segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

A RODA


Do tempo, da arte, do costume por cá.
Três textos do Público, de 5 de Janeiro de 2018: de Rui Tavares, de Bagão Félix, de David Dinis.
Sobre a superioridade do Trump de agora relativamente a um tirano de outrora; sobre o aplauso ao último filme de Woody Allen; sobre o primeiro debate de dois rivais sem perspectiva de melhoria, mas com alternativa de escolha, na teia esgarçada da nossa rodagem às voltas, às voltas.

1- OPINIÃO
Onde se compara Trump com Calígula, e Calígula perde

Não preciso de acreditar em Bannon para perceber que a verdadeira roupa suja de Trump é a lavagem de dinheiro. O resto é apenas uma muito perigosa distração.
Rui Tavares, Historiador
Agora que se aproximam a trote dois mil anos sobre a sua galopante carreira política, certamente que muitos leitores reservam de quando em vez um pensamento em memória de Incitatus, o cavalo preferido do Imperador Calígula. Reza a lenda que, cansado (o imperador, não o cavalo) da classe política de Roma, Calígula decidiu elevar o seu cavalo Incitatus à dignidade de Cônsul, o que obrigaria os senadores a prestarem-lhe homenagem (ao cavalo, e claro que também ao imperador).
Pelo menos assim o contou Suetónio nas suas Vidas dos Doze Césares. Ora, ninguém sabe bem se Calígula chegou mesmo a fazer do cavalo Incitatus cônsul, ou se falava disso apenas para insultar os senadores. Mas a história de Incitatus atravessou séculos como quem nos diz “estes romanos são loucos”.
Calígula era o líder do maior império do mundo conhecido, e mais estrambólico do que ele houve poucos. Até agora. Ao ler ontem os vários excertos que foram sendo publicados do livro que sobre Trump escreveu o jornalista Michael Wolff pensei que tínhamos finalmente material contemporâneo a valer uma comparação com os doze césares narrados por Suetónio. Michael Wolff, que passou bastante do seu tempo na Casa Branca, descreve-nos um líder do maior império do mundo conhecido que é volúvel, paranóico e ignorante a ponto de ser praticamente analfabeto. Não só Trump não lê, como não gosta que lhe expliquem o que está escrito em textos essenciais que deveria conhecer. Um dos seus apoiantes visitou-o para lhe explicar os artigos da Constituição dos Estados Unidos da América: não conseguiu passar da quarta emenda antes que Trump o mandasse calar.
E não é preciso acreditar nas histórias de Michael Wolff para conseguir ver em Trump uma versão pós-moderna de um imperador julio-cláudio tardio. Basta ler o que o próprio Trump escreve no Twitter, a começar pela sua briga com Kim Jong-Un sobre qual dos dois teria um botão nuclear maior em cima da mesa. Calígula mandava apenas o exército impor o silêncio nas ruas em torno do estábulo imperial quando Incitatus estava a dormir. Nada que chegue para provocar milhões de mortos em poucos minutos.
Há pois comparações que desfavorecem claramente o nosso tempo. Ao menos Nero tinha como preceptor Séneca, e quando Séneca percebeu no que Nero se tinha tornado, foi para a sua quinta e cortou honrosamente os pulsos. Trump teve como chefe de estratégia Steve Bannon, e o mínimo que se pode dizer é que Bannon não tem apetência para sair de cena como Séneca. Bannon decidiu dizer cobras e lagartos de Trump. Trump acusou Bannon de ter perdido a cabeça. Ato contínuo, Bannon decidiu dizer que Trump era afinal um grande homem. Faz sentido.
Mas há uma coisa que Bannon disse que faz ainda mais sentido. Não tem a ver com a ignorância de Trump, nem com a sua paranóia, nem com o seu egocentrismo. Tem a ver com algo que tem feito mover subrepticiamente a política nestes tempos de nacional-populismo: lavagem de dinheiro. Disse Bannon (e não foi desmentido): 
“Está-se mesmo a ver a ver onde isto vai acabar. Tudo isto tem a ver com lavagem de dinheiro. Isto passa pelo Deutsche Bank e [os procuradores] vão investigar isso tudo.”
Quando um dia se olhar a sério para a revolução nacional-populista de 2016, que não surpreenda ninguém que se descubra quão importante foi a lavagem de dinheiro, a evasão fiscal e o planeamento fiscal agressivo enquanto móbil das campanha políticas nos EUA e também no Reino Unido (onde uma grande parte dos líderes do Brexit estavam envolvidos com estas práticas e desejavam naturalmente evitar qualquer tipo de políticas mais assertivas contra paraísos fiscais, na UE ou fora dela).
Eu não acredito forçosamente em Suetónio e não sei, portanto, se Calígula chegou mesmo a nomear como cônsul o cavalo Incitatus. Mas não preciso de acreditar em Bannon para perceber que a verdadeira roupa suja de Trump é a lavagem de dinheiro. O resto é apenas uma muito perigosa distração.

2- A RODA DA VIDA

António Bagão Félix

Não vi todos os filmes de Woody Allen e nem sempre gostei dos que vi. Este americano, agora com 82 anos, continua a escrever e realizar filmes com uma frequência notável. A sua 47ª longa-metragem “Roda gigante” foi apreciada pela crítica portuguesa com um habitual e elevado grau de divergência. Do que li, há quem lhe dedique 5 estrelas (excelente) e quem lhe conceda uma mísera estrela (medíocre).
Pela minha parte, considero este filme uma notável obra, do melhor que tenho visto nos últimos anos. Desde logo, por nos fazer regressar ao cinema puro, sem artificialismos dispensáveis, efeitos especiais atormentantes, cripto-mensagens indecifráveis e proto leituras tão cansativas quanto delirantes, e, também, sem cair na fórmula do entretenimento descartável que não consegue resistir um minuto que seja ao “depois”. Até o genérico tem o primitivismo da boa modéstia. No cinema, como afinal em tudo, o mais difícil de alcançar é sempre o simples.
Roda gigante” é um filme passado nos anos cinquenta do século passado numa praia da cidade do realizador (Coney Island em Nova Iorque), na sua fase exuberante de glamour e antes de cair na decrepitude das décadas seguintes. Uma história de vida e de vidas acontecidas no labirinto do simbolismo de um “parque de diversão” entre “tiros ao boneco”, carrosséis, rodas pequenas e gigantes, onde se cruzam anseios, sonhos, temores, desilusões dos protagonistas do enredo. Uma obra que, também, indicia algo de imersão nostálgica do realizador.
Um filme onde as cores, entre o mar plúmbeo, os carrosséis de todas as pigmentações vivas, o fogo de cores quentes e as luzes alaranjadas translucidamente passadas para o corpo e alma das personagens, nos convidam a fundir o ambiente balnear e festivo com a beleza da pintura flamenga. Tudo acompanhado por música da época, que nos surge nos interstícios das relações pessoais e teias amorosas e neuróticas que se vão tecendo ao longo do filme e que, de algum modo, prenunciam mudanças na sociedade do pós-Guerra Mundial. Um filme brilhantemente enriquecido com as notáveis interpretações de Kate Winslet, Jim Belushi e Justin Timberlake.
Esta película fez-me lembrar uma frase de um conhecido futebolista quando, um dia, perante a crise do clube que representava, desabafou no convencimento de que “isto tem mesmo de mudar, temos de dar uma volta de 360º” … Woody Allen, ao contrário do futebolista, respeitou a geometria e, assim, tudo voltou ao princípio, ao ângulo da inexistência de graus. Aqui, a roda gigante, a roda dentada da vida, as rodas panorâmicas da utopia tiveram o fim no princípio ou o princípio do fim. Ou seja, na fragilidade sonhadora ainda não testada pela inexorável realidade, nas paranóias consentidas ou implícitas ainda não encaminhados para “médicos da tola”, no conformismo de uma rotina sem sobressaltos, nos medos e angústias de vidas sem ângulo, no naufrágio de fantasias, na incapacidade de ultrapassar erros próprios.
Quando o filme terminou vieram-me à cabeça, admito que por esconsos atalhos da minha memória, as últimas imagens da jovem interpretada por Nathalie Wood no filme de Elia Kazan, “Esplendor na relva”, quando, desfeitos os seus mais profundos sonhos para a vida, à pergunta “És feliz?”, responde “Já deixei de pensar sobre a felicidade”. Aqui a roda era feita de engrenagens na plenitude onírica da juventude e que, no fim da sua atormentada e circular viagem, assinalou a crueza do que não se pode já alcançar. Assim, associei as duas rodas, vias para o conformismo da prisão do sonho e da submissão à rotina e lei do tempo.

EDITORIAL
Este debate foi na RTP-Memória?
David Dinis
Já Santana dizia para Marcelo, quando o desafiou em 1996: estava escrito nas estrelas que ia ser assim.primeiro debate entre Santana Lopes e Rui Rio foi um debate pessoal. Foi um ajuste de contas sobre o passado de cada um deles. Foi quase como se, por engano, tivéssemos ligado a televisão não na RTP, mas na RTP-Memória (levando-nos para uma noite de má memória)
Rui Rio falou das “trapalhadas” do Governo de Santana, lá atrás em 2004, mas não se preparou para lembrar algumas (e era fácil, porque eram quase diárias). E lembrou-se da ideia de Santana de criar um outro partido, mas enganou-se na data (sendo que até era divertido lembrar que foi em 1997, quando Marcelo era líder do partido).
Já Santana Lopes, usou o ex-vice de Rui Rio na Câmara do Porto (em quem, nas últimas presidenciais, votaram 2% dos eleitores), para lembrar que ele já tinha sido acusado de ser cúmplice de corruptos. Lembrou as conferências de Rio criticando o estado da democracia em pleno Governo Passos. Mas sobretudo usou os apoiantes do seu adversário (Pacheco Pereira, Ferreira Leite, António Capucho), como quem diz aos militantes “diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”).
Se a ideia era ganhar o combate nesta guerra, Rui Rio perdeu a primeira batalha. Não porque Santana Lopes é mestre na arte do contraditório, não apenas porque não levou os recortes tão preparados. Mas sobretudo porque não quis arriscar ir para o campo onde teria mais a ganhar: na consistência das ideias. Na franqueza das propostas. No assumir de uma alternativa. Sem ideias, Santana levou-o para o seu ringue. E, claro, ganhou o primeiro combate. 
O problema é que, do resto do debate, não sobrou nada. Rui Rio e Santana Lopes concordam que é preciso baixar impostos, que é preciso descentralizar, que é preciso ir baixando o défice. Os dois criticam Costa e a maioria de esquerda. Um rejeita já o Bloco Central, o outro só não diz “jamais”. 
O que resulta daqui, é que pouco ou nada muda — a não ser um triste espectáculo de acusações mútuas. Para quem tanto fala de Sá Carneiro e da sua mais famosa citação (“primeiro o país, depois o partido”), os dois candidatos fizeram exactamente o contrário: decidiram falar apenas para os militantes do PSD, esquecendo-se da imagem que ficaria para o partido. Foi por isto que o primeiro debate entre os candidatos à liderança do PSD teve um vencedor, que assistiu a tudo tranquilo: António Costa.



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