Do tempo, da arte, do costume por cá.
Três textos do Público,
de 5 de Janeiro de 2018: de Rui Tavares,
de Bagão Félix, de David Dinis.
Sobre a superioridade do
Trump de agora relativamente a um tirano de outrora; sobre o aplauso ao último
filme de Woody Allen; sobre o primeiro debate de dois rivais sem perspectiva de
melhoria, mas com alternativa de escolha, na teia esgarçada da nossa rodagem às
voltas, às voltas.
1- OPINIÃO
Onde se compara Trump
com Calígula, e Calígula perde
Não preciso de
acreditar em Bannon para perceber que a verdadeira roupa suja de Trump é a
lavagem de dinheiro. O resto é apenas uma muito perigosa distração.
Rui Tavares, Historiador
Agora que se aproximam a
trote dois mil anos sobre a sua galopante carreira política, certamente que
muitos leitores reservam de quando em vez um pensamento em memória
de Incitatus, o cavalo preferido do Imperador Calígula. Reza a lenda que,
cansado (o imperador, não o cavalo) da classe política de Roma, Calígula
decidiu elevar o seu cavalo Incitatus à dignidade de Cônsul, o que
obrigaria os senadores a prestarem-lhe homenagem (ao cavalo, e claro que também
ao imperador).
Pelo menos assim o
contou Suetónio nas suas Vidas dos Doze Césares. Ora, ninguém sabe bem se
Calígula chegou mesmo a fazer do cavalo Incitatus cônsul, ou se
falava disso apenas para insultar os senadores. Mas a história
de Incitatus atravessou séculos como quem nos diz “estes romanos são
loucos”.
Calígula era o líder do
maior império do mundo conhecido, e mais estrambólico do que ele houve poucos.
Até agora. Ao ler ontem os vários excertos que foram sendo publicados do livro
que sobre Trump escreveu o jornalista Michael Wolff pensei que tínhamos
finalmente material contemporâneo a valer uma comparação com os doze césares
narrados por Suetónio. Michael Wolff, que passou bastante
do seu tempo na Casa Branca, descreve-nos um líder do maior império do mundo
conhecido que é volúvel, paranóico e ignorante a ponto de ser praticamente
analfabeto. Não só Trump não lê, como não gosta que lhe expliquem o que está
escrito em textos essenciais que deveria conhecer. Um dos seus apoiantes
visitou-o para lhe explicar os artigos da Constituição dos Estados Unidos da
América: não conseguiu passar da quarta emenda antes que Trump o mandasse
calar.
E não é preciso
acreditar nas histórias de Michael Wolff para conseguir ver em Trump uma versão
pós-moderna de um imperador julio-cláudio tardio. Basta ler o que o
próprio Trump escreve no Twitter, a começar pela sua briga com Kim Jong-Un
sobre qual dos dois teria um botão nuclear maior em cima da mesa. Calígula
mandava apenas o exército impor o silêncio nas ruas em torno do estábulo
imperial quando Incitatus estava a dormir. Nada que chegue para
provocar milhões de mortos em poucos minutos.
Há pois comparações que
desfavorecem claramente o nosso tempo. Ao menos Nero tinha como preceptor
Séneca, e quando Séneca percebeu no que Nero se tinha tornado, foi para a sua
quinta e cortou honrosamente os pulsos. Trump teve como chefe de estratégia
Steve Bannon, e o mínimo que se pode dizer é que Bannon não tem apetência para
sair de cena como Séneca. Bannon decidiu dizer cobras e lagartos de Trump.
Trump acusou Bannon de ter perdido a cabeça. Ato contínuo, Bannon decidiu dizer
que Trump era afinal um grande homem. Faz sentido.
Mas há uma coisa que Bannon
disse que faz ainda mais sentido. Não tem a ver com a ignorância de Trump, nem
com a sua paranóia, nem com o seu egocentrismo. Tem a ver com algo que tem feito
mover subrepticiamente a política nestes tempos de nacional-populismo: lavagem
de dinheiro. Disse Bannon (e não foi desmentido):
“Está-se mesmo a ver a
ver onde isto vai acabar. Tudo isto tem a ver com lavagem de dinheiro. Isto
passa pelo Deutsche Bank e [os procuradores] vão investigar isso tudo.”
Quando um dia se olhar a
sério para a revolução nacional-populista de 2016, que não surpreenda ninguém
que se descubra quão importante foi a lavagem de dinheiro, a evasão fiscal e
o planeamento fiscal agressivo enquanto móbil das campanha políticas nos EUA e
também no Reino Unido (onde uma grande parte dos líderes do Brexit estavam
envolvidos com estas práticas e desejavam naturalmente evitar qualquer tipo de
políticas mais assertivas contra paraísos fiscais, na UE ou fora dela).
Eu não acredito
forçosamente em Suetónio e não sei, portanto, se Calígula chegou mesmo a nomear
como cônsul o cavalo Incitatus. Mas não preciso de acreditar em Bannon
para perceber que a verdadeira roupa suja de Trump é a lavagem de dinheiro.
O resto é apenas uma muito perigosa distração.
2- A RODA DA VIDA
António Bagão Félix
Não
vi todos os filmes de Woody Allen e nem sempre gostei dos que vi. Este americano,
agora com 82 anos, continua a escrever e realizar filmes com uma frequência
notável. A sua 47ª longa-metragem “Roda gigante” foi apreciada pela crítica
portuguesa com um habitual e elevado grau de divergência. Do que li, há quem
lhe dedique 5 estrelas (excelente) e quem lhe conceda uma mísera estrela
(medíocre).
Pela minha parte, considero
este filme uma notável obra, do melhor que tenho visto nos últimos anos. Desde
logo, por nos fazer regressar ao cinema puro, sem artificialismos dispensáveis,
efeitos especiais atormentantes, cripto-mensagens indecifráveis e proto
leituras tão cansativas quanto delirantes, e, também, sem cair na fórmula do
entretenimento descartável que não consegue resistir um minuto que seja ao
“depois”. Até o genérico tem o primitivismo da boa modéstia. No cinema, como
afinal em tudo, o mais difícil de alcançar é sempre o simples.
“Roda gigante” é um
filme passado nos anos cinquenta do século passado numa praia da cidade do
realizador (Coney Island em Nova Iorque), na sua fase exuberante de glamour e antes de
cair na decrepitude das décadas seguintes. Uma história de vida e de vidas
acontecidas no labirinto do simbolismo de um “parque de diversão” entre “tiros
ao boneco”, carrosséis, rodas pequenas e gigantes, onde se cruzam anseios,
sonhos, temores, desilusões dos protagonistas do enredo. Uma obra que, também,
indicia algo de imersão nostálgica do realizador.
Um filme onde as cores,
entre o mar plúmbeo, os carrosséis de todas as pigmentações vivas, o fogo de
cores quentes e as luzes alaranjadas translucidamente passadas para o corpo e
alma das personagens, nos convidam a fundir o ambiente balnear e festivo com a
beleza da pintura flamenga. Tudo acompanhado por música da época, que nos surge
nos interstícios das relações pessoais e teias amorosas e neuróticas que se vão
tecendo ao longo do filme e que, de algum modo, prenunciam mudanças na
sociedade do pós-Guerra Mundial. Um filme brilhantemente enriquecido com as
notáveis interpretações de Kate Winslet, Jim Belushi e Justin Timberlake.
Esta película fez-me
lembrar uma frase de um conhecido futebolista quando, um dia, perante a crise
do clube que representava, desabafou no convencimento de que “isto tem mesmo de
mudar, temos de dar uma volta de 360º” … Woody Allen, ao contrário do futebolista,
respeitou a geometria e, assim, tudo voltou ao princípio, ao ângulo da
inexistência de graus. Aqui, a roda gigante, a roda dentada da vida, as rodas
panorâmicas da utopia tiveram o fim no princípio ou o princípio do fim. Ou
seja, na fragilidade sonhadora ainda não testada pela inexorável realidade, nas
paranóias consentidas ou implícitas ainda não encaminhados para “médicos da tola”, no conformismo de uma
rotina sem sobressaltos, nos medos e angústias de vidas sem ângulo, no
naufrágio de fantasias, na incapacidade de ultrapassar erros próprios.
Quando o filme terminou
vieram-me à cabeça, admito que por esconsos atalhos da minha memória, as
últimas imagens da jovem interpretada por Nathalie Wood no filme de Elia Kazan,
“Esplendor na relva”, quando, desfeitos os seus mais profundos sonhos para a vida,
à pergunta “És feliz?”, responde “Já deixei de pensar sobre a felicidade”. Aqui
a roda era feita de engrenagens na plenitude onírica da juventude e que, no fim
da sua atormentada e circular viagem, assinalou a crueza do que não se pode já
alcançar. Assim, associei as duas rodas, vias para o conformismo da prisão do
sonho e da submissão à rotina e lei do tempo.
EDITORIAL
Este debate foi na RTP-Memória?
David Dinis
Já Santana dizia para
Marcelo, quando o desafiou em 1996: estava escrito nas estrelas que ia ser
assim. O primeiro debate entre Santana Lopes e Rui Rio foi
um debate pessoal. Foi um ajuste de contas sobre o passado de cada um deles.
Foi quase como se, por engano, tivéssemos ligado a televisão não na RTP, mas na
RTP-Memória (levando-nos para uma noite de má memória).
Rui Rio falou das
“trapalhadas” do Governo de Santana, lá atrás em 2004, mas não se preparou para
lembrar algumas (e era fácil, porque eram quase diárias). E lembrou-se da ideia
de Santana de criar um outro partido, mas enganou-se na data (sendo que
até era divertido lembrar que foi em 1997, quando Marcelo era líder do
partido).
Já Santana Lopes, usou o
ex-vice de Rui Rio na Câmara do Porto (em quem, nas últimas presidenciais,
votaram 2% dos eleitores), para lembrar que ele já tinha sido acusado de ser
cúmplice de corruptos. Lembrou as conferências de Rio criticando o estado da
democracia em pleno Governo Passos. Mas sobretudo usou os apoiantes do seu
adversário (Pacheco Pereira, Ferreira Leite, António Capucho), como quem diz
aos militantes “diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”).
Se a ideia era ganhar o
combate nesta guerra, Rui Rio perdeu a primeira batalha. Não porque Santana
Lopes é mestre na arte do contraditório, não apenas porque não levou os
recortes tão preparados. Mas sobretudo porque não quis arriscar ir para o campo
onde teria mais a ganhar: na consistência das ideias. Na franqueza das
propostas. No assumir de uma alternativa. Sem ideias, Santana levou-o para o
seu ringue. E, claro, ganhou o primeiro combate.
O problema é que, do
resto do debate, não sobrou nada. Rui Rio e Santana Lopes concordam que é
preciso baixar impostos, que é preciso descentralizar, que é preciso ir
baixando o défice. Os dois criticam Costa e a maioria de esquerda. Um rejeita
já o Bloco Central, o outro só não diz “jamais”.
O que resulta daqui, é
que pouco ou nada muda — a não ser um triste espectáculo de acusações mútuas.
Para quem tanto fala de Sá Carneiro e da sua mais famosa citação (“primeiro o
país, depois o partido”), os dois candidatos fizeram exactamente o
contrário: decidiram falar apenas para os militantes do PSD, esquecendo-se da
imagem que ficaria para o partido. Foi por isto que o primeiro debate entre os
candidatos à liderança do PSD teve um vencedor, que assistiu a tudo tranquilo:
António Costa.
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