Admiro
em João Miguel Tavares a inteligência crítica e um espírito desempoeirado de
quem repõe as verdades, sem se deixar manobrar por considerandos outros que não
sejam as da sua própria consciência. Também eu lera e transcrevera o texto de
Francisco Assis, mais fixada na sua elegância discursiva, sinónima de elegância
moral, indiferente, pois, àquilo de que discordara, como peça sem importância,
própria de um homem que educadamente defende a honra do seu partido,
incluindo-me no grupo que João Miguel Tavares descreve como “O
pessoal ligeiramente de direita e ligeiramente letrado, como é o meu caso,
gosta de Francisco Assis”. Mas a ousadia de João Miguel Tavares
parece-me bem esclarecida, vindo ao encontro do que penso desse partido
socialista, que, aparentemente instituindo a democracia em Portugal, não deixou
nunca de colher os benefícios dela advindos, desde os primeiros tempos de gozos
poderosos por conta do erário público, depressa esvaziado, em proveito próprio
também. Por isso, embora nobre, o texto de Francisco Assis falseava um tanto a
verdade.
João Miguel Tavares é jovem e
com os pés assentes, cumprindo bem o seu papel de jornalista investigador, que
tem como objectivo a reposição da verdade e da proclamada “transparência”, espirituoso
bastante para dar às suas crónicas um ar simultaneamente travesso e sincero. O
mesmo direi do segundo artigo, sobre os casos de “fofocas” “institucionais”
presentes, onde argumenta bem, em termos de uma seriedade que não verga, ante a
importância dos seus opositores políticos e isso é uma marca de corajosa e aprazível
juventude, a que somos gratos.
OPINIÃO
A honra ofendida de Francisco Assis
José Sócrates continua a
ser o elefante no meio da sala do PS. Sinceramente, esperava de Assis um pouco
mais do que fingir que ele não está lá.
João Miguel Tavares
Público, 21 de Dezembro de 2017
A sequência de
acontecimentos é esta: Catarina Martins deu uma entrevista ao Expresso onde afirmava que o PS era “permeável aos
grandes interesses económicos”, uma frase tão original quanto dizer que a chuva
cai do céu. Supersensível, Francisco Assis declarou-se ofendido, e classificou,
num depoimento à Lusa, as afirmações de Catarina Martins como “lamentáveis”,
“inadmissíveis” e um “ataque ao carácter do PS”, partido que no seu entender
(suster o riso) “sempre colocou o interesse público acima de qualquer interesse
particular”. Não satisfeito, na última quinta-feira regressou ao tema para
fundamentar a sua posição num artigo no PÚBLICO, significativamente intitulado
“A honra do Partido
Socialista”.
O pessoal ligeiramente
de direita e ligeiramente letrado, como é o meu caso, gosta de Francisco Assis.
Se eu escrevesse no seu estilo gongórico, diria que Assis é uma
personalidade assaz densa e complexa, dotada de sólida formação política e
inteiramente desvinculado de qualquer tipo de culto dogmático. Como não
escrevo, declaro apenas que é um homem ponderado, que dá mostras regulares de
pensar pela própria cabeça, e que tem a vantagem de se opor desde o primeiro
dia à actual solução de governo. Pode parecer pouco, mas dentro do PS é muito.
Contudo, para quem tanto
critica os partidos de extrema-esquerda que apoiam o Governo, Francisco Assis
lançou-se no seu texto do PÚBLICO numa reescrita da História digna dos piores
dias estalinistas. Para Assis, a história gloriosa do PS resume-se à figura
fundadora de Mário Soares e à sua luta para impor uma democracia de tipo
ocidental em Portugal. Claro que todos os elogios que se façam ao Soares dos
anos 70 são mais do que justos. Mas convém que tudo aquilo que aconteceu ao PS
nas últimas duas décadas, e sobretudo entre 2005 e 2011, não seja
vergonhosamente eliminado da fotografia.
Convém ainda lembrar que
Francisco Assis, se nunca pertenceu ao núcleo mais próximo de José Sócrates,
foi sempre um dos seus mais destacados defensores, até pela posição que ocupou
enquanto líder parlamentar entre 2009 e 2011. Quando Sócrates perdeu
as eleições para Passos Coelho, foi em redor da candidatura de Assis à
liderança do PS que se reuniram os socratistas mais empedernidos, procurando
evitar a vitória de António José Seguro. Assis conheceu o pior PS demasiado de
perto para vir agora armar-se em virgem ofendida, clamando pela pureza de um
partido que nas últimas duas décadas representou, como nenhum outro, o absoluto
concubinato entre política e grandes interesses económicos.
Se Francisco Assis não
quer escutar Catarina Martins, então que escute a sua camarada Ana Gomes, que
ainda há dias declarou ao Observador: “O PS tem de
fazer uma introspecção sobre como se deixou instrumentalizar por Sócrates”, em
nome de “um projecto pessoal de poder e de enriquecimento”. Este óbvio ululante
não pode ser afirmado apenas por Ana Gomes. Tem de ser assimilado, admitido e
expiado pelo Partido Socialista como um todo, evitando as proclamações
patéticas do grande campeão da democracia portuguesa, como se estivéssemos não
em 2017 mas em 1977.
Sim, é verdade que Assis
admite no seu artigo que “alguns cometeram erros e praticaram actos condenáveis
em nome do PS”. Só que esta contrição é de tal forma comedida que chega a ser
ofensiva. José Sócrates continua a ser o elefante no meio da sala do PS.
Sinceramente, esperava de Francisco Assis um pouco mais do que fingir que ele
não está lá.
Um comentário
évora 21.12.2017
não são nada mais do que
justos: foi nos anos 70 que soares preparou o assalto intermitente ao poder e
ao estado em q a existência predadora do ps se resume e se consume desde então.
Os 'almoços do Aviz' começaram no tempo de sá carneiro e duraram até à
visitação presidiária de animal político a animal feroz (perdoe o meu estilo
irreprimivelmente gongórico). E é exactamente esse tique soarista de burlão
verbal e praticante consumado q agora aflora na fidelidade póstuma de assis: mimetiza
o pior do seu admirado patrono ou modelo, e diz as enormidades imanentes aos
socialistas, das quais, a espaços e a espasmos, por vezes a cabeça arejada de
independente o fazia sair à procura de ar respirável. Era por isso q a maior
parte dos artigos de assis soavam a dirª (a independência crítica de juízo)
OPINIÃO
A culpa é do tesoureiro
João Galamba e Daniel Oliveira demoraram mais anos a perceber quem era
José Sócrates e até agora não reportaram coisa alguma.
João Miguel Tavares
Público, 19 de Dezembro de 2017
O final da semana
passada foi marcado por dois acontecimentos bizarros, e muito típicos de uma
certa indignidade que polui o espaço público português há demasiado tempo: o
ataque aos tesoureiros da Raríssimas e à jornalista Ana Leal por falhas
deontológicas no exercício das suas denúncias; e a sentença do caso Bárbara
Guimarães-Manuel Maria Carrilho, onde a juíza declarou para a posteridade que
uma mulher que se diz independente não apanha do marido sem abandonar o lar e
não anda pelas revistas cor-de-rosa a dizer que se sente feliz quando
colecciona nódoas negras. Esta espécie de moralismo descabelado e
de exigência extrema dirigida aos queixosos e aos denunciantes, considerando
inadmissível que não tenham denunciado melhor e se queixado com mais
competência, mostra duas coisas: 1) uma lastimável compreensão da natureza
humana, e 2) um enorme talento para proteger trafulhas, agressores, corruptos e
ladrões.
Comecemos pelo caso
Raríssimas noticiado pela TVI, mas deixando para próxima oportunidade as
acusações à jornalista Ana Leal por ter violado a vida privada do pobre
secretário de Estado e por não ser capaz de reconhecer o que é “alta-costura”. Prefiro
centrar-me nas acusações aos tesoureiros que deram a cara na reportagem. Segundo
João Galamba e Daniel Oliveira, tais senhores tiveram um comportamento
vergonhoso: fizeram as denúncias com vários anos de atraso e quando já lá não
estavam. Escreve o cronista do Expresso, protegendo de caminho o ministro
Vieira da Silva: “A Assembleia Geral só poderia conhecer esses abusos se o
tesoureiro os reportasse. Esperou seis anos, em que colaborou com a trafulhice,
para o dizer. Não à Assembleia Geral, como era seu dever, mas à TVI.”
Eu diria, só para
começar, que João Galamba e Daniel Oliveira demoraram mais anos a perceber quem
era José Sócrates e até agora ainda não reportaram coisa alguma — e tanto que
teriam para nos contar. Olhar para um caso destes e concluir que o
tesoureiro esteve mal é o mesmo que olhar para a prisão de Totò Riina e
declarar que os arrependidos que o entregaram não deviam ser mafiosos. Quando
Galamba e Oliveira optam por criticar as pessoas que deram a cara para fazer
uma denúncia em vez de criticarem os que nunca viram nada, ou se viram nunca se
atreveram a abrir a boca, estão a escolher o seu campo — o que não chega a ser
surpreendente, mas não deixa de ser triste.
O caso Bárbara-Carrilho é
distinto, na medida em que a presunção de inocência foi feita para os
tribunais: se a juíza achou que não existiam provas inabaláveis para condenar
Carrilho há que respeitar e aguardar pelo recurso. Contudo, certas afirmações
que constam da sentença, como “Bárbara Guimarães é uma mulher destemida e
dona da sua vontade, pelo que não é plausível que na sequência das agressões
tenha continuado com o marido em vez de se proteger a si e aos filhos”, são de
tal forma ignorantes do que é a violência doméstica e a pressão social de uma
figura pública que fazem duvidar da sua sensatez.
O que aqui temos, em
última análise, são dois casos de hiper-moralismo de bancada. Uma juíza que considera,
do cimo do seu púlpito, que a tão independente Bárbara Guimarães não podia
levar nas trombas e calar. E dois políticos comentadores que afirmam, à
forcado, que se o tesoureiro da Raríssimas fosse um verdadeiro macho teria
enfrentado a senhora Paula há muitos anos. Esta gente tem uma de duas coisas:
ou uma enorme coragem ou uma imensa lata. Eu voto na lata.
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