segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

O fogo de António Costa vs. rigidez dos justiceiros


E António Costa continua em maré incendiária, sem admitir extintores, apesar dos arremedos de contrição impostos. É o que nos fazem saber também, além de António Barreto, que já aqui transpuséramos, João Miguel Tavares e M. Fátima Bonifácio, de indignação parelha sobre o caso de Joana Marques Vidal. Além de outros muitos seus apoiantes, que desejam a limpeza do “estábulo”. Não, não precisam de ser hercúleos, basta que sejam honrados. Os currais de Augias necessitam é de lisura. Sem hipocrisia, que estamos fartos de as ver em Costa. Ao menos, que Marcelo mostre inteireza, sem os habituais malabarismos da nossa penúria de carácter.

OPINIÃO
Não toquem em Joana Marques Vidal
Não só Francisca Van Dunem reforçou a posição da procuradora como obrigou o primeiro-ministro a inventar à pressa uma séria candidata à Pior Desculpa de 2018.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 11 de Janeiro de 2018
Por favor, não critiquem Francisca Van Dunem — agradeçam-lhe. Todas as pessoas que desejam, como eu desejo, que Joana Marques Vidal seja reconduzida no seu cargo devem estar gratas à ministra da Justiça por ter tido a simpatia de nos informar que o Governo não tem qualquer interesse em renovar o mandato da procuradora-geral da República. A partir de agora sabemos que António Costa não a quer, que Rui Rio não a quer e que Marcelo Rebelo de Sousa não se pronuncia. Isso só pode querer dizer que Joana Marques Vidal está a fazer um excelente trabalho.
O caso acaba por ser um duplo embaraço para o Governo. Não só Francisca Van Dunem reforçou a posição da procuradora, dado o clamor generalizado que originou, como entalou o primeiro-ministro no Parlamento, ao obrigá-lo a inventar à pressa uma séria candidata à Pior Desculpa de 2018 — é incrivelmente estapafúrdia a teoria segundo a qual a ministra, na entrevista à TSF, não havia transmitido uma opinião “política” sobre o assunto, mas apenas partilhado a sua opinião “jurídica”. Ah, ah, ah, ah. Que magnífica piada.
Em bom rigor, a análise jurídica do artigo 220 da Constituição Portuguesa pode ser feita por qualquer um dos meus quatro filhos, talvez com excepção da Rita, que ainda não sabe ler. Diz assim no seu ponto 3: “O mandato do Procurador-Geral da República tem a duração de seis anos.” Basta ler esta frase em voz alta e a análise jurídica está concluída. Dirão os fãs de António Costa: “Mas também não está lá escrito que o mandato é renovável”. É verdade que não. Mas logo dois artigos abaixo (222, ponto 3) podemos ler: “O mandato dos juízes do Tribunal Constitucional tem a duração de nove anos e não é renovável.” Quando o legislador quis garantir a não-renovação de um mandato escreveu — imaginem — “não é renovável”.
Donde, se há coisa que Francisca Van Dunem não fez foi uma interpretação jurídica da lei. O que ela fez, de facto, foi uma interpretação 100% política. É perfeitamente defensável argumentar que um mandato longo de seis anos de um procurador-geral não deve ser renovado, de forma a preservar a sua independência e não ceder à tentação de agradar ao governo em funções. Mas — lamento muito — não é isso que lá está escrito. E se houve coisa que Joana Marques Vidal demonstrou ao longo dos últimos seis anos é imunidade à terrível tentação de agradar aos governos. É por isso que os portugueses se afeiçoaram tanto a ela.
É verdade que não se percebe bem porque é que Francisca Van Dunem se lembrou de dizer tal coisa numa altura destas — para mais, com a infelicidade acrescida de ter concedido a entrevista um dia depois de o Presidente de Angola se ter atirado de forma desbragada à justiça portuguesa. Até admito que tenha sido apenas ingenuidade e inépcia. Às vezes acontece. O que não admito é que Van Dunem não saiba de cor e salteado qual a opinião de António Costa sobre o tema. Logo, 1) as suas declarações comprometem todo o Governo, 2) o desejo de afastar a procuradora é bem real, e 3) Joana Marques Vidal precisa de ser defendida.
Dir-me-ão: não haverá outros magistrados habilitados para desempenhar o cargo com idêntica competência? A minha resposta é simples: em 44 (curioso número) anos de democracia não houve. Se fosse fácil ser independente, outros teriam sido. Não foram. Portugal precisa que Joana Marques Vidal continue até 2024. Doze anos de magistrados livres para investigar a corrupção que há décadas sufoca o país não é muito — é muito pouco.

OPINIÃO
Chico-espertismo
A remoção de Joana Marques Vidal não evitará o julgamento de Sócrates. Mas poderá facilitar o seu adiamento para depois das eleições.
M. FÁTIMA BONIFÁCIO
PÚBLICO, 11 de Janeiro de 2018
Uma das principais especialidades do primeiro-ministro António Costa consiste em fazer dos cidadãos parvos. Anteontem abri o PÚBLICO online e deparei com a notícia — “Ministra da Justiça abre porta de saída à actual PGR”. Bingo! Há meses que se especulava se António Costa teria a coragem — ou o desplante — de não reconduzir a actual procuradora-geral, Joana Marques Vidal, empossada no cargo em Outubro de 2012. Van Dunem, ministra da Justiça, essa limitou-se a fazer de porta-voz da decisão de António Costa de expelir Joana Marques Vidal da PGR (o argumento invocado é risível, e lá irei mais adiante). Ou mais exactamente: coube à ministra ir preparando o terreno para a decisão talvez mais controversa e suspeita de todas quantas decisões controversas e suspeitas Costa já tomou até hoje.
António Costa tem sido gabado por ter conseguido, graças à sua egrégia habilidade política, estabelecer em torno do Partido Socialista e da “geringonça” um cordão sanitário que deixe ambos — e que o deixe também a ele pessoalmente — ao abrigo de uma jorrada de lama possivelmente lançada pelo desenvolvimento do ominoso caso de José Sócrates. Esta estratégia apenas tem resultado em virtude da amnésia e da distracção do país. Com efeito, quase ninguém ainda se lembra de que António Costa era o número dois do “engenheiro”, e quase ninguém repara que o pessoal político que rodeia o primeiro-ministro e integra a “geringonça” é basicamente o mesmo que rodeava Sócrates, a começar pelo próprio Costa, passando pelos ministros mais importantes, Santos Silva e Vieira da Silva, e a acabar no secretário de Estado da Segurança Social, Pedro Marques; o rasto de Sócrates chega também à Câmara Municipal de Lisboa na pessoa do presidente da câmara, Fernando Medina, que cedo se transformou num apaniguado do círculo mais promissor do “costismo”.
António Costa conseguiu duas coisas: silenciar a sementeira socrática acantonada no PS e na “geringonça”; passar a impressão, aliás verdadeira, de que Sócrates não podia contar com o Partido Socialista para o proteger. Sócrates retribuiu-lhe a gentileza com uma confidência que o Sol tornou pública, na qual catalogava o ex-amigo e ex-companheiro político como um “merdas” sem “tomates para ser primeiro-ministro”. Excelente para Costa: entre os dois, qualquer tipo de relações estavam cortadas sem apelo. Estavam, estão e estarão. Por que raio de motivo quer agora Costa livrar-se de Joana Marques Vidal, a procuradora a quem se deve, entre outras, a abertura da Operação Marquês, que resultou na acusação do ex-primeiro-ministro de gravíssimos crimes e cujo julgamento deverá (ou deveria) iniciar-se ainda em 2018?
O julgamento, a iniciar-se, como deve (ou deveria), lá para o Outono do ano corrente, vai certamente prolongar-se por muitos meses (ou até anos). Com toda a probabilidade, o julgamento de José Sócrates estará em curso ao longo de 2019, ano de eleições em Maio/Junho (para o Parlamento Europeu) e em Setembro/Outubro (para a Assembleia da República). Ora a “ferocidade” do “animal” (“eu sou um animal feroz”, disse Sócrates) não deve entretanto ter-se amansado, bem pelo contrário, deve ter-se assanhado. E, portanto, é certo e sabido que o acusado usará do direito legal de indicar as suas testemunhas, que não podem recusar-se a depor, presencialmente ou por escrito. E que testemunhas chamará ele de preferência? Os seus anteriores cúmplices ou simplesmente coniventes, alguns deles hoje no Governo, a começar pelo primeiro-ministro. Estão a imaginar ministros e quadros do PS a peregrinar para o Campus de Justiça na Expo? Estão a imaginar a que maquinações Sócrates recorrerá para produzir o máximo de escândalo público?
A remoção de Joana Marques Vidal, per se, não evitará o julgamento. Mas poderá facilitar ou promover o adiamento para depois das eleições, quando já nada afectará os resultados eleitorais.
O chico-espertismo escuda-se num pobre argumento jurídico-político. Disse Van Dunem à TSF, citada pelo PÚBLICO de 10.01.18: “A Constituição prevê um mandato longo e único. Historicamente, é a ideia subjacente ao mandato.” Acrescentou ainda a ministra que após o caso Cunha Rodrigues, que permaneceu no cargo de 1984 a 2000, “o que se estabeleceu foi um mandato longo e um mandato único”. Infelizmente, é falso.
Primeiro: a Constituição, revista em 1997, não proíbe expressa e imperativamente a renovação ou extensão do mandato de procurador-geral, nem tão pouco a sua exoneração antes de completado o prazo previsto do seu exercício (art.º 220; art.º 133/alínea M). E só porque o não proíbe é que Cunha Rodrigues pôde por lá estanciar durante 16 anos, até 2000.
Segundo: não existe nenhuma tradição doutrinária consolidada que obrigue à substituição de Marques Vidal em Outubro deste ano: antes de Marques Vidal, tivemos desde o 25 de Abril cinco procuradores-gerais: Pinheiro Farinha, 1974 a 1976 (dois anos); Arala Chaves, 1977 a 1984 (oito anos); Cunha Rodrigues, 1984 a 2000 (16-17 anos); Souto de Moura, 2000 a 2006 (seis anos); Pinto Monteiro, 2006 a 2012 (seis anos). Ou seja, em cinco procuradores-gerais que estiveram em exercício entre 1974 e 2012, só dois cumpriram o mandato pseudo-tradicional de seis anos. Três deles foram atípicos — acaso se tivesse estabelecido um mandato tipificado, que os números mostram não ter sido o caso. Dois casos em cinco não fazem uma tradição histórica.
Conclusão: a evacuação de Joana Marques Vidal, a coberto de desculpas esfarrapadas, é uma decisão puramente política, que convém a António Costa e, por extensão, aos seus camaradas de partido e de Governo.

Tudo aconselhava o prolongamento do mandato de Marques Vidal, desde a sua competência, lisura e coragem, até à notória inconveniência de a remover numa circunstância em que a Justiça portuguesa passa pela sua maior prova. Paradoxalmente, é precisamente por causa desta circunstância e por causa das raras qualidades da procuradora-geral que esta se torna um estorvo para António Costa.

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