quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Viveiro


Foi no que se transformou um país de gente de exibição tacanha, quer se trate de um governante grotesco a alardear competências de caricatura, quer se trate de figurões a impor os seus pareceres de fanatismo descortês a plateias de longa data habituadas aos desmandos dos acompanhantes de jogos futebolísticos, “Leões da Estrela” exaltados, embora ainda suficientemente cordatos, aquando da interpretação de artistas do génio de António Silva, mas a perspectivar já estas cenas degradantes, que, por contraste, nos levam aos educados e atentos assistentes de jogos de snooker, noutros espaços terráqueos, é bem certo…
Maria João Avillez trata da figura de um governante desenrascado e sem pejo, João Miguel Tavares mostra a sua indignação de cidadão saturado do terceiro mundismo que cada vez mais nos deslustra, na infâmia da ausência de maneiras educativas, de escarros atirados às faces dos interlocutores e dos que do sofá assistem aos frequentes programas televisivos, mesmo em canais de quem menos se esperariam tais programas entrevistadores. Quanto ao texto de Maria João Avillez, de uma reflexão feita de arte e aprofundamento argumentativo, só me lembra de citar Eça e os seus Gouvarinhos, de uma estultícia mais requintada, todavia, do que a de António Costa, este a sugerir antes o marmeleiro do arrocho, mas igualmente convicto da sua eficácia como guardador de rebanhos:

«O nosso conde falou! disse o velho, ainda com o olho brilhante de entusiasmo. - Falaste? exclamou ela, voltando-se com um interesse encantador. É verdade, falara; e desprevenido! Quando ouvira, porém, o Torres Valente (homem de literatura, mas um doido, sem senso prático) quando o ouvira defender a ginástica obrigatória nos colégios - erguera-se. Mas não imaginasse o amigo Maia, que ele tinha feito um discurso. - Ora essa! exclamou o velho, agitando o lenço. E um dos melhores que eu tenho ouvido na câmara! Dos de arromba! O Conde modestamente protestou. Não: tinha simplesmente lançado uma palavra de bom senso, e de bom princípio. Perguntara apenas ao seu ilustre amigo, o Sr. Torres Valente, se na sua ideia, os nossos filhos, os herdeiros das nossas casas, estavam destinados para palhaços!... - Ah, esta piada, Sr.ª condessa! exclamou o velho. Eu só queria que V. Ex.ª ouvisse esta piada... E como ele a disse! com um chic! O conde sorriu, agradeceu para o lado, ao velho. Sim, dissera-lhe aquilo. E, respondendo a outras reflexões do Torres Valente, que não queria nos liceus, nem nos colégios, um ensino «todo impregnado de catecismo», ele lançara-lhe uma palavra cruel. - Terrível, exclamou o velho num tom cavo, preparando o lenço para se assoar outra vez. - Sim, terrível...  Voltei-me para ele, e disse-lhe isto... «Creia o digno par, que nunca este país retomará o seu lugar à testa da civilização, se, nos liceus, nos colégios, nos estabelecimentos de instrução, nós outros os legisladores formos, com mão ímpia, substituir a cruz pelo trapézio... - Sublime, rosnou o velho, dando um ronco medonho dentro do lenço. Carlos, erguendo-se, declarou aquilo duma ironia adorável. E o conde, quando ele se despediu, não se contentou com um simples aperto de mão, passou-lhe o braço pela cinta, chamou-lhe o seu querido Maia.» («Os Maias”, cap. IX)

Não, não mudámos assim tanto, só que invertemos os valores, talvez por culpa do trapézio, talvez por conta da cruz…

Natal inquieto
0BSERVADOR, 20/12/2017,
O facto de justamente nada, na mente ou na alma, ter vetado a António Costa, na caracterização ou resumo do ano, uma exibição sonora de felicidade, de "saboroso", é que deixou meio país de boca aberta
1. Natal inquieto. Não há aumentos, prendas, movida lisboeta, turismo, turistas, iluminações na Avenida, restaurantes lotados, beautifull people, subsídios de Natal, pontes de Natal que disfarcem os agrestes dias que vivemos. Apenas os anestesiam. Deixando num fugidio entre-parêntesis este indefinível mal-estar que se transformou no pão-nosso das nossas incertas jornadas. A claudicante saúde civilizacional da Europa, torna tudo mais sombrio, A Catalunha é já amanhã e não pode correr bem, o mundo arde, os seus líderes assustam-nos. Onde está o nosso porto de abrigo?
2. António Costa definiu, fora de portas, o ano que finda como «saboroso». Estava obviamente a referir-se a eleição de Centeno. O meu ponto é que não lhe tenha ocorrido que, seja em que circunstâncias for, 2017 proíbe certos adjectivos. O facto de justamente nada, na mente ou na alma, lhe ter vetado, na caracterização ou resumo do ano, uma exibição sonora de felicidade é que deixou meio país de boca aberta. Foram demasiado os mortos, trágico o sofrimento, intensos a perda e o luto. E têm sido tão lenta e descoordenada a reconstituição do regresso à vida – indemnizações, casas, apoios – que a escolha do adjectivo foi quase acintosa.
3. Nos três primeiros trimestres do ano que finda a banca emprestou às famílias uma larga mão cheia de milhões. Não retive quanto, fiquei com o essencial: a verba é bem maior que a “oferecida” durante os 12 meses do ano anterior. Não se alcança a política de crédito dos bancos (ignorando avisos do BdP), mas alcança-se a sua vertigem. Outra vez.
4. Catorze governantes, quatorze, têm vindo a sair do palco do poder pela porta dos fundos. Nenhum — ou quase nenhum — por razões ditas “normais”, antes por falhas mais ou menos sombrias cometidas por eles próprios em relação as áreas que tutelavam. A última demissão (secretário Estado da Saúde), alguém incauto – que o recomendava para o governo? Não precisamos de o conhecer melhor: o país já lhe tirou o retrato e eu ouvi-o com a atenção quanto baste para escrever isto sem tropeçar na minha própria consciência. O presidente do PS considerou os quatorze casos como “periféricos da acção governativa”. Da ética republicana também serão periféricos? Diz o mesmo Carlos César que o que interessa são os “resultados da acção governativa”, o resto é “a espuma dos dias”. Qual resto? Em que nível da “acção governativa” entra um Estado clientelar, esburacado, exangue, incapaz de prever, proteger, cuidar, resolver, fiscalizar? Em que classificação se arruma a Legionella, Tancos (e sim, talvez não fosse só Tancos a recomendar a exoneração do Chefe do Estado Maior General das FA e do Chefe do Estado Maior do Exército); o Infarmed tratado como mercadoria que sem aviso prévio se muda de sítio por razões de propaganda? Pior: em qual prateleira arrumar – na “acção governativa”, na “espuma dos dias” ou na “periferia”? — a vergonhosa entrada da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no capital do Montepio?
Há uma espécie de impunidade que os socialistas se atribuem com prodigalidade que unida ao carinho e/ou desvelo com que a grande parte da media os olha, descreve e aceita tem vindo a torná-los nos novos indiscutíveis donos disto tudo. Se não, como admitir o admirável estatuto familiar /governamental/ político/estatal/ do sempre ele Carlos César e da restante panóplia de esposos, pais, filhos, cunhados e afilhados, tios e primos. Gente muito lá da casa.
5. Vieira da Silva? Espantei-me, como toda a gente. É homem sério e persona grata cá em casa. Recusei a negligência e a culpa, mas gostaria que ele soubesse que nos parece haver ainda algumas sombras que gostaríamos que fugissem desta história (contada aliás sempre para obter os mesmos efeitos). Quanto às gambas e ao vestido de duzentos e tal euros não me comovem. Só num pais pequenino, invejoso e rancoroso é que se passam 15 dias a chorar obsessiva e hipocritamente um pacote de gambas. Já dei para o peditório voyeurístico.
6. É um puro exercíco de esquizofrenia já transformando num círculo infernal: tudo “foi culpa do anterior governo”. O PS parecer capturado por si mesmo nesta demencial cavalgada de acusações. Observe-se o olhar febril de João Galamba, guest star do circo acusatório e fica-se com uma certeza: ninguém poder levar aquilo a sério. Deviam além disso saber duas coisas. Uma: o PSD tem boa memória e não gosta que lhe pisem os calos.Duas: António Costa vai precisar dele.

OPINIÃO
O futebol português é uma vergonha nacional
Do que estamos a falar é de um sistema muito profissionalmente montado pelos próprios clubes, que se traduz na produção de insultos, no lançamento de cortinas de fumo e em ataques bem planeados.
João Miguel Tavares
9 de Dezembro de 2017
Não deixa de ser tristemente irónico que no preciso momento em que Portugal é campeão europeu de futebol, Cristiano Ronaldo colecciona Bolas de Ouro e os futebolistas e treinadores portugueses acumulam por esse mundo fora um prestígio que nunca tiveram até hoje, o ambiente do futebol em Portugal esteja ao nível mais reles de que há memória. Os maiores clubes bateram no fundo, e todas as semanas assistimos a cenas capazes de fazer corar as vendedoras do mercado do Bolhão. Nunca se viu isto em lugar algum do mundo civilizado, e do incivilizado acho que também não – temos as três instituições do país com maior capacidade para mobilizar pessoas e paixões totalmente alheadas das suas responsabilidades públicas; completamente envolvidas em polémicas rascas, acusações descabeladas e ofensas gratuitas; e que por sua vez são constantemente alimentadas por presidentes, por comentadores e por essa cada vez mais patética figura que é o director de comunicação.
O que é trágico nisto – e verdadeiramente preocupante – é que não estamos a falar apenas de indivíduos mais ou menos caricatos, que passeiam o seu admirável talento para a desconversa e para a desonestidade intelectual pelos canais de televisão. Não. Do que estamos a falar é de um sistema muito profissionalmente montado pelos próprios clubes, que se traduz na produção de insultos, no lançamento de cortinas de fumo e em ataques bem planeados, que envolvem toda a cúpula do futebol de Benfica, Porto e Sporting. Pedro Guerra – só para referir o exemplo mais vergonhoso, oriundo do meu próprio clube – poderia ser apenas uma figura pitoresca e de mau gosto. Mas não: ele é simultaneamente alto funcionário do Benfica e a suprema pérola que o sistema produziu, tetracampeão do mais puro e revoltante fanatismo.
Infelizmente, apesar dos três jornais desportivos diários, dos infinitos programas de desporto e das generosas páginas dedicadas ao futebol em jornais de referência, faltam boas explicações para tudo isto. Precisamos de jornalistas capazes de nos explicar como e porquê chegámos aqui, a um tempo em que o jogo jogado se tornou uma quase insignificância, e jogadores e treinadores têm cada vez menos protagonismo, enquanto presidentes, árbitros e comentadores dominam uma fatia cada vez mais alargada da atenção mediática. Nada disto é inocente – é como se a queda sucessiva da qualidade das equipas portuguesas e do futebol que praticam tivesse de ser sobrecompensada com o protagonismo mais descabelado dos dirigentes e o crescimento das conspirações
Isto polui todo o ambiente em que vivemos, afectando a qualidade do nosso espaço público, com milhões de portugueses inoculados com uma forma totalmente infecciosa de gerir a dissensão e administrar os conflitos. O futebol envenena tudo, a começar pela minha própria profissão. Ver jornalistas que em tempos respeitei, como Francisco J. Marques ou Nuno Saraiva, a desempenhar hoje os papéis de caceteiros dos seus clubes, transformados subitamente em serviçais do patrão e com linguagem de peixeira é uma coisa que dá a volta à tripa a quem valoriza a integridade pessoal e coloca a reputação profissional acima das paixões futebolísticas.  Eu sei que toda esta gritaria ocupa tempo de antena, vende jornais e dá audiências televisivas. Mas estou profundamente convencido que, aos poucos, começa a afastar as pessoas decentes do futebol. Está a acontecer comigo. Está com certeza a acontecer a muitos mais.


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