sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Travessuras de J.M.T.


Admiro em João Miguel Tavares a inteligência crítica e um espírito desempoeirado de quem repõe as verdades, sem se deixar manobrar por considerandos outros que não sejam as da sua própria consciência. Também eu lera e transcrevera o texto de Francisco Assis, mais fixada na sua elegância discursiva, sinónima de elegância moral, indiferente, pois, àquilo de que discordara, como peça sem importância, própria de um homem que educadamente defende a honra do seu partido, incluindo-me no grupo que João Miguel Tavares descreve como “O pessoal ligeiramente de direita e ligeiramente letrado, como é o meu caso, gosta de Francisco Assis”. Mas a ousadia de João Miguel Tavares parece-me bem esclarecida, vindo ao encontro do que penso desse partido socialista, que, aparentemente instituindo a democracia em Portugal, não deixou nunca de colher os benefícios dela advindos, desde os primeiros tempos de gozos poderosos por conta do erário público, depressa esvaziado, em proveito próprio também. Por isso, embora nobre, o texto de Francisco Assis falseava um tanto a verdade.
João Miguel Tavares é jovem e com os pés assentes, cumprindo bem o seu papel de jornalista investigador, que tem como objectivo a reposição da verdade e da proclamada “transparência”, espirituoso bastante para dar às suas crónicas um ar simultaneamente travesso e sincero. O mesmo direi do segundo artigo, sobre os casos de “fofocas” “institucionais” presentes, onde argumenta bem, em termos de uma seriedade que não verga, ante a importância dos seus opositores políticos e isso é uma marca de corajosa e aprazível juventude, a que somos gratos.

OPINIÃO
A honra ofendida de Francisco Assis
José Sócrates continua a ser o elefante no meio da sala do PS. Sinceramente, esperava de Assis um pouco mais do que fingir que ele não está lá.
João Miguel Tavares
Público, 21 de Dezembro de 2017

A sequência de acontecimentos é esta: Catarina Martins deu uma entrevista ao Expresso onde afirmava que o PS era “permeável aos grandes interesses económicos”, uma frase tão original quanto dizer que a chuva cai do céu. Supersensível, Francisco Assis declarou-se ofendido, e classificou, num depoimento à Lusa, as afirmações de Catarina Martins como “lamentáveis”, “inadmissíveis” e um “ataque ao carácter do PS”, partido que no seu entender (suster o riso) “sempre colocou o interesse público acima de qualquer interesse particular”. Não satisfeito, na última quinta-feira regressou ao tema para fundamentar a sua posição num artigo no PÚBLICO, significativamente intitulado “A honra do Partido Socialista”.
O pessoal ligeiramente de direita e ligeiramente letrado, como é o meu caso, gosta de Francisco Assis. Se eu escrevesse no seu estilo gongórico, diria que Assis é uma personalidade assaz densa e complexa, dotada de sólida formação política e inteiramente desvinculado de qualquer tipo de culto dogmático. Como não escrevo, declaro apenas que é um homem ponderado, que dá mostras regulares de pensar pela própria cabeça, e que tem a vantagem de se opor desde o primeiro dia à actual solução de governo. Pode parecer pouco, mas dentro do PS é muito.
Contudo, para quem tanto critica os partidos de extrema-esquerda que apoiam o Governo, Francisco Assis lançou-se no seu texto do PÚBLICO numa reescrita da História digna dos piores dias estalinistas. Para Assis, a história gloriosa do PS resume-se à figura fundadora de Mário Soares e à sua luta para impor uma democracia de tipo ocidental em Portugal. Claro que todos os elogios que se façam ao Soares dos anos 70 são mais do que justos. Mas convém que tudo aquilo que aconteceu ao PS nas últimas duas décadas, e sobretudo entre 2005 e 2011, não seja vergonhosamente eliminado da fotografia.
Convém ainda lembrar que Francisco Assis, se nunca pertenceu ao núcleo mais próximo de José Sócrates, foi sempre um dos seus mais destacados defensores, até pela posição que ocupou enquanto líder parlamentar entre 2009 e 2011. Quando Sócrates perdeu as eleições para Passos Coelho, foi em redor da candidatura de Assis à liderança do PS que se reuniram os socratistas mais empedernidos, procurando evitar a vitória de António José Seguro. Assis conheceu o pior PS demasiado de perto para vir agora armar-se em virgem ofendida, clamando pela pureza de um partido que nas últimas duas décadas representou, como nenhum outro, o absoluto concubinato entre política e grandes interesses económicos.
Se Francisco Assis não quer escutar Catarina Martins, então que escute a sua camarada Ana Gomes, que ainda há dias declarou ao Observador: “O PS tem de fazer uma introspecção sobre como se deixou instrumentalizar por Sócrates”, em nome de “um projecto pessoal de poder e de enriquecimento”. Este óbvio ululante não pode ser afirmado apenas por Ana Gomes. Tem de ser assimilado, admitido e expiado pelo Partido Socialista como um todo, evitando as proclamações patéticas do grande campeão da democracia portuguesa, como se estivéssemos não em 2017 mas em 1977.
Sim, é verdade que Assis admite no seu artigo que “alguns cometeram erros e praticaram actos condenáveis em nome do PS”. Só que esta contrição é de tal forma comedida que chega a ser ofensiva. José Sócrates continua a ser o elefante no meio da sala do PS. Sinceramente, esperava de Francisco Assis um pouco mais do que fingir que ele não está lá.

Um comentário
  évora 21.12.2017
não são nada mais do que justos: foi nos anos 70 que soares preparou o assalto intermitente ao poder e ao estado em q a existência predadora do ps se resume e se consume desde então. Os 'almoços do Aviz' começaram no tempo de sá carneiro e duraram até à visitação presidiária de animal político a animal feroz (perdoe o meu estilo irreprimivelmente gongórico). E é exactamente esse tique soarista de burlão verbal e praticante consumado q agora aflora na fidelidade póstuma de assis: mimetiza o pior do seu admirado patrono ou modelo, e diz as enormidades imanentes aos socialistas, das quais, a espaços e a espasmos, por vezes a cabeça arejada de independente o fazia sair à procura de ar respirável. Era por isso q a maior parte dos artigos de assis soavam a dirª (a independência crítica de juízo)

OPINIÃO
A culpa é do tesoureiro
João Galamba e Daniel Oliveira demoraram mais anos a perceber quem era José Sócrates e até agora não reportaram coisa alguma.
João Miguel Tavares
Público, 19 de Dezembro de 2017
O final da semana passada foi marcado por dois acontecimentos bizarros, e muito típicos de uma certa indignidade que polui o espaço público português há demasiado tempo: o ataque aos tesoureiros da Raríssimas e à jornalista Ana Leal por falhas deontológicas no exercício das suas denúncias; e a sentença do caso Bárbara Guimarães-Manuel Maria Carrilho, onde a juíza declarou para a posteridade que uma mulher que se diz independente não apanha do marido sem abandonar o lar e não anda pelas revistas cor-de-rosa a dizer que se sente feliz quando colecciona nódoas negras. Esta espécie de moralismo descabelado e de exigência extrema dirigida aos queixosos e aos denunciantes, considerando inadmissível que não tenham denunciado melhor e se queixado com mais competência, mostra duas coisas: 1) uma lastimável compreensão da natureza humana, e 2) um enorme talento para proteger trafulhas, agressores, corruptos e ladrões.
Comecemos pelo caso Raríssimas noticiado pela TVI, mas deixando para próxima oportunidade as acusações à jornalista Ana Leal por ter violado a vida privada do pobre secretário de Estado e por não ser capaz de reconhecer o que é “alta-costura”. Prefiro centrar-me nas acusações aos tesoureiros que deram a cara na reportagem. Segundo João Galamba e Daniel Oliveira, tais senhores tiveram um comportamento vergonhoso: fizeram as denúncias com vários anos de atraso e quando já lá não estavam. Escreve o cronista do Expresso, protegendo de caminho o ministro Vieira da Silva: “A Assembleia Geral só poderia conhecer esses abusos se o tesoureiro os reportasse. Esperou seis anos, em que colaborou com a trafulhice, para o dizer. Não à Assembleia Geral, como era seu dever, mas à TVI.”
Eu diria, só para começar, que João Galamba e Daniel Oliveira demoraram mais anos a perceber quem era José Sócrates e até agora ainda não reportaram coisa alguma — e tanto que teriam para nos contar. Olhar para um caso destes e concluir que o tesoureiro esteve mal é o mesmo que olhar para a prisão de Totò Riina e declarar que os arrependidos que o entregaram não deviam ser mafiosos. Quando Galamba e Oliveira optam por criticar as pessoas que deram a cara para fazer uma denúncia em vez de criticarem os que nunca viram nada, ou se viram nunca se atreveram a abrir a boca, estão a escolher o seu campo — o que não chega a ser surpreendente, mas não deixa de ser triste.
O caso Bárbara-Carrilho é distinto, na medida em que a presunção de inocência foi feita para os tribunais: se a juíza achou que não existiam provas inabaláveis para condenar Carrilho há que respeitar e aguardar pelo recurso. Contudo, certas afirmações que constam da sentença, como “Bárbara Guimarães é uma mulher destemida e dona da sua vontade, pelo que não é plausível que na sequência das agressões tenha continuado com o marido em vez de se proteger a si e aos filhos”, são de tal forma ignorantes do que é a violência doméstica e a pressão social de uma figura pública que fazem duvidar da sua sensatez.
O que aqui temos, em última análise, são dois casos de hiper-moralismo de bancada. Uma juíza que considera, do cimo do seu púlpito, que a tão independente Bárbara Guimarães não podia levar nas trombas e calar. E dois políticos comentadores que afirmam, à forcado, que se o tesoureiro da Raríssimas fosse um verdadeiro macho teria enfrentado a senhora Paula há muitos anos. Esta gente tem uma de duas coisas: ou uma enorme coragem ou uma imensa lata. Eu voto na lata.



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