Alberto Gonçalves faz o
balanço / Do ano, segundo o seu plano, / Claro, sintético, infernal / Em
liberdade total / De um pensamento sem peias / Sem tréguas ou sem cadeias / Como
nunca se viu / Em Portugal. / Bom representante, afinal, / Do mestre de
antigamente / Que segundo se dizia / Usava a férula valente / Como meio de
alargar / O saber / Nas cabeças dos discípulos / Resistentes, renitentes. / Mas
a férula do articulista / É a férula dum artista / Extremamente analista / Sem
medo de assim o ser, / E de receber de volta, / A par dos dados de apreço, / Outros
de descortesia / De grosseria aviltante / Daqueles que se rebelam / Por não
quererem encaixar / As verdades contundentes / Estridentes / De um realismo
total, / Sobre um país marginal / E as suas gentes / Incompetentes / Com as
excepções do costume. / É pena / Que a férula não nos valha.
2017, ano saboroso
OBSERVADOR, 30/12/2017
Na Autoeuropa já prometeram
outras greves e é certo que não descansarão enquanto os direitos dos
trabalhadores não forem devidamente acautelados e os trabalhadores acabarem na
fila do desemprego.
Janeiro
Embora os pantomineiros
do costume finjam ter visto o povo nas homenagens fúnebres a Mário Soares, a
verdade é que as ditas suscitaram sobretudo indiferença. Os motivos serão
diversos, mas é inegável que o dr. Soares da liberdade e da democracia fora
vítima do dr. Soares antiocidental e “caudilhista” dos últimos anos, longos e
humilhantes. O original falecera há muito, e ninguém o avisou. O povo, pelos
vistos, estava avisado.
Fevereiro
Em países aborrecidos,
as trapalhadas do governo em volta da CGD e do seu novo, e momentâneo,
presidente levariam a demissões sumárias. Aqui, levaram o dr. Centeno a
explicar-se nas televisões. “Explicar-se” é, claro, força de expressão, que os
tremores do homem não deixaram perceber em pleno as frases sem nexo com que
tentou brindar-nos. O prestígio internacional do dr. Centeno talvez tenha
começado nesse instante. Por cá, a oligarquia reduziu a farsa da CGD a
“tricas”, destinadas a esconder os “verdadeiros problemas dos portugueses”. Não
há nada a esconder: por regra, os verdadeiros problemas dos portugueses são as
criaturas que falam nos “verdadeiros problemas dos portugueses”.
Março
O país oficial indignou-se
com a fuga de 10 mil milhões para “off-shores”, uma notícia requentada do
“Público” que, apesar de imaginária ou em última instância irrelevante,
procurava mostrar a vileza do governo de Pedro Passos Coelho. Quase em simultâneo,
o país oficial não se indignou com a Grande Fome ucraniana de 1932-33, cuja
condenação no Parlamento foi rejeitada com a abstenção do PS e a rejeição dos
dois partidos comunistas. Salva-se a coerência “colectivista”, que prefere ver
40 milhões de pessoas sofrerem às mãos do Estado do que permitir que meia dúzia
se livre dele.
Abril
Uma avioneta caiu em
Cascais e foi o pretexto (como se fosse preciso um) para o prof. Marcelo
irromper no local da queda e em todas as reportagens alusivas. Para a TVI, o
prof. Marcelo evitou o pânico. Para o prof. Marcelo, podia ter sido muito pior.
Podia, sim senhor: caso o prof. Marcelo estivesse retido numa sessão de
“selfies” em Valença do Minho, os cascalenses ficariam desorientados e
propensos a lançar-se à Boca do Inferno em quantidades consideráveis. Assim, só
houve cinco mortos, no mínimo motivo de celebrações colectivas. E imensos
afectos.
Maio
Portugal, Portugal em peso,
ganhou o festival da Eurovisão, “certame” de avassalador gabarito. Após décadas
de tentativas, mostrámos enfim que somos os maiores ou, pelo menos, tão bons
quanto os melhores, leia-se o Azerbaijão, a Sérvia, a Estónia, a Letónia, o
Mónaco, o Luxemburgo, a Grécia, a Turquia, etc.
Junho
Incêndios florestais
arrasaram Pedrógão Grande e parte dos concelhos vizinhos. Sempre oportuno, às
primeiras notícias o prof. Marcelo assegurou que fora feito tudo o que era
possível. O dr. Costa, uma ministra macambúzia e um secretário de Estado
disseram coisas ainda mais tranquilizadoras. No final, contaram-se, pelos vistos
por baixo, 64 mortos, o 16º pior evento do género na História e o terceiro
neste século. Para os poderes públicos, foi igual a nada, ou uma dispensável
chatice que os obrigou a trabalhos para apurar quem se queimava (sem
trocadilho) menos com o assunto. Pouco dado a trabalhar, o dr. Costa partiu
para a praia.
Julho
O país viu-se informado de
que desapareceu uma resma de armamento da base militar de Tancos. Mas o
ministro da Defesa fez questão de acrescentar, primeiro, que o roubo não foi
dos maiores de sempre na Europa. Depois, que o roubo se calhar nem aconteceu.
Por fim, que o material roubado apareceu quase impecável. O mal destas notícias
é chegarem a ser notícia. Felizmente, as chefias da Protecção Civil,
rigorosamente escolhidas entre os melhores amigos do dr. Costa, proibiram os
bombeiros de opinar sobre os incêndios. Ao esclarecer que “a informação
devidamente organizada e estruturada é uma mais-valia para todos”, o dr. Costa
exibiu relativa familiaridade com a “teoria da imprensa” de Lenine e maior
familiaridade com o “Público”, o “DN”, a RTP, a TVI e a SIC. Essa história da
liberdade é uma falácia burguesa.
Agosto
A xenofobia é má? Depende.
Se for dedicada àqueles que, nem sei bem porquê, passeiam em férias por este
abençoado país, é altamente recomendada. Em Agosto, os portugueses que, a
julgar pelo Instagram, fazem turismo em praias exóticas ou outros lugares
paradisíacos, não deixam de se sentar ao computador, a lastimar os estrangeiros
que fazem turismo no Porto e em Lisboa, no Douro e nos Algarves. É uma
actividade como qualquer outra, com a vantagem de despertar a atenção dos
poderes centrais, locais e adicionais, todos empenhados em dificultar a entrada
de incautos em Portugal ou, no mínimo, infernizar-lhes a estadia. Sujeito a
incontáveis taxas e taxinhas, para não falar das greves dos transportes, do
preço dos combustíveis e das restantes alegrias da vida lusitana, o turista
fica a perceber o que os guias apenas prometem: a realidade indígena. Fica
também vacinado.
Setembro
Os avanços
civilizacionais continuam. Após o respectivo sindicato ser tomado pelo PCP, os
funcionários da Autoeuropa entraram em greve, coisa nunca vista por ali.
Entretanto, já prometeram outras greves e é certo que não descansarão enquanto
os direitos dos trabalhadores não forem devidamente acautelados e os
trabalhadores acabarem na fila do desemprego. O socialismo não se constrói sem
umas dorzinhas pelo meio – e um sofrimento lancinante no fim. Parece absurdo,
mas é absurdo.
Outubro
Por inúmeras causas, que
inúmeros especialistas descrevem na televisão, metade do país voltou a arder.
Desta vez, a quantidade de mortos não passou dos 45, insignificância que,
somada aos 64 de Junho, serviu para demitir uma ministra. Por este irresponsável
andar, não tarda que 200 cidadãos carbonizados demitam dois ministros, 300
baixas casuais demitam três ministros, 500 ocorrências a lamentar demitam um
terço do governo e 1000 infelicidades provoquem – o diabo seja cego, surdo e
mudo – a demissão do próprio dr. Costa. Não admira que Nádia Piazza, a mulher
que perdeu o filho em Pedrógão Grande e, estranhamente, não ficou radiante,
seja insultada com regularidade por certo PS: os danos colaterais não podem
comprometer a felicidade da pátria.
Novembro
A saída de Pedro Passos
Coelho foi uma alegria e um alívio para a frente de esquerda, para os
comentadores de “direita” que votam no PS e, aparentemente, para a “direita”
propriamente dita. Num ápice, o PSD arranjou dois candidatos à sucessão. Por
coincidência, ambos parecem mais empenhados em demarcar-se do antecessor do que
do dr. Costa. Ninguém quer carregar a fama de “neoliberal”. Mas não seria mau
que, um dia, nos tocasse um bocadinho do proveito.
Dezembro
Em competição renhida com
um luxemburguês, um eslovaco e uma letã, o importantíssimo dr. Centeno alcançou
a importantíssima chefia do importantíssimo Eurogrupo. Numa notícia não
relacionada, a dívida pública manteve-se em níveis impecáveis. Noutra notícia
não relacionada, todos os partidos, excepto o CDS, aprovaram a isenção do IVA
para os seus negócios. Numa terceira notícia igualmente solta, a autarquia
da capital investiu 57 mil euros em cartolinhas para o Ano Novo. Uma última
notícia avulsa: o Ano Novo tresanda a velho.
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