Quando
ouvi e vi António Costa, no início do seu reinado, (mandato, para os mais
puristas), passear-se em companhia de um qualquer dirigente indiano,
reivindicando as suas origens indianas, a dar-se ares, quer de superioridade
rácica perante os portugueses de cá, casta inferior, e a humilhar-se perante os
indianos de lá, casta superior, senti vergonha e asco. Portugal, pequeno
embora, não precisava de descer tanto, num exibicionismo aviltador dos de cá e
abjecto para os de cá e os de lá, descontando Costa. JASON KEITH FERNANDES, provavelmente meio
patrício de Costa, desfaz-lhe a ilusão e justifica a nossa humilhação, com o
seu texto de OPINIÃO. Afinal, como povo
com uma tal televisão de amadorismo, que mostra as classes sociais irmanadas pelos
pontapés futebolísticos, na ira corrosiva de ALBERTO GONÇALVES, só temos
que engolir em seco, e aceitar o desprezo de ambos os comentadores. Por aquilo
que somos, mau grado os que escapam à regra.
1º TEXTO: Os perigos de abraçar a Índia
Quando Costa se afirma orgulhoso da sua identidade indiana está a ser
cúmplice de um regime racialista e neo-colonial.
JASON KEITH FERNANDES Público,
5 de Janeiro de 2018
Desde a visita do
primeiro-ministro António Costa à Índia, em Janeiro de 2017, e da recente vinda
do primeiro-ministro indiano Narendra Modi a Lisboa, têm surgido vários
discursos celebratórios sobre a efetiva aproximação entre os dois países.
À superfície, estes
discursos parecem trazer consigo a promessa de fortes e mutuamente respeitosas
relações pós-coloniais. A realidade, porém, é bem mais inquietante.
As novas relações que Portugal está a forjar com esta potência regional
demonstram um profundo desconhecimento da natureza do Estado indiano. A
antropóloga Shalini Randeria cunhou o termo ‘cunning state’ [Estado astuto] para definir a natureza da
Índia, ou seja, a de um Estado que utiliza acontecimentos internacionais para
fortalecer o seu poder tanto interna como externamente. De facto, a Índia,
enquanto Estado astuto, manipulou Portugal e o seu primeiro-ministro, afirmando
uma duvidosa e racializada leitura da história do subcontinente asiático, estrategicamente
pensada para abrir caminho a uma nova ordem internacional — de carácter
neo-colonial — que a Índia espera impor.
O desejo de se afirmar no
plano global é uma ação legítima por parte de qualquer Estado. Mas a forma
como a Índia opera é, por várias razões, altamente problemática. Uma
análise cuidada da concessão do estatuto de Overseas Citizen of India (OCI)
— Cidadão Ultramarino da Índia, um estatuto em princípio aberto a todos os
estrangeiros com antepassados dentro das fronteiras da India actual — ilustra
bem esta questão.
De facto, uma das
principais razões para a recente visita de Costa à Índia foi este presidir ao
14.º Pravasi Bharatiya Divas (Dia do Indiano no Exterior). Portugal
cometeu o enorme equívoco de tratar este convite como uma oportunidade para
obter acesso ao tão desejado mercado indiano. Muito pelo contrário, este
convite foi um cavalo de Tróia deixado pela Índia em Portugal.
O aspeto que deveria ter
agitado o establishment diplomático português ao permitir que o
primeiro-ministro português seja reconhecido como OCI é deixar a Índia
determinar a natureza das relações diplomáticas entre os dois países. A Índia
reivindicou Costa, um homem que se tornou primeiro-ministro sem qualquer apoio
do Estado Indiano, e desta maneira definiu a identidade do mais alto
representante de um Estado estrangeiro.
É óbvio que a Índia
atingiu este objectivo em parte devido ao apoio das estruturas racializadas que
continuam a dominar a cena internacional e onde Portugal, apesar de ser um
membro da UE, continua a ser um país semi-periférico. Por estas razões, a
relação entre os dois países está longe de ser uma interacção entre iguais,
tendo a Índia uma larga vantagem. É compreensível que num contexto de
dificuldades económicas graves os empresários portugueses lutem por acesso ao
mercado indiano. Porém, o Governo português deveria ponderar se para isto
valerá a pena comprometer a dignidade do Estado e, mais importante ainda, os
direitos dos seus cidadãos.
A comprovar a astúcia do
Estado Indiano, o estatuto de OCI não concede quaisquer direitos de cidadania
de facto; trata-se, apenas, de um visto permanente. Na realidade, apesar
de as únicas restrições conhecidas aos OCIs serem apenas as proibições de votar
e a compra de propriedade agrícola, vários incidentes demonstram que existem
diversas outras restrições ocultas, apenas referidas quando da conveniência do Estado indiano. O maior problema,
contudo, reside no facto de o regime de OCI se basear em preconceitos raciais e
sectários. (Sendo racismo a identificação de grupos de indivíduos como uma
raça, grupo étnico ou religioso e a atribuição de características indeléveis a
estes mesmos grupos). Desde logo, porque reforça o preconceito anti-muçulmano do Estado indiano, visto
que o OCI não é extensível a pessoas com ligações familiares ao
Paquistão e ao Bangladesh. Mais, com a actual política de OCI, a Índia define
efectivamente os seus cidadãos através de uma perspectiva étnico-racial em vez
de uma perspectiva legal. Por exemplo, os antepassados de Costa
nunca foram indianos. Eram cidadãos portugueses e goeses, sendo que o Estado
indiano só emergiu em 1947. Identificar os antepassados de Costa como indianos
seria classifica-los do ponto de vista racial. Desta forma, o Estado indiano
pretende revindicar como indiano qualquer pessoa que provenha do subcontinente
em qualquer altura da história, apagando desta maneira todas as especificidades
das diversas identidades sul-asiáticas e agrupando-as numa homogénea e
racializada “identidade Indiana”. Isto ao mesmo tempo que pretende
consolidar um nacionalismo cultural bramânico que exclui indivíduos que não
pertencem às castas dominantes hindus e ignorando deliberadamente os direitos
políticos de uma grande parte da população e de uma forma profundamente
sectária.
Assim, quando Costa
se afirma orgulhoso da sua identidade indiana, o que está efectivamente a fazer
é ser cúmplice de um regime racialista e neo-colonial. Uma acção que tem
consequências múltiplas, não só na Índia, mas também em Portugal.
Desde logo, esta postura
do Governo de Portugal compromete a identidade dos seus cidadãos com ligações
ao Sul da Ásia que se ressentem ao ser identificados como “indianos”. Este
rótulo opera efectivamente de forma racialista, pois não só nega a esses
cidadãos a sua identidade portuguesa como também ignora as especificidades das
suas múltiplas identidades sociais. Esse é o caso dos vários grupos cujos
antepassados deixaram o Gujarate e se estabeleceram na África portuguesa
durante gerações, chegando a Portugal como retornados e portugueses. A mesma
questão se coloca com os goeses, damanenses e diuenses. Para estas pessoas
seria crucial poderem ser reconhecidas socialmente como portugueses — embora
distinguindo as suas identidades sociais específicas — em vez de serem
agrupados indiferenciadamente numa categoria racial única. Esperava-se que o
corpo diplomático português que aconselha o primeiro-ministro tivesse sido
capaz de tomar devida nota destas nuances sociais.
Mas a natureza
racializada das relações luso-indianas não termina com a manipulação da
identidade de Costa por parte da Índia. Portugal tem tido também um papel ativo
neste jogo, perpetuando uma tradição colonial e luso-tropicalista, ao oferecer
o seu “privilegiado entendimento” de África aos seus potenciais parceiros
indianos, sabendo que a presença indiana em África tem dimensões neo-coloniais.
A escolha de um modus
operandi mais ético na sua relação com a Índia, ao mesmo tempo enfrentando
os complexos problemas que ensombram esta relação, daria a Portugal base para
um entendimento mais honesto e possivelmente mais duradouro entre os dois
países.
Um dos obstáculos a uma
feliz convivência entre os dois países é sem dúvida a relação de Portugal com
os seus antigos territórios no subcontinente, especialmente Goa. Esta difícil
relação deve-se em grande parte aos distúrbios criados por parte de
nacionalistas hindus ativos em Goa. É frequente ouvir-se os diplomatas
portugueses na Índia mencionarem em privado que historicamente a razão para
a ineficácia das relações entre Portugal e a Índia se deve ao Governo de Goa e
a certos segmentos da sociedade local. Segundo os mesmos, as relações com o
governo central são, pelo contrário, de grande cordialidade. Esta lógica poderá
ter sido uma das razões que levou a diplomacia portuguesa a querer fundar uma
nova relação com a Índia, pondo de lado as raízes do passado. Operando como
Estado astuto, o governo central indiano reivindica completa impotência perante
eventos “anti-portugueses” em Goa, precisamente por não ter nenhum interesse em
pôr fim a este tipo de manifestações naquele território. Isto porque a retórica
dos nacionalistas hindus em Goa não é mais do que uma extensão lógica do
nacionalismo cultural através do qual a Índia continua a impor uma certa
identidade nacional.
Pelo facto de assentar
num nacionalismo cultural, em lugar de num nacionalismo político, a construção
da identidade nacional indiana sempre foi marcada por ideias de inimigos
externos e internos. Por esta razão, também, a presença
portuguesa será sempre vista com suspeita, e a história portuguesa no
subcontinente sempre disponível para ser recordada de acordo com a conveniência dos interlocutores
e a obvia desvantagem dos investidores portugueses na Índia. Dado o
poder que o governo central indiano tem sobre os seus estados, especialmente
quando o mesmo partido governa tanto a nível nacional como regional, a
invariável alegação de impotência para intervir na situação de Goa deve ser
vista com grande cepticismo. Desempenhando o papel de Estado astuto, a Índia
permite e incentiva o florescimento de alguma instabilidade regional, porque a
mesma lhe traz vantagens na sua estratégia geo-política mais alargada.
Uma política externa que
reconheça a natureza do Estado indiano permitiria a Portugal perceber que
abandonar o passado português no subcontinente nunca poderá gerar uma relação
madura e equitativa com a Índia. Na verdade, é no
confronto das questões relacionadas com o fim do Estado da Índia Portuguesa,
como a maneira em que o Estado indiano nega aos residentes destes antigos
territórios a dupla nacionalidade,
que Portugal poderá construir uma relação honesta com a Índia, cumprir com as
suas obrigações enquanto descolonizador, confrontar os seus desejos
neo-colonialistas que ensombram a sua relação com os PALOP e, ao mesmo tempo,
enfrentar os complexos desafios raciais que estão longe de estar resolvidos em
Portugal.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Alberto
Gonçalves OBSERVADOR,
6/1/2018
O futebol falado atrai tanta gente por ser simples e permitir a
criaturas igualmente simples a ilusão de que dominam um tema. Nas tretas da
bola, os clichés dão pontos e a vergonha é conceito obscuro.
Por regra,
misteriosamente ausente das recomendações da Protecção Civil e da
Direcção-Geral da Saúde, fujo das televisões nacionais com o afinco com que
corro da gripe. Não escapei de nenhuma. Há dias que consumo quantidades
inusitadas de lenços de papel e há dias que não me sai da cabeça certa
reportagem.
A propósito das
trafulhices em que o nosso portentoso futebol é pródigo, um canal qualquer
passava em repetição as imagens do que presumi ser um convívio, talvez já
antigo, entre o presidente do Benfica e uma data de deputados da nação. Numa
sala vasta, o tal presidente passeava bigode, soberba e classe, o exacto tipo
de classe que, inspirados por sofisticação paleolítica, os “agentes
desportivos” têm vindo a aprimorar. Os deputados, de todos os partidos,
passeavam devoção e aquele tipo de excitação que atinge a plebe da Coreia do
Norte ante a proximidade do Líder. À passagem de Sua Excelência, que mal lhes
dirigia um olhar, aqueles bonequinhos derretiam-se em sorrisos e
precipitavam-se para disputar a honra de um cumprimento. Os mais ousados
arriscavam uma “selfie”. Era evidente a importância que atribuíam ao momento.
Também era evidente que a espécie humana dificilmente consegue descer tanto.
Esclareço que, para mim,
é irrelevante o “benfiquismo” do repulsivo evento acima. Suponho que haja
eventos similares, e similarmente repugnantes, com deputados do Porto e do
Sporting (dado que a raça aprecia notoriedade, é pouco provável que muitos
parlamentares compareçam em pândegas do Arouca). Embora descenda de jogadores e
treinadores da bola, goste de rever habilidades de Pelé, Cruyff ou Futre e
goste imenso de jogar a ocasional partida (a extremo-direito, sem surpresas
para os detractores desta coluna), dedico aos clubes um desinteresse só
comparável ao dos meus cães pelo Orçamento de Estado (é nulo, para não restarem
dúvidas). Em criança, dizia-me, sei lá porquê, “do” Benfica. Hoje, sei lá
porquê, prefiro que ganhe o Porto, desde que isso não me obrigue a ver jogos e,
Deus misericordioso me livre e guarde, a discuti-los.
Sou, aparentemente, um caso
raro. E, dado que nunca ouvi os meus amigos discutirem futebol, estou
aparentemente rodeado de casos raros. A norma, pelo menos a acreditar no
universo dos canais “generalistas”, é as pessoas não fazerem outra coisa. Quando
não se empenha em louvar o governo, publicitar os “afectos” do Presidente ou,
na CMTV, dissecar crimes suburbanos, a programação televisiva é quase
integralmente preenchida pelo “fenómeno” futebolístico. O fenómeno, no
sentido que se dava às atracções de circo, é inegável. Metade do tempo é
investido a transmitir a bela retórica de dirigentes, “místeres” e adeptos, as
deslocações dos autocarros de sítios para sítios e, nos canais que não pagam os
“direitos”, quatro ou cinco pasmados a relatar um jogo inteirinho. O tempo que
sobra (cerca de 40 horas por serão) é para a “análise”.
A “análise” é peculiar.
Nela, deputados, “politólogos”, juristas, médicos, músicos, empresários,
jornalistas, ex-praticantes e o que calha tentam provar a superioridade divina
do clube da respectiva preferência e, por extensão, a sua própria
superioridade. No processo, indivíduos adultos trocam o que julgam ser
argumentos a propósito de penáltis, foras-de-jogo, cartões amarelos e, em suma,
a relevantíssima “questão” da arbitragem. Um leigo olha para os árbitros e
constata apenas que usam nomes esquisitos, gel e patilhas fininhas. Os
especialistas gastam dias a fio na interpretação de cada apitadela e,
recentemente, de cada intervenção do VAR, acrónimo alusivo ao “vídeo-árbitro”,
de facto um sujeito com gel a fitar um ecrã. A intervalos regulares, os
especialistas lembram que a missão dos árbitros consiste em obstar à glória do
clube deles. Porém, lembram de seguida, nada os vergará no caminho para o
“título” e acabarão a “época” a celebrar a profunda vileza da porção da
humanidade que não simpatiza com o Benfica/Porto/Sporting (riscar os que não
importam e, aliás, deviam ser exterminados a golpes de “very-light”).
Às vezes, um especialista que fracturaria o fémur num desafio de dominó, entra
em franca alucinação e começa a imaginar-se membro da equipa que apoia: “Eu
perdi por culpa do bandeirinha”; “Eu joguei impecavelmente”; “Eu serei
campeão”; “Eu chamo-me Napoleão”; etc. Conversa de café? Com certeza, se o café
em causa for o do Magalhães Lemos.
Não quero insultar ninguém,
mas é plausível que quem se presta a figuras idiotas seja realmente idiota.
Alguns nem esse estatuto atingem e, ao que consta, precisam que terceiros lhes
escrevam as “opiniões” que exibem com orgulho. O futebol falado atrai tanta
gente justamente por ser simples e permitir a criaturas igualmente simples a
ilusão de que dominam um assunto. Se disserta sobre os refugiados sírios ou o
sufoco fiscal, a maioria dos comentadores produz um amontoado de clichés capaz
de envergonhar uma criança. Nas tretas da bola, os clichés dão pontos e a
vergonha é conceito obscuro. Os especialistas em futebol são “especiais” na
acepção politicamente correcta do termo. E se não são, parecem.
Na perspectiva
optimista, há nisto um estimável potencial de integração: enquanto “debatem” as
“polémicas” da jornada, os tontinhos não andam na rua e na droga. A perspectiva
pessimista nota que os tontinhos são inúmeros e, o que é pior, andam no
Parlamento e em lugares de poder e influência. A perspectiva apocalíptica
desconfia de que a proliferação de tontinhos exige um vasto público que os
consome e legitima, um público que essencialmente não se distingue dos
participantes do “Mais Bastidores” e do “Dia Seguinte”, um público representado
na perfeição pelos deputados que elege, um público cuja aptidão para engolir a
palha futebolística é aquela que o leva a engolir tudo a pretexto de tudo, um
público que define uma sociedade e um país que não batem bem da bola.
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