sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Aldeia nossa


Não global. Nossa. / Aldeia de afectos, de certezas, / Aldeia de espertezas, de vilezas, / Aldeia de competências / Urdindo manigâncias, / Aldeia de pesquisadores / Atentos e observadores, / Tais Bagão Félix, / Tais tantos mais / Artistas, / Articulistas, / Sensíveis e sofredores / Nos desmandos dos comandos / Nas pieguices dos avisos / Desses  repórteres convictos, / Do alto de um púlpito / De trapalhões peregrinos / Num jornalismo sem tino / Com avisos pequeninos / Pequeninos, pobrezinhos, / Aconselhando em doçura / De bondade e de ternura / Bons paizinhos, /Causando vómitos amargos / Em decepção e tortura, / Aos filhinhos, / Tratados como atrasados. / Cada vez mais afastados / Dos Vieiras oradores / Ou dos outros escritores / Que escreviam com nexo / Em requintes de saber / Para gente, afinal, / Mais normal, / Capaz de compreender / Os requintes da retórica / Sem as baboseiras em ais / De jornalistas / Em circulação nos jornais / Como se fosse em quintais. / Os tais / Que Bagão Félix ironiza. / Desgostoso. / Enjoado. / Sensível. / Conhecedor. / Bom ledor. / Um senhor.
Iº Texto: É fartar, camaradagem!
Público, 28 de Dezembro de 2017     António Bagão Félix
Entre o Advento e a Epifania, há festa. Não só na “aldeia”, mas, este ano, também no Parlamento, com os partidos a fazerem de colectivo de Reis Magos, oferecendo-se uns aos outros não mirra, nem incenso, mas generosas e endogâmicas leis.
Para tal, mãos à obra e, de mansinho e caladinhos, em jeito de Consoada plenária, os partidos aprovaram legislação vertida em quase 80 páginas, alterando quatro importantes leis orgânicas relativas ao seu financiamento, contas e controlo.
Partindo da necessidade de alteração processual para acautelar o princípio da separação de poderes sobre o controlo das suas contas e financiamento, os partidos aproveitaram a onda para legislar em proveito próprio, num estilo de desbragadas permutas de favores distintos, mas complementares. Um consenso alargado (embora não unânime, honra seja feita ao CDS) que todos dispensaríamos.
Começo por dizer que abomino a vertigem não democrática e anti-partidária que, nestas ocasiões, incendeia designadamente as redes sociais. Mas, uma coisa é certa: os partidos têm de se dar ao respeito dos portugueses e ser eticamente exemplares, a única forma de terem autoridade democrática. Tal exige transparência de processos, sentido de equidade entre eleitores e eleitos, qualidade da representatividade democrática.
Neste texto, concentro-me apenas nas mudanças do IVA. Os partidos que, há pouco tempo, aprovaram sofregamente mudanças que obrigam os trabalhadores independentes a arranjar facturas e facturinhas sob pena de pagarem mais IRS, são os mesmos que agora se geringonçaram para cozinhar a restituição do IVA pago para toda e qualquer sua despesa e, ao que parece, com efeitos retroactivos. Um café consumido numa qualquer sede partidária, uma refeição no restaurante por conta do partido, o combustível dos automóveis ao serviço seja de quem for e para o que for, etc. são patrioticamente exonerados deste encargo fiscal, quem sabe se por terem uma natureza superior que não têm o café, o almoço ou o combustível de qualquer cidadão contribuinte.
Até percebo como, no actual regime, era complicado, fantasioso e vulnerável à fraude distinguir a devolução do IVA na “aquisição e transmissão de bens e serviços que visem difundir a sua (dos partidos) mensagem política ou identidade própria, através de quaisquer suportes, impressos, audiovisuais ou multimédia” da não devolução no referente à actividade corrente partidária. Mas, vai daí, o que decidiram os parlamentares: a uniformização e maximização do benefício fiscal que passa a incidir sobre a “totalidade de aquisições de bens e serviços para a sua actividade”. Esta situação agrava, ainda, a inconstitucionalidade de tratar desigualmente candidaturas eleitorais apartidárias, a nível presidencial e local, que não têm IVA devolvido.
Ao contrário de qualquer contribuinte, os partidos juntam agora a isenção total do IVA às do IMI e IMT, imposto do selo, imposto automóvel, taxas de justiça e custas judiciais. Aliás eu nunca percebi porque é que quem tem o poder de fixar impostos – o parlamento (no taxation without representation) – tem a prerrogativa de se isentar dos mesmos.
Entretanto, “descoberta” a esperteza, choveram comunicados dos partidos que aprovaram a lei, com o desplante de até dizerem que desta “não resultam quaisquer encargos públicos adicionais para com os partidos políticos”. Então o não recebimento pelo Estado do IVA não tem o mesmo efeito nas contas públicas?! E eis que a esquerda verte lágrimas de crocodilo e proclama ter votado … sem concordar. Poupem-nos a estas tristezas!
A esperança para que tudo não venha a passar de uma tentativa abortada está agora nas mãos do Presidente da República.
2º Texto: A palavra de 2017 (onde falta … turismo)
Público, 5 de Dezembro de 2017           António Bagão Félix
Está a terminar o período da eleição da “palavra do ano”, iniciativa da Porto Editora desde 2009.
As dez palavras escolhidas para este ano foram afecto, cativação, crescimento, desertificação, floresta, gentrificação, incêndios, independentista, peregrino e vencedor. Acho que deveria ter estado na lista uma outra: turismo. Por razões óbvias e que são anteriores à escolha de Portugal, Lisboa e Madeira como os melhores locais de turismo no Mundo.
As palavras seleccionadas são comuns, se exceptuarmos gentrificação. Este vocábulo (mais um neologismo anglo-saxónico) é apresentado como exprimindo um “processo de transformação e valorização imobiliária de uma zona urbana, que acarreta a substituição do tecido socioeconómico existente (geralmente constituído por populações envelhecidas e com pouco poder de compra, comércio tradicional, etc.) por outro mais abastado e sem condutas de pertença ao lugar” (Infopédia, Porto Editora). Sem dúvida, um fenómeno contemporâneo que, em Portugal, é já notório em Lisboa em bairros populares.
Se exceptuarmos afecto que foi constante em 2017 graças à acção do Presidente da República, nota-se, como aliás em todos os anos, uma escolha que recai mais sobre palavras da segunda metade do ano e que desfavorece outros vocábulos com presença e significado mais fortes no seu início, mas que mergulham na sombra do esquecimento. Ainda aqui a lei do tempo e a desvalorização da correnteza da memória.
Das 10 palavras há 4 notoriamente políticas e económicas: cativação, nem sempre cativante (há quem cative sem afecto…); desertificação, dita para aquilo que não é desertificação, mas sim despovoamentocrescimento, que não é necessariamente o mesmo que desenvolvimentoindependentista, a única de pendor internacional. A importância do que se passou por Portugal é dada pela escolha de três palavras que, em boa verdade, são os vértices de um mesmo dramático triângulo (incêndios, desertificação e floresta). A tecnologia não teve, desta vez, o seu habitual quinhão, apesar do endeusamento algo quixotesco da Web Summit (recordo, nos últimos anos, drone, selfie), assim como a saúde ou falta dela (recordo microcefalia, legionela e ébola). Restam uma, de matiz mais religiosa (peregrino) que bem poderia também ter sido Fátima e uma mais mundana (vencedor), associada à vitória portuguesa na Eurovisão. Por falar em vencedor (que me perdoem, os não benfiquistas), falta o, simultaneamente prefixo e nome, tetra.
Ao invés de anos anteriores, as palavras submetidas á votação (exceptuando gentrificação) são velhinhas e simples. Desta vez não há cibervadiagem, gamificação, entroikado, vuvuzela, swap e outras que tais, que qual cometas, tão rapidamente surgiram, como logo se esvaneceram. Como diria Churchill, “palavras breves são as melhores e as palavras velhas, quando breves, são as melhores de todas”.
Ah, claro não podia faltar um vocábulo com grafia acordista. Desta vez, alterando a própria raiz etimológica da palavra. Refiro-me ao absurdo modo de escrever afecto sem c, assim se afastando de affectio (latim), affetto (italiano), affection (francês e até inglês) e afecto (castelhano). Originalidades nossas…
Em que palavra votei? Floresta. O meu palpite para o vencedor? Incêndios. Ou, se calhar, afecto, mesmo que sem c.
P.S. A mesma iniciativa em língua inglesa promovida por Oxford Dictionaries já foi anunciada. Trata-se de youthquake, um neologismo curioso que, partindo de earthquake(terramoto), lhe associa youth (juventude), significando uma “mudança cultural, política ou social desencadeada por acções ou influência de jovens”.

3º Texto - O frio, esse desconhecido
Público, 21 de Dezembro de 2017     António Bagão Félix
Estamos finalmente no Inverno-criança, depois do solstício de ontem, 21 de Dezembro. À míngua de chuva, mostra-se-nos o frio. Relativo, pois dez a catorze graus centígrados em Lisboa a meio do dia é uma incipiente amostra de frio, mesmo por cá. E noutras zonas do país, mais frias, também já não é como há décadas.
O frio não é apenas o contrário do calor, mas também o modo de procurar não o ter. Neste aspecto, o frio é mais meu amigo porque me dá a possibilidade de com ele saber conviver ou de o afastar. Ao contrário do calor, para o qual – insuficiência minha – não sou capaz de encontrar o antídoto eficaz para além do agressivo ar condicionado.
Vem isto tudo a propósito, ou talvez não, da apoplexia meteorológica por causa de uns graus Celsius a menos. Sempre pensei que o frio (e a chuva) fizessem parte dos Invernos, como o calor faz do Verão. Mas agora parece que não. Passou-se para a moda dos “alertas” de várias cores, amarelo, laranja e encarnado, sempre proclamados com voz vibrante. Não há um santo dia que, agora, não se sinalize com um qualquer aviso amarelo, senão mesmo laranja, porque está frio ou vai chover. Não imagino sequer a cor do frio em Moscovo, Berlim ou Toronto, certamente muito para além do mais retinto vermelhão.
Tudo por causa da anormalidade da normalidade. Alertas por haver frio no Inverno são tão despropositados, quanto inúteis. Entrevistam-se respeitáveis técnicos de meteorologia do agora arrebicadamente designado Instituto Português do Mar e da Atmosfera (curioso o Marestar antes da Atmosfera, mesmo que no interior do país!) e guarnece-se a “notícia” com um banal anticiclone ou uma habitual superfície frontal. E, claro está, tudo culmina com pessoas entrevistadas nas ruas, através de perguntas que envergonhariam o Senhor de la Palice e de óbvias respostas.
Toda esta excitação invernal culmina com as declarações dos serviços de saúde, que não param de nos dar conselhos a toda a hora. Fico pasmado, confesso. Não porque os evidentes aconselhamentos não sejam correctos, mas porque, no fim de contas, há um retrocesso ao considerarem-se as pessoas comuns como indigentes ou seres meteorologicamente atrasados.
Vejamos alguns desses doutos avisos, textualmente: 1) proteger-se do frio; 2) vestir várias camadas de roupa quente; 3) agasalhar-se quando se está na rua; 4) manter o corpo quente, através do uso de luvas, cachecol, gorro/chapéu, calçado e roupa quente; 5) tomar bebidas quentes (creio que não alcoólicas); 6) ingerir líquidos e sopas para manter o corpo hidratado; 7) no exterior, ter cuidado com situações de queda; 8) manter as casas quentes; 9) verificar se os equipamentos de aquecimento estão em condições de ser usados; 10) trocar informações e conselhos com amigos e vizinhos e manter-se em contacto com eles; 11) vedar bem as portas e as janelas; 12) em caso de chuva, ter à mão um chapéu-de-chuva e usar calçado adequado… etc., etc.
Não que desconsidere – bem pelo contrário – tudo o que seja a prevenção de doenças. Mas todos estas “achegas” quase partem do princípio que as pessoas são acéfalas e incapazes de se orientar com uns pingos de chuva ou uma temperatura absolutamente normal para a época.
Enfim, conselhos que estão para as pessoas, como as conferências de imprensa antes dos jogos de futebol estão para a inutilidade da palavra.

Mas atenção, caro leitor. Não se esqueça que está no Inverno. À cautela – se for distraído – ponha um alerta no seu telemóvel a dizer-lhe que pode chover e, pior do que isso, que pode fazer frio. E atenção não se esqueça dos cremes para sobreviver (sic) ao frio, como já li algures.

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