Foi no que se transformou um
país de gente de exibição tacanha, quer se trate de um governante grotesco a alardear
competências de caricatura, quer se trate de figurões a impor os seus pareceres
de fanatismo descortês a plateias de longa data habituadas aos desmandos dos
acompanhantes de jogos futebolísticos, “Leões da Estrela” exaltados,
embora ainda suficientemente cordatos, aquando da interpretação de artistas do
génio de António Silva, mas a perspectivar já estas cenas degradantes, que, por
contraste, nos levam aos educados e atentos assistentes de jogos de snooker,
noutros espaços terráqueos, é bem certo…
Maria João Avillez
trata da figura de um governante desenrascado e sem pejo, João Miguel
Tavares mostra a sua indignação de cidadão saturado do terceiro mundismo que
cada vez mais nos deslustra, na infâmia da ausência de maneiras educativas, de
escarros atirados às faces dos interlocutores e dos que do sofá assistem aos
frequentes programas televisivos, mesmo em canais de quem menos se esperariam
tais programas entrevistadores. Quanto ao texto de Maria João Avillez, de uma
reflexão feita de arte e aprofundamento argumentativo, só me lembra de citar
Eça e os seus Gouvarinhos, de uma estultícia mais requintada, todavia, do que a
de António Costa, este a sugerir antes o marmeleiro do arrocho, mas igualmente convicto
da sua eficácia como guardador de rebanhos:
«O nosso conde falou! disse
o velho, ainda com o olho brilhante de entusiasmo. - Falaste? exclamou ela,
voltando-se com um interesse encantador. É verdade, falara; e desprevenido!
Quando ouvira, porém, o Torres Valente (homem de literatura, mas um doido, sem
senso prático) quando o ouvira defender a ginástica obrigatória nos colégios -
erguera-se. Mas não imaginasse o amigo Maia, que ele tinha feito um discurso. -
Ora essa! exclamou o velho, agitando o lenço. E um dos melhores que eu tenho
ouvido na câmara! Dos de arromba! O Conde modestamente protestou. Não: tinha
simplesmente lançado uma palavra de bom senso, e de bom princípio. Perguntara
apenas ao seu ilustre amigo, o Sr. Torres Valente, se na sua ideia, os nossos
filhos, os herdeiros das nossas casas, estavam destinados para palhaços!... -
Ah, esta piada, Sr.ª condessa! exclamou o velho. Eu só queria que V. Ex.ª
ouvisse esta piada... E como ele a disse! com um chic! O conde sorriu,
agradeceu para o lado, ao velho. Sim, dissera-lhe aquilo. E, respondendo a outras
reflexões do Torres Valente, que não queria nos liceus, nem nos colégios, um
ensino «todo impregnado de catecismo», ele lançara-lhe uma palavra cruel. -
Terrível, exclamou o velho num tom cavo, preparando o lenço para se assoar
outra vez. - Sim, terrível... Voltei-me
para ele, e disse-lhe isto... «Creia o digno par, que nunca este país retomará
o seu lugar à testa da civilização, se, nos liceus, nos colégios, nos
estabelecimentos de instrução, nós outros os legisladores formos, com mão
ímpia, substituir a cruz pelo trapézio... - Sublime, rosnou o velho, dando um
ronco medonho dentro do lenço. Carlos, erguendo-se, declarou aquilo duma ironia
adorável. E o conde, quando ele se despediu, não se contentou com um simples aperto
de mão, passou-lhe o braço pela cinta, chamou-lhe o seu querido Maia.» («Os
Maias”, cap. IX)
Não, não mudámos assim tanto,
só que invertemos os valores, talvez por culpa do trapézio, talvez por conta da
cruz…
Natal inquieto
0BSERVADOR, 20/12/2017,
O facto de justamente nada,
na mente ou na alma, ter vetado a António Costa, na caracterização ou resumo do
ano, uma exibição sonora de felicidade, de "saboroso", é que deixou
meio país de boca aberta
1. Natal
inquieto. Não há aumentos, prendas, movida lisboeta, turismo, turistas,
iluminações na Avenida, restaurantes lotados, beautifull people, subsídios de
Natal, pontes de Natal que disfarcem os agrestes dias que vivemos. Apenas os
anestesiam. Deixando num fugidio entre-parêntesis este indefinível
mal-estar que se transformou no pão-nosso das nossas incertas jornadas. A
claudicante saúde civilizacional da Europa, torna tudo mais sombrio, A
Catalunha é já amanhã e não pode correr bem, o mundo arde, os seus líderes
assustam-nos. Onde está o nosso porto de abrigo?
2. António Costa
definiu, fora de portas, o ano que finda como «saboroso». Estava
obviamente a referir-se a eleição de Centeno. O meu ponto é que não lhe tenha
ocorrido que, seja em que circunstâncias for, 2017 proíbe certos
adjectivos. O facto de justamente nada, na mente ou na alma, lhe
ter vetado, na caracterização ou resumo do ano, uma exibição sonora de
felicidade é que deixou meio país de boca aberta. Foram demasiado
os mortos, trágico o sofrimento, intensos a perda e o luto. E têm sido tão
lenta e descoordenada a reconstituição do regresso à vida – indemnizações,
casas, apoios – que a escolha do adjectivo foi quase acintosa.
3. Nos três
primeiros trimestres do ano que finda a banca emprestou às famílias uma larga
mão cheia de milhões. Não retive quanto, fiquei com o essencial: a verba é bem
maior que a “oferecida” durante os 12 meses do ano anterior. Não se alcança a
política de crédito dos bancos (ignorando avisos do BdP), mas alcança-se a sua
vertigem. Outra vez.
4. Catorze
governantes, quatorze, têm vindo a sair do palco do poder pela porta dos fundos.
Nenhum — ou quase nenhum — por razões ditas “normais”, antes por falhas mais
ou menos sombrias cometidas por eles próprios em relação as áreas que
tutelavam. A última demissão (secretário Estado da Saúde), alguém incauto – que
o recomendava para o governo? Não precisamos de o conhecer melhor: o país já
lhe tirou o retrato e eu ouvi-o com a atenção quanto baste para escrever isto
sem tropeçar na minha própria consciência. O presidente do PS considerou
os quatorze casos como “periféricos da acção governativa”. Da ética republicana
também serão periféricos? Diz o mesmo Carlos César que o que interessa são os
“resultados da acção governativa”, o resto é “a espuma dos dias”. Qual
resto? Em que nível da “acção governativa” entra um Estado clientelar,
esburacado, exangue, incapaz de prever, proteger, cuidar, resolver, fiscalizar?
Em que classificação se arruma a Legionella, Tancos (e sim, talvez não
fosse só Tancos a recomendar a exoneração do Chefe do Estado Maior General das
FA e do Chefe do Estado Maior do Exército); o Infarmed tratado como mercadoria
que sem aviso prévio se muda de sítio por razões de propaganda? Pior: em qual
prateleira arrumar – na “acção governativa”, na “espuma dos dias” ou na
“periferia”? — a vergonhosa entrada da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no
capital do Montepio?
Há uma espécie de
impunidade que os socialistas se atribuem com prodigalidade que unida ao
carinho e/ou desvelo com que a grande parte da media os olha, descreve e aceita
tem vindo a torná-los nos novos indiscutíveis donos disto tudo. Se não,
como admitir o admirável estatuto familiar /governamental/ político/estatal/ do
sempre ele Carlos César e da restante panóplia de esposos, pais, filhos,
cunhados e afilhados, tios e primos. Gente muito lá da casa.
5. Vieira da Silva?
Espantei-me, como toda a gente. É homem sério e persona grata cá em
casa. Recusei a negligência e a culpa, mas gostaria que ele soubesse que nos
parece haver ainda algumas sombras que gostaríamos que fugissem desta história
(contada aliás sempre para obter os mesmos efeitos). Quanto às gambas e ao
vestido de duzentos e tal euros não me comovem. Só num pais pequenino, invejoso
e rancoroso é que se passam 15 dias a chorar obsessiva e hipocritamente um
pacote de gambas. Já dei para o peditório voyeurístico.
6. É um puro
exercíco de esquizofrenia já transformando num círculo infernal: tudo “foi
culpa do anterior governo”. O PS parecer capturado por si mesmo nesta
demencial cavalgada de acusações. Observe-se o olhar febril de João
Galamba, guest star do
circo acusatório e fica-se com uma certeza: ninguém poder levar aquilo a sério.
Deviam além disso saber duas coisas. Uma: o PSD tem boa memória e não gosta que
lhe pisem os calos.Duas: António Costa vai precisar dele.
OPINIÃO
O futebol português é uma vergonha nacional
Do que estamos a falar é de um sistema muito profissionalmente montado
pelos próprios clubes, que se traduz na produção de insultos, no lançamento de
cortinas de fumo e em ataques bem planeados.
João Miguel Tavares
9 de Dezembro de 2017
Não deixa de ser
tristemente irónico que no preciso momento em que Portugal é campeão europeu de
futebol, Cristiano Ronaldo colecciona Bolas de Ouro e os futebolistas e
treinadores portugueses acumulam por esse mundo fora um prestígio que nunca
tiveram até hoje, o ambiente do futebol em Portugal esteja ao nível mais reles
de que há memória. Os maiores clubes bateram no fundo, e todas as semanas
assistimos a cenas capazes de fazer corar as vendedoras do mercado do Bolhão.
Nunca se viu isto em lugar algum do mundo civilizado, e do incivilizado acho
que também não – temos as três instituições do país com maior capacidade para
mobilizar pessoas e paixões totalmente alheadas das suas responsabilidades
públicas; completamente envolvidas em polémicas rascas, acusações descabeladas
e ofensas gratuitas; e que por sua vez são constantemente alimentadas por
presidentes, por comentadores e por essa cada vez mais patética figura que é o
director de comunicação.
O que é trágico nisto –
e verdadeiramente preocupante – é que não estamos a falar apenas de indivíduos
mais ou menos caricatos, que passeiam o seu admirável talento para a
desconversa e para a desonestidade intelectual pelos canais de televisão. Não. Do
que estamos a falar é de um sistema muito profissionalmente montado pelos
próprios clubes, que se traduz na produção de insultos, no lançamento de
cortinas de fumo e em ataques bem planeados, que envolvem toda a cúpula do
futebol de Benfica, Porto e Sporting. Pedro Guerra – só para
referir o exemplo mais vergonhoso, oriundo do meu próprio clube – poderia ser
apenas uma figura pitoresca e de mau gosto. Mas não: ele é simultaneamente alto
funcionário do Benfica e a suprema pérola que o sistema produziu, tetracampeão
do mais puro e revoltante fanatismo.
Infelizmente, apesar dos
três jornais desportivos diários, dos infinitos programas de desporto e das
generosas páginas dedicadas ao futebol em jornais de referência, faltam boas
explicações para tudo isto. Precisamos de jornalistas capazes de nos
explicar como e porquê chegámos aqui, a um tempo em que o jogo jogado se tornou
uma quase insignificância, e jogadores e treinadores têm cada vez menos
protagonismo, enquanto presidentes, árbitros e comentadores dominam uma fatia
cada vez mais alargada da atenção mediática. Nada disto é inocente – é como se
a queda sucessiva da qualidade das equipas portuguesas e do futebol que
praticam tivesse de ser sobrecompensada com o protagonismo mais descabelado dos
dirigentes e o crescimento das conspirações.
Isto polui todo o
ambiente em que vivemos, afectando a qualidade do nosso espaço público, com
milhões de portugueses inoculados com uma forma totalmente infecciosa de gerir
a dissensão e administrar os conflitos. O futebol envenena tudo,
a começar pela minha própria profissão. Ver jornalistas que em tempos
respeitei, como Francisco J. Marques ou Nuno Saraiva, a desempenhar hoje os
papéis de caceteiros dos seus clubes, transformados subitamente em serviçais do
patrão e com linguagem de peixeira é uma coisa que dá a volta à tripa a quem
valoriza a integridade pessoal e coloca a reputação profissional acima das
paixões futebolísticas. Eu sei que toda esta gritaria ocupa tempo de
antena, vende jornais e dá audiências televisivas. Mas estou profundamente
convencido que, aos poucos, começa a afastar as pessoas decentes do futebol.
Está a acontecer comigo. Está com certeza a acontecer a muitos mais.
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