Dois textos de encanto – o primeiro,
de Nuno Pacheco, sobre nova reedição de Amália, em condições acústicas
excelentes, além do acesso online a José Afonso; o segundo sobre uma
evocação de Óscar Wilde por Miguel Esteves Cardoso, embora
condenando a grosseira utilização de um dos seus aforismas, apenas deliciosamente
divertidos, num contexto de vileza desvirtuadora descabida – fizeram-nos
relembrar tempos passados, de tanto prazer vivido, já então disponível, mas a que
o aperfeiçoamento tecnológico indicado, ou a interpretação justa, transmitem
uma curiosa satisfação de imortalidade requintada, desses génios artísticos. Dois textos aprazíveis,
no meio das sensaborias de tanta traquinice nacional ou outra, que outros
articulistas tão bem descrevem, neste Público de 14/12, a deixar um travo doce,
no meio das alfinetadas da vida.
OPINIÃO
Amália e José Afonso,
duas valiosas heranças
O acesso livre ao acervo
documental de José Afonso e a reedição integral das gravações de Amália abrem
portas a duas valiosas heranças de Portugal.
Público, 14 de Dezembro de 2017
Primeira boa notícia:
o acervo documental de José Afonso, à guarda da associação que tem o seu nome,
passa a estar acessível online,
“em regime de acesso livre e universal”. Uma conferência de imprensa, ontem, em
Setúbal, deu conta do projecto de organização e digitalização do Centro de
Documentação José Afonso, projecto viabilizado “graças ao apoio e financiamento
por parte da Fundação Gulbenkian.” Um projecto em “permanente evolução”, pois
continuará a crescer.
Segunda boa notícia: já está nas lojas o terceiro
volume editado este ano do valiosíssimo espólio musical de Amália Rodrigues: Fados 67. Depois
de Amália em Itália, A Una Terra Che Amo e do registo dos seus
primeiros concertos a solo no Coliseu dos Recreios (Amália, Coliseu, Lisboa, 3
de Abril 1987), surge agora em disco triplo o testemunho das sessões de Amália
com o Conjunto de Guitarras de Raul Nery. Mais uma peça na reconstituição da
discografia integral de Amália, na qual Frederico Santiago tem vindo a
trabalhar com esmero, ano após ano, na Valentim de Carvalho, depois do “tiro de
partida” dado por David Ferreira com a reedição de Busto, em 2002.
De José Afonso, no ano
em que se assinala o 30.º aniversário da sua morte (23 de Fevereiro de
1987), tivemos sobretudo reedições, homenagens, revisitações em palco ou em
disco. Ressurgiu um CD há muito esgotado, Galiza a José
Afonso (gravado ao vivo em 1985) e também um livro de que já se
perdera o rasto (Escritas do Maio, escrever com José Afonso, de Miguel
Gouveia), viram-se as exposições Desta Canção que Apeteço, sobre a obra
discográfica de José Afonso, e Geografia de Uma Vida, e ouviram-se
inúmeras vozes a recordá-lo, sob o lema (retirado de um poema dele) Insisto
não ser tristeza. Patxi Andión, com Zeca no Coração, e Ricardo
Ribeiro, com Tributo a Zeca Afonso (aproveitando a Carta
Branca que lhe deu o CCB) dedicaram-lhe espectáculos, enquanto outros artistas
escolhiam canções suas para integrar discos de repertório mais vasto (Júlio
Pereira, Sopa de Pedra, Ela Vaz ou João Braga) ou concertos (como Teresa
Salgueiro ou Vitorino). O mais recente tributo à obra de José Afonso veio da
área do rock, com A Herança do
Andarilho, dos UHF. António Manuel Ribeiro explicou-o assim: “Seria
triste e enfadonho imitar a simplicidade de um génio. Por isso, fizemos
leituras e revelamos canções importantes para os mais novos ouvirem”. O
resultado é o que se adivinha – e recomenda-se.
Há ainda Rosas de Ermera, o
comovente filme de Luís Filipe Rocha onde a infância do futuro cantor, ainda o
menino Zeca, surge no contexto da saga da sua família, em plena II Guerra.
Voltando a Amália:
as gravações que vão surgindo, remasterizadas pelos mais recentes filtros da
engenharia sonora (estas últimas vindas dos sábios registos de Hugo Ribeiro
para a Valentim), são um portento. Talvez nunca a guitarra de Raul Nery
(1921-2012) nos tenha soado assim, tão expressiva e límpida, a par de uma
Amália de voz irrepreensível, a arrepiar-nos os sentidos. Diz-se, no
libreto do disco: “Amália neste período possui uma igualdade de emissão, um
equilíbrio entre ressonâncias altas e de peito, um controlo da respiração,
do fraseado, da afinação e da dinâmica, que mesmo numa vocalidade cultivada não
é vulgar”. Isto, que assim dito e lido pode parecer muito técnico, ouve-se no
disco em todo o seu esplendor. E brilha pela emoção, num conjunto de fados e
canções (81 ao todo, nos três discos) que, como bem se diz no citado libreto, é
“admirável a vários níveis, seja pela qualidade e quantidade de repertório,
seja tecnicamente – foram os primeiros registos de Amália editados em stereo –,
seja sobretudo, artisticamente – logo pelo extraordinário acompanhamento.”
A reedição, que se anuncia
integral, já soma 11 preciosos títulos: Busto (2002), Com que
Voz (2010), Amália no Olympia (2011), Amália no
Chiado (2014), Someday (2015), Tivoli 62 (2015), Fado
Português (2015), Amália Canta Portugal (2016), Amália em
Itália, A Una Terra che Amo (2017), Coliseu,1987(2017) e Fados
67 (2017). Outros virão.
De José Afonso foi também
reeditada, com novo tratamento sonoro, a obra gravada para a Orfeu. Mas isso
foi há cinco anos e há gravações dispersas que não tiveram idêntica sorte;
talvez com o tempo. Em 2018 pode surgir, contudo, uma surpresa: a edição de
um concerto que ele deu, com Rui Pato à viola, em Coimbra, em 1968. Será mais
uma peça no seu precioso espólio sonoro. Que, tal como o de Amália, é
uma das valiosas heranças de Portugal.
Pobre Óscar
Miguel Esteves Cardoso
Público, 14/12/2014
O diálogo é obviamente cómico e aforístico no estilo delicioso de Wilde.
Não há ali definições de maldade – só de malandrice, se tanto. A única maldade
é citá-lo mal.
1- A maldade sabe esconder-se. Para poder exercer-se com
maior eficácia a maldade aprende a disfarçar-se, para mais bem apanhar as
vítimas. Um dos aforismos mais citados de Oscar Wilde é: “Como é que você
define um homem mau? O tipo de homem que admira a inocência.” Gina
Bellafante, escrevendo no NYT sobre a campanha para acrescentar uma
legenda a uma pintura de Balthus no Metropolitan Museum of Art, diz que está
sempre a lembrar-se de uma frase de Wilde que cita assim: “A bad man is the
sort of man who admires innocence.” A frase de Wilde é invocada para
falar da pedofilia de Balthus. Mas alterar o que ele escreveu é uma maldade que
se faz ao grande aforista, escritor e dramaturgo que Wilde era. Agora já vai
tarde, mas não é assim a frase de Wilde. Para a contextualizar (que é o que
querem fazer à pintura de Balthus) é preciso citar um diálogo na peça A
Woman of No Importance. Mrs Allonby (A) e Lord Illingworth (I) estão a falar de
uma mulher de 18 anos que é americana, bonita e puritana.
I: Ela é decididamente
bonita. Admiro-a imenso.
A: Que péssimo homem você
deve ser! (“What a thoroughly bad man you must be!”)
I: Como é que você define
um péssimo homem? (“What do you call a bad man?”)
A: O tipo de homem que
admira a inocência.
(“The sort of man who
admires innocence.”)
I: E uma péssima mulher? (“And
a bad woman?”)
O diálogo é obviamente
cómico e aforístico no estilo delicioso de Wilde. Não há ali definições de
maldade — só de malandrice, se tanto. A única maldade é citá-lo mal.
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