nacional; outra, nos fóruns europeus.
2. Como o assunto nem sempre é seguido com atenção, convém fazer alguma
pedagogia. Antes do mais, dizer que o relatório sobre a composição do PE nada
tem a ver, ao menos directamente, com a criação de listas transnacionais. A
criação destas é do puro domínio do direito eleitoral. Os assuntos de sistema
eleitoral estão fora do perímetro daquilo que se convencionou chamar
“composição do PE”. A matéria da chamada “composição” trata apenas da
distribuição de lugares por cada Estado. Cura unicamente de determinar quantos
deputados tem cada Estado em cada legislatura. Está aqui em causa saber quantos
deputados elegerá cada país para a legislatura que vai de 2019-2024. Esta é que
é a substância do relatório e, de resto, a única que tem relevância jurídica,
já que a decisão do Conselho Europeu sobre a matéria só pode ser tomada sob
proposta do PE. Este relatório, se vier a ser aprovado no plenário,
consubstanciará justamente a proposta formal do PE submetida ao Conselho, que a
pode depois modificar e que, de seguida, terá de ser de novo aprovada pelo PE.
3. A respeito
da proposta de composição que foi aprovada para ir a debate e voto a plenário
para a semana – e só desta! –, ela merece aplauso. Do ponto de vista nacional,
garante que Portugal não perde nenhum deputado; do ponto de vista europeu,
assegura pela primeira vez o cumprimento do princípio da proporcionalidade
degressiva previsto no Tratado de Lisboa e ainda poupa 46 lugares (que ficam
vagos) para futuros alargamentos. Não se trata de nenhum milagre; cura-se até
de algo que tem um mérito relativo: só foi possível, porque com a saída do
Reino Unido, ficaram livres 73 dos 751 lugares. Não é um feito extraordinário,
como aqui expliquei a 4 de Janeiro: com a saída de 73 deputados, só faltava que
Portugal ou qualquer outro país pudesse perder mandatos.
Feito muito relevante, esse sim, foi o facto de se ter evitado a adopção
de uma fórmula matemática permanente que definisse a repartição de lugares para
as futuras legislaturas. E não faltavam emendas nesse sentido que,
salvaguardando as próximas eleições, iriam provocar perdas para Portugal e
outros países médios e pequenos a partir de 2024. Veremos o que diz o plenário
do PE e do Conselho, mas, neste plano, o começo é auspícioso.
4. A cavalo
desta matéria – a única que tinha de ser tratada – surgiram os parágrafos sobre
listas transnacionais, que, neste preciso relatório, têm mero valor
político. Sou convictamente contra as listas transnacionais, pelas razões que
tantas vezes adiantei. E, por isso, com o grosso do Grupo PPE votei contra tais
cláusulas. Os deputados são livres, podem ser contra ou a favor e não têm de
seguir a sua delegação nacional, o seu grupo parlamentar ou até o seu Governo.
Mas como é óbvio têm de se explicar e de falar claro. E quer se queira quer
não, quando um deputado destacado do PS português, ainda por cima com o encargo
de co-relator, vota a favor, isso dá uma indicação e cria uma percepção sobre o
posicionamento do Governo português. Neste momento, o PS e o Governo
português mostram uma enorme desorientação e alimentam conscientemente a
ambiguidade e a confusão. E até hoje, a Assembleia da República – que é quem
tem a competência legislativa eleitoral – continua sem ser tida nem achada. É
bem caso para dizer que, num assunto tão sério para a nossa posição
institucional na Europa e para o balanço e o equilíbrio das instituições
europeias, o binómio PS-Governo anda à deriva.
NÃO. Vitimização de Lula. O ataque à justiça no Brasil é, ele sim, um
ataque à democracia. Nada o autoriza. Outra coisa é o deserto político que se
seguirá à operação “mãos limpas” do séc. XXI.
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