quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Por ser Natal


Dois textos de encanto – o primeiro, de Nuno Pacheco, sobre nova reedição de Amália, em condições acústicas excelentes, além do acesso online a José Afonso; o segundo sobre uma evocação de Óscar Wilde por Miguel Esteves Cardoso, embora condenando a grosseira utilização de um dos seus aforismas, apenas deliciosamente divertidos, num contexto de vileza desvirtuadora descabida – fizeram-nos relembrar tempos passados, de tanto prazer vivido, já então disponível, mas a que o aperfeiçoamento tecnológico indicado, ou a interpretação justa, transmitem uma curiosa satisfação de imortalidade requintada, desses génios artísticos. Dois textos aprazíveis, no meio das sensaborias de tanta traquinice nacional ou outra, que outros articulistas tão bem descrevem, neste Público de 14/12, a deixar um travo doce, no meio das alfinetadas da vida.

OPINIÃO
Amália e José Afonso, duas valiosas heranças
O acesso livre ao acervo documental de José Afonso e a reedição integral das gravações de Amália abrem portas a duas valiosas heranças de Portugal.
Público, 14 de Dezembro de 2017
Primeira boa notícia: o acervo documental de José Afonso, à guarda da associação que tem o seu nome, passa a estar acessível online, “em regime de acesso livre e universal”. Uma conferência de imprensa, ontem, em Setúbal, deu conta do projecto de organização e digitalização do Centro de Documentação José Afonso, projecto viabilizado “graças ao apoio e financiamento por parte da Fundação Gulbenkian.” Um projecto em “permanente evolução”, pois continuará a crescer.
Segunda boa notícia: já está nas lojas o terceiro volume editado este ano do valiosíssimo espólio musical de Amália Rodrigues: Fados 67. Depois de Amália em Itália, A Una Terra Che Amo e do registo dos seus primeiros concertos a solo no Coliseu dos Recreios (Amália, Coliseu, Lisboa, 3 de Abril 1987), surge agora em disco triplo o testemunho das sessões de Amália com o Conjunto de Guitarras de Raul Nery. Mais uma peça na reconstituição da discografia integral de Amália, na qual Frederico Santiago tem vindo a trabalhar com esmero, ano após ano, na Valentim de Carvalho, depois do “tiro de partida” dado por David Ferreira com a reedição de Busto, em 2002.
De José Afonso, no ano em que se assinala o 30.º aniversário da sua morte (23 de Fevereiro de 1987), tivemos sobretudo reedições, homenagens, revisitações em palco ou em disco. Ressurgiu um CD há muito esgotado, Galiza a José Afonso (gravado ao vivo em 1985) e também um livro de que já se perdera o rasto (Escritas do Maio, escrever com José Afonso, de Miguel Gouveia), viram-se as exposições Desta Canção que Apeteço, sobre a obra discográfica de José Afonso, e Geografia de Uma Vida, e ouviram-se inúmeras vozes a recordá-lo, sob o lema (retirado de um poema dele) Insisto não ser tristeza. Patxi Andión, com Zeca no Coração, e Ricardo Ribeiro, com Tributo a Zeca Afonso (aproveitando a Carta Branca que lhe deu o CCB) dedicaram-lhe espectáculos, enquanto outros artistas escolhiam canções suas para integrar discos de repertório mais vasto (Júlio Pereira, Sopa de Pedra, Ela Vaz ou João Braga) ou concertos (como Teresa Salgueiro ou Vitorino). O mais recente tributo à obra de José Afonso veio da área do rock, com A Herança do Andarilho, dos UHF. António Manuel Ribeiro explicou-o assim: “Seria triste e enfadonho imitar a simplicidade de um génio. Por isso, fizemos leituras e revelamos canções importantes para os mais novos ouvirem”. O resultado é o que se adivinha – e recomenda-se.
Há ainda Rosas de Ermera, o comovente filme de Luís Filipe Rocha onde a infância do futuro cantor, ainda o menino Zeca, surge no contexto da saga da sua família, em plena II Guerra.
Voltando a Amália: as gravações que vão surgindo, remasterizadas pelos mais recentes filtros da engenharia sonora (estas últimas vindas dos sábios registos de Hugo Ribeiro para a Valentim), são um portento. Talvez nunca a guitarra de Raul Nery (1921-2012) nos tenha soado assim, tão expressiva e límpida, a par de uma Amália de voz irrepreensível, a arrepiar-nos os sentidos. Diz-se, no libreto do disco: “Amália neste período possui uma igualdade de emissão, um equilíbrio entre ressonâncias altas e de peito, um controlo da respiração, do fraseado, da afinação e da dinâmica, que mesmo numa vocalidade cultivada não é vulgar”. Isto, que assim dito e lido pode parecer muito técnico, ouve-se no disco em todo o seu esplendor. E brilha pela emoção, num conjunto de fados e canções (81 ao todo, nos três discos) que, como bem se diz no citado libreto, é “admirável a vários níveis, seja pela qualidade e quantidade de repertório, seja tecnicamente – foram os primeiros registos de Amália editados em stereo –, seja sobretudo, artisticamente – logo pelo extraordinário acompanhamento.”
A reedição, que se anuncia integral, já soma 11 preciosos títulos: Busto (2002), Com que Voz (2010), Amália no Olympia (2011), Amália no Chiado (2014), Someday (2015), Tivoli 62 (2015), Fado Português (2015), Amália Canta Portugal (2016), Amália em Itália, A Una Terra che Amo (2017), Coliseu,1987(2017) e Fados 67 (2017). Outros virão.
De José Afonso foi também reeditada, com novo tratamento sonoro, a obra gravada para a Orfeu. Mas isso foi há cinco anos e há gravações dispersas que não tiveram idêntica sorte; talvez com o tempo. Em 2018 pode surgir, contudo, uma surpresa: a edição de um concerto que ele deu, com Rui Pato à viola, em Coimbra, em 1968. Será mais uma peça no seu precioso espólio sonoro. Que, tal como o de Amália, é uma das valiosas heranças de Portugal.

Pobre Óscar
Miguel Esteves Cardoso
Público, 14/12/2014
O diálogo é obviamente cómico e aforístico no estilo delicioso de Wilde. Não há ali definições de maldade – só de malandrice, se tanto. A única maldade é citá-lo mal.
1- A maldade sabe esconder-se. Para poder exercer-se com maior eficácia a maldade aprende a disfarçar-se, para mais bem apanhar as vítimas. Um dos aforismos mais citados de Oscar Wilde é: “Como é que você define um homem mau? O tipo de homem que admira a inocência.” Gina Bellafante, escrevendo no NYT sobre a campanha para acrescentar uma legenda a uma pintura de Balthus no Metropolitan Museum of Art, diz que está sempre a lembrar-se de uma frase de Wilde que cita assim: “A bad man is the sort of man who admires innocence.” A frase de Wilde é invocada para falar da pedofilia de Balthus. Mas alterar o que ele escreveu é uma maldade que se faz ao grande aforista, escritor e dramaturgo que Wilde era. Agora já vai tarde, mas não é assim a frase de Wilde. Para a contextualizar (que é o que querem fazer à pintura de Balthus) é preciso citar um diálogo na peça A Woman of No Importance. Mrs Allonby (A) e Lord Illingworth (I) estão a falar de uma mulher de 18 anos que é americana, bonita e puritana.
I: Ela é decididamente bonita. Admiro-a imenso.
A: Que péssimo homem você deve ser! (“What a thoroughly bad man you must be!”)
I: Como é que você define um péssimo homem? (“What do you call a bad man?”)
A: O tipo de homem que admira a inocência.
(“The sort of man who admires innocence.”)
I: E uma péssima mulher? (“And a bad woman?”)

O diálogo é obviamente cómico e aforístico no estilo delicioso de Wilde. Não há ali definições de maldade — só de malandrice, se tanto. A única maldade é citá-lo mal.

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