domingo, 24 de dezembro de 2017

Sem luz ao fundo do túnel, o tonel da preferência


Ao texto agressivo, de arremesso sem tréguas e sem preciosismos verbais, de Alberto Gonçalves, responde o politicamente correcto e brilhantemente argumentado de António Barreto. Ambos claros e justos, o de Alberto Gonçalves sobre a linguagem torpe dos comentadores de esquerda, que do alto da sua novel superioridade de ganhadores de batota, refutam as análises da ponderação, num desmancho de impotência verbal, reduzida a apelos de incitamento alvar, sem argumento válido, aconselhando intervenção da farmacopeia para limpeza do estômago, como AG desmascara, ao seu modo aguerrido, de um realismo impiedoso e esclarecidamente irónico sobre a chateza intelectual e a despreocupação de ignorância assim traduzidas. O de António Barreto acentuando a prosápia portuguesa, exaltadora de feitos de aparência valorosa e na realidade reduzidos a indignas mistificações de trapaça e dolo. Um texto, este, ao ritmo compassado do pesquisador eficiente e arguto, que oferece ainda, mais uma bela foto  com um comentário de apreço.


Os portugueses não precisam de Rennie
23/12/2017
Houve um tempo, não muito remoto, em que os broncos disfarçavam. Pelo menos tentavam. Agora os senhores no poder desistiram de mascarar o primitivismo. A brutalidade é servida sem filtros nem vergonha.
É absurdo falar-se em censura do humor. Um deputado chamado João Galamba costuma fazer graçolas alusivas às vítimas dos incêndios e não há quem o impeça. Há dias, a jovem promessa socialista respondeu no Facebook a alguém que discordava da cartilha oficial acerca do tema: “Isso deve ser mesmo difícil de digerir. Olhe, vá à farmácia e compre uns medicamentos para a ansiedade”. Depois de um argumento assim, a sofisticação está garantida, e a conversa pode saltar das “redes sociais” para o Parlamento e as televisões que albergam o portentoso raciocínio do sr. Galamba.
Convém notar que aconselhar a compra de medicamentos para a ansiedade com o objectivo de ajudar à digestão é clinicamente discutível. É também uma ligeira variação das recomendações de Rennie ou Kompensan, populares remédios para a azia e, hoje, popularíssimos instrumentos retóricos. Num estudo superficial, apurei que cerca de 87,3% das críticas às minhas crónicas se resumem a preocupações com a hipotética acidez do meu estômago.
Afirmo que o PS é um refúgio de trapaceiros sem paralelo no hemisfério Norte? Tomo Rennie e, juram-me, isso passa. Opino que o “caso” do Montepio é uma golpada inscrita numa longa tradição de golpadas similares? Ingiro Kompensan que a coisa vai ao sítio. Sugiro que ambos os candidatos à liderança do PSD representam a abdicação da alegada “direita” ao sistema que nos arruína e enxovalha? Dissolvo um Alka-Seltzer e curo-me. Arrisco que a dona Catarina Martins (para quem, aliás, os resmungos da oposição representam a “azia da direita”), em décadas de relativa existência, nunca produziu a sombra de uma ideia sequer discutível? Atafulho-me de Gaviscon e tudo se resolve. Por algum motivo, inúmeros portugueses convenceram-se de que mostrar cuidados com o refluxo gástrico dos restantes constitui uma maneira infalível de encerrar, e vencer, qualquer discussão.
Será conspiração das farmacêuticas? Duvido. Do que tenho a certeza é da eloquência vigente nas classes dirigentes e nos seus acólitos não estar exactamente ao nível de um Lincoln ou de um Disraeli. Mas está, sem tirar nem pôr, ao nível de dois, ou três, Antónios Costa. Ou quatro. Ou cinco. Ou tantos quantos os sujeitos que tomaram conta disto e, entre arrotos e gargalhadas, desceram o debate público aos abismos dos debates de futebol. Não me refiro, evidentemente, aos coitados que soltam atoardas na taberna a pretexto da bola: refiro-me aos furiosos que o taberneiro põe na rua e arranjam poiso na CMTV ou nos gabinetes de “comunicação”. A “azia” omnipresente nas considerações dos maluquinhos dos clubes, grau zero do pensamento e recurso estilístico que um orangotango se embaraçaria de usar, contaminou os maluquinhos dos partidos. No fundo, trata-se de um símbolo da indigência mental em curso e a confissão de que se é bronco e não se disfarça.
Houve um tempo, não muito remoto, em que os broncos disfarçavam. Ou pelo menos tentavam. O “eng.” Sócrates, por exemplo, ainda procurava dissimular as suas extraordinárias deficiências com os tiques que, na inocência dele, julgava próprios das pessoas ilustres: passear cursos (que não frequentou), citar livros (que não leu) e assinar livros (que não escreveu). Agora, os carrocei…, perdão, os senhores no poder desistiram de mascarar o primitivismo. A brutalidade é servida sem filtros nem vergonha. E é por isso que o maior perigo da subjugação do regime à esquerda não é a ameaça à liberdade de expressão: é a ameaça à expressão propriamente dita. E falada. E, Deus os perdoe, escrita.
O problema, porém, não é a franqueza. A franqueza com que essa gente desatou a exibir os seus trágicos limites é apenas um sintoma, sintoma de despreocupação, de arrogância, de impunidade. Já não é necessário simular polimento, ou um vestígio de regras civilizacionais, porque a falta de civilidade deixou de ser escrutinada. Provavelmente, até passou a ser valorizada. Conhecíamos o estilo de ditaduras descaradas, ou de organizações totalitárias como o PCP e BE, onde o estilo é um programa. Percebe-se que dois anos de convívio bastaram para contagiar o PS, enfim livre para cumprir a sua natureza. A “azia” é a versão actualizada do “‘tou-me cagando”, do rudimentar dr. Ferro. Desobrigados, os que se sentem donos do país cruzam as pernas em cima da mesa, puxam do palito, aliviam o cinto e esfregam a barriga: estão à vontade. Mérito deles? Mérito do povo, ou da parte do povo cuja tolerância é imensa e inversamente proporcional à dos respectivos proprietários. A julgar pelas sondagens e pela apatia quase geral, o povo engole a propaganda, os mortos, os bancos, os sindicatos, as raríssimas, os insultos, o desprezo, o nepotismo e o que calha. Infelizmente, não precisa de Rennie.

Sem Emenda
Um paradoxo português
António Barreto
DN, 24/12/17
O paradoxo português actual resume-se em poucas palavras: aconteça o que acontecer, em 2018 ganharemos sempre. Se o governo não durar mais um ano, é uma boa notícia. É sinal de que o PS entende estar à altura de governar em maioria ou de refazer as suas alianças ao centro. Quer dizer que o PCP ou o BE, ou os dois, sentem que assim perdem mais do que ganham e que é preferível tentar o veredicto eleitoral democrático. É sinal de que o PS quer despertar o seu legado democrático e que as aventuras iluminadas vão cessar rapidamente.
Todavia, se o governo durar mais um ano, ou dois, será também boa notícia. Haverá estabilidade e até serenidade, o que, com os comunistas no poder, não é pouca coisa. Será sinal de que a luta das classes e a competição partidária não dão cabo de tudo. Haverá tempo para o PSD se reorganizar; para o PS se reavaliar e repensar; para o PCP saborear um pouco mais as virtudes da democracia; e para o BE decidir entre a praxis democrática e a insurreição permanente. Um ano sem eleições nem demagogia permitirá lamber as feridas dos incêndios, de Tancos e de tantos outros desastres deste último ano tão estranho.
Este paradoxo português não deve assustar ninguém. Estamos há muito habituados. Os portugueses deram ao mundo novos mundos, construíram um império multirracial, mas cá dentro, no continente europeu, no século XX, até aos anos 1970, a sociedade era de uma só cor, de uma só religião, quase só havia brancos.
Em 1974, os portugueses fizeram uma revolução limpa, pacífica, inesquecível, moderna, à frente do mundo e da história e com a mais avançada das constituições. Na verdade, fizeram a última e mais atrasada revolução dos séculos XIX e XX e aprovaram a Constituição mais absurda do seu tempo.
Também nessa altura, levaram a cabo uma descolonização exemplar, cujos modelos, objectivos e processos alegadamente causaram a inveja do mundo. Na verdade, foi a mais desastrada de todas, estando na origem de três guerras civis, durante mais de vinte anos e com centenas de milhares de vítimas.
Mais tarde, Portugal deu novos exemplos ao mundo, a ponto de se ter transformado no melhor aluno da Europa, segundo os dizeres dos dirigentes europeus e portugueses. Mas rapidamente se revelou a desgraça das políticas que levaram a três resgates internacionais em cerca de trinta anos, a uma bancarrota e ao mais elevado endividamento da história.
A verdade é que estamos habituados a paradoxos. Ao de um país moderno e muito bem equipado, na vanguarda da tecnologia e da ciência, com méritos reconhecidos na saúde, na engenharia, na construção, na arquitectura, no vinho e no futebol, mas que combina com o país atrasado na educação, na justiça, nos espaços públicos, nas florestas, nos direitos dos cidadãos, na transparência e na corrupção. Ao de um governo pragmático e racional, com resultados políticos e financeiros visíveis, mas com incapacidade para reagir a tempo e horas, com eficácia e humanidade, a qualquer emergência, dos incêndios aos roubos e ao crime. A de uma administração pública ultramoderna, mas com uma organização parasitária e politicamente enviesada. A de uma Protecção Civil com meios tecnológicos, equipamento, aviões, helicópteros, produtos químicos e veículos de vanguarda, mas com uma coordenação política e humana incompetente e uma desastrada capacidade de organização. A de um sistema judicial moderno, de uma legislação avançada, de processos de grande humanidade e de códigos inovadores, mas também de uma justiça atrasada, ineficiente, desigual e preconceituosa. A de um governo com claro equilíbrio político à esquerda, mas com greves a crescer todos os dias e o regresso iminente da luta das classes e das corporações.
Nada seria particularmente grave se não fosse uma tradição portuguesa: a de responder sempre tardiamente aos grandes problemas. A ditadura, a guerra em África, a revolução, a primeira Constituição, a bancarrota de 2010 e as florestas de sempre estão aí para o demonstrar.

  AS MINHAS FOTOGRAFIAS - ANTÓNIO BARRETO
A Vinha Maria Teresa, da Quinta do Crasto, no Douro. No primeiro plano, quase se vê o rio do mesmo nome, o Doiro, como dizia Miguel Torga e como dizem ainda hoje muitos durienses. A quinta leva talvez cinco séculos a produzir bom vinho. Tem marco pombalino, pois já fez parte da primeira demarcação feita no tempo do marquês de Pombal, em 1756. Fica na margem norte, ou margem direita do rio, entre a Régua e o Pinhão, na freguesia de Gouvinhas, concelho de Sabrosa. Tem apeadeiro de comboio ali perto, o Ferrão. Nesta quinta produzem-se vinhos tintos e brancos de excepcional qualidade, assim como vinhos do Porto. Esta Vinha Maria Teresa, responsável pelos vinhos com o mesmo nome, é de uma beleza inesquecível, pela suave ondulação das vinhas e dos socalcos e pela coexistência de dezenas de castas de uvas que formam uma autêntica vinha velha. Tão inesquecível quanto um copo de vinho tinto com o nome desta senhora.



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