E António Costa continua em
maré incendiária, sem admitir extintores, apesar dos arremedos de contrição
impostos. É o que nos fazem saber também, além de António Barreto, que
já aqui transpuséramos, João Miguel Tavares e M. Fátima Bonifácio,
de indignação parelha sobre o caso de Joana Marques Vidal. Além de
outros muitos seus apoiantes, que desejam a limpeza do “estábulo”. Não, não
precisam de ser hercúleos, basta que sejam honrados. Os currais de Augias
necessitam é de lisura. Sem hipocrisia, que estamos fartos de as ver em Costa.
Ao menos, que Marcelo mostre inteireza, sem os habituais malabarismos da nossa
penúria de carácter.
OPINIÃO
Não toquem em Joana Marques Vidal
Não só Francisca Van Dunem
reforçou a posição da procuradora como obrigou o primeiro-ministro a inventar à
pressa uma séria candidata à Pior Desculpa de 2018.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 11 de Janeiro
de 2018
Por favor, não critiquem
Francisca Van Dunem — agradeçam-lhe. Todas as pessoas que desejam, como
eu desejo, que Joana Marques Vidal seja reconduzida no seu cargo devem estar
gratas à ministra da Justiça por ter tido a simpatia de nos informar que o
Governo não tem qualquer interesse em renovar o mandato da procuradora-geral da
República. A partir de agora sabemos que António Costa não a quer, que
Rui Rio não a quer e que Marcelo Rebelo de Sousa não se pronuncia. Isso só pode
querer dizer que Joana Marques Vidal está a fazer um excelente trabalho.
O caso acaba por ser um
duplo embaraço para o Governo. Não só Francisca Van Dunem reforçou a posição da
procuradora, dado o clamor generalizado que originou, como entalou o
primeiro-ministro no Parlamento, ao obrigá-lo a inventar à pressa uma séria
candidata à Pior Desculpa de 2018 — é incrivelmente estapafúrdia a
teoria segundo a qual a ministra, na entrevista à TSF, não havia transmitido
uma opinião “política” sobre o assunto, mas apenas partilhado a sua opinião
“jurídica”. Ah, ah, ah, ah. Que magnífica piada.
Em bom rigor, a análise
jurídica do artigo 220 da Constituição Portuguesa pode ser feita por qualquer
um dos meus quatro filhos, talvez com excepção da Rita, que ainda não sabe ler.
Diz assim no seu ponto 3: “O mandato do Procurador-Geral da República tem a
duração de seis anos.” Basta ler esta frase em voz alta e a análise
jurídica está concluída. Dirão os fãs de António Costa: “Mas também não está
lá escrito que o mandato é renovável”. É verdade que não. Mas logo dois
artigos abaixo (222, ponto 3) podemos ler: “O mandato dos juízes do Tribunal
Constitucional tem a duração de nove anos e não é renovável.” Quando o
legislador quis garantir a não-renovação de um mandato escreveu — imaginem — “não
é renovável”.
Donde, se há coisa que
Francisca Van Dunem não fez foi uma interpretação jurídica da lei. O que ela
fez, de facto, foi uma interpretação 100% política. É perfeitamente defensável
argumentar que um mandato longo de seis anos de um procurador-geral não deve
ser renovado, de forma a preservar a sua independência e não ceder à tentação
de agradar ao governo em funções. Mas — lamento muito — não é isso que
lá está escrito. E se houve coisa que Joana Marques Vidal demonstrou ao longo
dos últimos seis anos é imunidade à terrível tentação de agradar aos governos.
É por isso que os portugueses se afeiçoaram tanto a ela.
É verdade que não se
percebe bem porque é que Francisca Van Dunem se lembrou de dizer tal coisa numa
altura destas — para mais, com a infelicidade acrescida de ter concedido a
entrevista um dia depois de o Presidente de Angola se ter atirado de forma
desbragada à justiça portuguesa. Até admito que tenha sido apenas ingenuidade e
inépcia. Às vezes acontece. O que não admito é que Van Dunem não saiba de
cor e salteado qual a opinião de António Costa sobre o tema. Logo, 1) as
suas declarações comprometem todo o Governo, 2) o desejo de afastar a
procuradora é bem real, e 3) Joana Marques Vidal precisa de ser defendida.
Dir-me-ão: não haverá
outros magistrados habilitados para desempenhar o cargo com idêntica
competência? A minha resposta é simples: em 44 (curioso número) anos de
democracia não houve. Se fosse fácil ser independente, outros teriam sido. Não
foram. Portugal precisa que Joana Marques Vidal continue até 2024. Doze
anos de magistrados livres para investigar a corrupção que há décadas sufoca o
país não é muito — é muito pouco.
OPINIÃO
Chico-espertismo
A remoção de Joana Marques Vidal não evitará o julgamento de Sócrates.
Mas poderá facilitar o seu adiamento para depois das eleições.
M. FÁTIMA BONIFÁCIO
PÚBLICO, 11 de
Janeiro de 2018
Uma das principais
especialidades do primeiro-ministro António Costa consiste em fazer dos
cidadãos parvos. Anteontem abri o PÚBLICO online e deparei com a notícia —
“Ministra da Justiça abre porta de saída à actual PGR”. Bingo! Há
meses que se especulava se António Costa teria a coragem — ou o desplante — de
não reconduzir a actual procuradora-geral, Joana Marques Vidal, empossada no
cargo em Outubro de 2012. Van Dunem, ministra da Justiça, essa limitou-se a
fazer de porta-voz da decisão de António Costa de expelir Joana Marques Vidal
da PGR (o argumento invocado é risível, e lá irei mais adiante). Ou mais
exactamente: coube à ministra ir preparando o terreno para a decisão talvez
mais controversa e suspeita de todas quantas decisões controversas e suspeitas
Costa já tomou até hoje.
António Costa tem sido
gabado por ter conseguido, graças à sua egrégia habilidade política,
estabelecer em torno do Partido Socialista e da “geringonça” um cordão
sanitário que deixe ambos — e que o deixe também a ele pessoalmente — ao abrigo
de uma jorrada de lama possivelmente lançada pelo desenvolvimento do ominoso
caso de José Sócrates. Esta estratégia apenas tem resultado em virtude da
amnésia e da distracção do país. Com efeito, quase ninguém ainda se
lembra de que António Costa era o número dois do “engenheiro”, e quase ninguém
repara que o pessoal político que rodeia o primeiro-ministro e integra a
“geringonça” é basicamente o mesmo que rodeava Sócrates, a começar pelo próprio
Costa, passando pelos ministros mais importantes, Santos Silva e Vieira da
Silva, e a acabar no secretário de Estado da Segurança Social, Pedro Marques; o
rasto de Sócrates chega também à Câmara Municipal de Lisboa na pessoa do
presidente da câmara, Fernando Medina, que cedo se transformou num apaniguado
do círculo mais promissor do “costismo”.
António Costa conseguiu
duas coisas: silenciar a sementeira socrática acantonada no PS e na
“geringonça”; passar a impressão, aliás verdadeira, de que Sócrates não podia
contar com o Partido Socialista para o proteger. Sócrates retribuiu-lhe a
gentileza com uma confidência que o Sol tornou pública, na qual
catalogava o ex-amigo e ex-companheiro político como um “merdas” sem
“tomates para ser primeiro-ministro”. Excelente para Costa: entre os
dois, qualquer tipo de relações estavam cortadas sem apelo. Estavam,
estão e estarão. Por que raio de motivo quer agora Costa livrar-se de
Joana Marques Vidal, a procuradora a quem se deve, entre outras, a abertura
da Operação Marquês, que resultou na acusação do ex-primeiro-ministro de
gravíssimos crimes e cujo julgamento deverá (ou deveria) iniciar-se ainda em
2018?
O julgamento, a
iniciar-se, como deve (ou deveria), lá para o Outono do ano corrente, vai
certamente prolongar-se por muitos meses (ou até anos). Com toda a
probabilidade, o julgamento de José Sócrates estará em curso ao longo de 2019,
ano de eleições em Maio/Junho (para o Parlamento Europeu) e em Setembro/Outubro
(para a Assembleia da República). Ora a “ferocidade” do “animal” (“eu sou um
animal feroz”, disse Sócrates) não deve entretanto ter-se amansado, bem pelo
contrário, deve ter-se assanhado. E, portanto, é certo e sabido que o acusado
usará do direito legal de indicar as suas testemunhas, que não podem recusar-se
a depor, presencialmente ou por escrito. E que testemunhas chamará ele de
preferência? Os seus anteriores cúmplices ou simplesmente coniventes, alguns
deles hoje no Governo, a começar pelo primeiro-ministro. Estão a imaginar
ministros e quadros do PS a peregrinar para o Campus de Justiça na Expo? Estão
a imaginar a que maquinações Sócrates recorrerá para produzir o máximo de
escândalo público?
A remoção de Joana
Marques Vidal, per se, não evitará o julgamento. Mas poderá facilitar ou
promover o adiamento para depois das eleições, quando já nada afectará os
resultados eleitorais.
O chico-espertismo
escuda-se num pobre argumento jurídico-político. Disse Van Dunem à TSF, citada
pelo PÚBLICO de 10.01.18: “A Constituição prevê um mandato longo e único.
Historicamente, é a ideia subjacente ao mandato.” Acrescentou ainda a ministra
que após o caso Cunha Rodrigues, que permaneceu no cargo de 1984 a 2000, “o que
se estabeleceu foi um mandato longo e um mandato único”. Infelizmente, é
falso.
Primeiro: a
Constituição, revista em 1997, não proíbe expressa e imperativamente a
renovação ou extensão do mandato de procurador-geral, nem tão pouco a sua
exoneração antes de completado o prazo previsto do seu exercício (art.º 220;
art.º 133/alínea M). E só porque o não proíbe é que Cunha Rodrigues pôde
por lá estanciar durante 16 anos, até 2000.
Segundo: não
existe nenhuma tradição doutrinária consolidada que obrigue à substituição de
Marques Vidal em Outubro deste ano: antes de Marques Vidal, tivemos desde o 25
de Abril cinco procuradores-gerais: Pinheiro Farinha, 1974 a 1976 (dois anos);
Arala Chaves, 1977 a 1984 (oito anos); Cunha Rodrigues, 1984 a 2000 (16-17
anos); Souto de Moura, 2000 a 2006 (seis anos); Pinto Monteiro, 2006 a 2012
(seis anos). Ou seja, em cinco procuradores-gerais que estiveram em exercício
entre 1974 e 2012, só dois cumpriram o mandato pseudo-tradicional de seis anos.
Três deles foram atípicos — acaso se tivesse estabelecido um mandato
tipificado, que os números mostram não ter sido o caso. Dois casos em
cinco não fazem uma tradição histórica.
Conclusão: a evacuação
de Joana Marques Vidal, a coberto de desculpas esfarrapadas, é uma decisão
puramente política, que convém a António Costa e, por extensão, aos seus
camaradas de partido e de Governo.
Tudo aconselhava o
prolongamento do mandato de Marques Vidal, desde a sua competência, lisura e
coragem, até à notória inconveniência de a remover numa circunstância em que a
Justiça portuguesa passa pela sua maior prova. Paradoxalmente, é precisamente
por causa desta circunstância e por causa das raras qualidades da
procuradora-geral que esta se torna um estorvo para António Costa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário