Que haja figuras de realce no
panorama social português - e tais são também as que se elevam pelo saber ou
pela nobreza de opinião.
É o caso de José Pacheco
Pereira, analista brilhante de uma sociedade de trapaça generalizada que
vamos condenando na efervescência de uma indignação que a par e passo explode
em novos exemplos comprovativos da ausência de princípios em que flutuamos.
Quanto
a João Miguel Tavares, autor do segundo texto, é exemplo que se
destaca, pelo desportivismo e argúcia interpretativa orientadora da opinião
pública, numa crítica sadia de jovem bem formado, merecedor da nossa gratidão. Exemplificando
essa faceta de jovem alegremente positivo, o texto – de final de ano - que
segue o brilhante artigo pessimista de José Pacheco Pereira - realçando dados
positivos de que ainda nos podemos orgulhar, como esse dos jornais PÚBLICO
e OBSERVADOR, de que aponta a importância de um jornalismo isento e
livre.
Eis, pois, duas figuras, entre
tantas, afinal, que são elementos dignos de formadores de opinião que se
destacam no nosso apreço, e nos permitem júbilos de esperança, apesar do
pessimismo.
OPINIÃO
A sopa envenenada
Como se comportamentos deste género não fossem o retrato de uma
sociedade onde há uma escassa ética colectiva.
José Pacheco Pereira
Público, 16 de Dezembro de 2017
Este artigo não é sobre as
“raríssimas”; ou seja, sobre o caso da associação com esse nome. Este artigo
é sobre as vulgaríssimas; ou seja, sobre aquilo que este caso revela sobre a
nossa sociedade, sobre os nossos comportamentos, sobre o modo como
os media e os seus consumidores estão impregnados da sopa envenenada
que é hoje a chamada “opinião pública”. O caso em si é fácil de descrever:
numa instituição de solidariedade social, com obra reconhecida como meritória
(podia não ser), a sua responsável (e certamente vários dos seus colaboradores,
incluindo os “whistleblowers”, como é costume) abusou da sua situação para
obter vantagens materiais, viver à custa dos dinheiros “solidários”, ter luxos,
e empregar a família e amigos. À sua volta, uma rede de cumplicidades,
envolvendo o poder político, e membros do Governo ou ajudaram a causa, sem
cuidados, ou participaram no festim. Nalguns casos pode ter havido crimes,
noutros comportamentos eticamente reprováveis. A instituição vivia encostada ao
Estado (como quase tudo em Portugal) e recebia apoios da sociedade civil,
parece que com alguma eficácia.
Uma reportagem da TVI
denunciou o caso, os abusos e as cumplicidades. Fê-lo com equilíbrio e com
matéria probatória sólida, incluindo depoimentos, emails e alguns filmes, uns
feitos às escondidas, outros às claras. Do ponto de vista da
deontologia jornalística, a única coisa que podia suscitar dúvidas eram os
filmes que foram fornecidos juntamente com as outras denúncias por gente de
“dentro”. Não é incomum no jornalismo de investigação este tipo de técnicas e
há doutrina estabelecida sobre as regras a seguir. Neste caso, no
documentário original, tudo o que lá está é mais do que justificado pelo
interesse público da denúncia de um caso de claro abuso desta natureza. Na sequência
deste documentário original seguiram-se as linhas de investigação e escrutínio,
jornalístico e público, obrigatórias: a senhora foi afastada das suas funções,
o membro do Governo envolvido demitiu-se (e se não se tivesse demitido devia
ter sido demitido de imediato) e prossegue o trabalho de esclarecer se existem
outras responsabilidades no Governo, quer por acção quer por omissão. A
realidade tem mostrado que os membros do Governo e os outros políticos
envolvidos não estão a sair-se muito bem das explicações que têm de dar. Esta
parte está ainda em curso e deve ser inteiramente esclarecida, assim como os
inquéritos judiciais e investigações por quem de direito.
Nada disto é incomum, é
até muito vulgar, e consideravelmente consentido quando dentro de portas, e
quando ou se esconde bem a mão, ou quando se distribui alguma coisa do bodo
colectivo e “comem todos”. Até um dia. Nesse dia vai lá tudo deitar pedras,
como se não se soubesse de nada, ou, um pouco por todo o lado, como se
comportamentos deste género não fossem o
retrato de uma sociedade onde há uma escassa ética colectiva, em parte porque
somos ainda uma sociedade muito pobre, ou em que parte das pessoas saiu ainda
há pouco tempo da pobreza, onde nunca na burocracia imperaram critérios de
mérito, mas a cunha ou o patrocinato, onde esquemas de todo o tipo são tão
comuns, no Estado, na política, nas empresas, nos bombeiros, nas casas
paroquiais, nas escolas, nos quartéis, nos centros de saúde, um pouco por todo
o lado. Talvez com menos gravidade, nem sendo muitas vezes crimes mas apenas
abusos, mas com tanta trivialidade que não os vemos como culposos.
Significa isso que os
portugueses não são honrados? Não,
significa que são pobres, ou ainda que têm uma memória viva da pobreza,
não sentem a coisa pública como sendo de todos, e sabem que, para empregar um
filho, obter um papel na câmara, evitar pagar o IVA, passar à frente de uma
fila, há um sistema de favores implantado que vive da complacência de quem se
aproveita e da inveja de quem ficou de fora. E isto é de uma
ponta à outra da sociedade. Desde os offshores “legais” ao
planeamento fiscal, às compras para as cantinas, das empresas que fazem brindes
para as campanhas eleitorais, até aos amigos e as empresas que arranjam sempre
ser contratados sem concurso público, até ao autarca que “rouba mas faz” e a
quem os mesmos que exorcizam a corrupção em cada palavra que dizem, afinal,
votam.
Isto é corrupção, mas
não só. É o retrato de uma sociedade disfuncional, muito desigual, onde quem
tem acesso ao poder de gerir, ou de comprar, ou de vender, o faz quase sempre
numa rede de amizades e cumplicidades, com proveito mútuo, e tão habitual que
não merece condenação social. Até um dia, em que a complacência se substitui
pela inveja. Nesse dia entra em cena aquilo a que chamei “a
sopa envenenada”. Antes era a mesa de café onde quem estava à mesa
era de uma honestidade férrea (até ao momento em que saía da mesa) e à volta, a
começar pela mesa vizinha, era tudo ladrões, corruptos e desonestos. Agora a
mesa de café é planetária e é nas sarjetas das redes sociais, onde o mesmo
insuportável espírito domina os comentários e as entradas no Facebook. E é para
esse público que hoje está o caso das “raríssimas”,
agora investigado já não
pelas regras jornalísticas, mas pelas da exploração demagógica e populista, pela exibição do pior que há nos seres humanos,
da inveja social, da calúnia, do ressentimento, do bater nos que estão em
baixo, e mesmo outro tipo de comportamentos pouco recomendáveis.
E o assunto está hoje assim
nos media formais e informais: desequilibrado, com
um overkill desproporcionado à gravidade dos factos e com violações
sérias da privacidade das pessoas. Se é relevante que a pessoa A tivesse uma
relação íntima com a pessoa B, isso pode ser dito com a obrigação da
proporcionalidade e do respeito pela privacidade. Para se dar uma informação
relevante não é preciso ter um exibicionismo voyeurista, que é uma coisa de
outra natureza. Já para não falar de alguma elegância — tão bizarra palavra
nos nossos dias —, mas também a noção de que humilhar e amesquinhar as pessoas
coloca quem o faz no mesmo plano da senhora culpada destes abusos.
Acresce que o facto de a
principal culpada dos desmandos ser uma mulher não é irrelevante. Pior ainda é
uma mulher “insuportável”, arrogante, atractiva e muito senhora de si para
parecer um perigo para os homens e para as mulheres que no fundo temem as
mulheres deste tipo, ou pura e simplesmente temem as mulheres como se fossem
amazonas. O sexismo facilitou e muito o incêndio dos comentários e há uma
espécie de exorcismo contra a sedução implícita. Se não querem ouvir as
sereias, coloquem cera nos ouvidos e não fiquem babados a ver a televisão e a
vociferar de inveja, de todas as invejas.
É por isto que quase
tudo para além do caso das “raríssimas” é muito mais triste do que as gambas e
o BMW, quer pelo que está antes e a gente faz de conta que não vê, quer pelo
que está depois em que a gente faz de conta que vê demais.
OPINIÂO
Duas boas notícias
Não há democracia saudável sem bom jornalismo. Espero, também aqui, que
2018 continue a seguir as excelentes pisadas de 2017.
João Miguel Tavares
Público, 29 de Dezembro de 2017
Quem escreve nos jornais
costuma ser dado a discursos pessimistas, mas sendo esta uma época festiva
proponho olhar para as más notícias de uma perspectiva positiva, usando dois
exemplos emblemáticos que vão com certeza marcar 2018: a confusão instalada na
Catalunha e a sucessão de casos grandes e pequenos que têm fustigado o Governo
e que certamente se irão intensificar com a aproximação das legislativas de
2019.
Ninguém pode adivinhar o
que vai acontecer na Catalunha em 2018, mas há algo que me tem surpreendido:
a total ausência de violência no meio de uma situação caótica. Aqui há 20 ou 30
anos seria impensável que um impasse político desta dimensão, envolvendo partes
extremadas e discursos nacionalistas, não descambasse nalguma forma de
violência — ainda para mais na sanguínea Espanha. Há algo de novo nesta
coabitação de radicalismo com pacifismo que merece ser celebrado e que espero
que se mantenha em 2018.
Na vertente nacional,
queria elogiar a qualidade do escrutínio jornalístico dos últimos meses. No
meio de um discurso catastrófico sobre o futuro do jornalismo esquecemo-nos de
ver o que de bom está a acontecer à nossa volta: uma nova dinâmica introduzida
por projectos online como o Observador ou o Eco; a necessidade
de meios tradicionais como o PÚBLICO ou o Expresso responderem a esse
desafio; a revalorização das reportagens de investigação na TVI e na SIC. Não
há democracia saudável sem bom jornalismo. Espero, também aqui, que 2018
continue a seguir as excelentes pisadas de 2017.
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