Não, não chegámos a
crescer. Nem nunca chegaremos. Já no tempo de Salazar, ouvi justificar, em
Lourenço Marques, que as estradas construídas recentemente, logo se esventravam
às primeiras grandes chuvadas, com grande espanto meu, porque o alcatrão fora
desviado por pessoal destro em desvios de utilização própria. Também ouvi falar
do mestre de obras que nos caminhos de ferro de lá desviava material para
construir as suas casas, e assim enriquecera. Está-nos no sangue. Ou talvez nos
genes. Mas o caso seguinte, tão esclarecedor e tão bem contado – por Maria João
Marques e por Helena
Garrido, no OBSERVADOR, também é de estarrecer, embora já não nos
espante. Não, não se trata de Raríssimos mas de Vulgaríssimos, na
banalização dos desmandos nacionais e na extensão a todas as pseudo classes
sociais. “Sem emenda”, segundo o Dr. António Barreto. A ausência de controlo
pelas chefias mostra bem o fosso em que chafurdamos, apesar das denúncias por
jornalistas corajosos e por mulheres de fibra.
IPSS Raríssimos políticos
Maria João
Marques OBSERVADOR,
13/12/2017
Perante tudo isto, qual
a reação à esquerda? As do costume. João Galamba (palmas para a falta de
originalidade) tentou colocar a culpa em cima do ministro da segurança social
do governo anterior.
A TVI fez uma reportagem
denunciando más práticas várias na Raríssimas. É uma IPSS com trabalho
meritório, e os indícios de desvarios que lá se passaram serão investigados
pelo Ministério Público e pela tutela. Mas este caso também nos permitiu ver
alguns querubins da nossa política que se envolvem com instituições que recebem
dinheiro dos contribuintes. Motivados, claro, apenas pelo mais assolapado amor
pelo próximo.
Temos um secretário de
estado da Saúde (demitiu-se; aleluia) que achou razoável receber três mil euros
mensais, por largos meses, de uma instituição de solidariedade com problemas
financeiros. Por trabalho vago de consultoria. Tirando casos muito particulares
de trabalho a tempo inteiro, bastante especializado e com alto valor de
mercado, que tipo de político considera adequado, num país onde toda a gente
está sempre à míngua de fundos, receber um complemento do ordenado de milhares
de euros de uma IPSS?
Temos a deputada
socialista Sónia Fertuzinhos, mulher do ministro que fornece centenas de milhar
de euros anuais à Raríssimas, sendo escolhida pela dita Raríssimas para uma
alegre viagem a um país nórdico. (É indiferente se foi a IPSS que pagou a
viagem ou se simplesmente escolheu a deputada para beneficiária do presente dos
organizadores do evento.) Como é possível um político eleito não ver conflito
de interesses?
E temos Vieira da Silva,
ministro da segurança social, que dá montantes jeitosos a uma associação que
oferece viagens à sua mulher e da qual já fez parte dos órgãos. Chefiando um
ministério portador de um curioso buraco negro, onde até as cartas que
denunciam atos questionáveis da dita IPSS se desmaterializam. Vieira da Silva,
alma simples, nunca reparou que se pagavam ordenados exorbitantes para uma
IPSS, nem que os carros não eram propriamente modestos, nem que a presidente
tinha tiques megalómanos. Mas não surpreende, já que Vieira da Silva foi dos
que acompanhou Sócrates sem desconfiar dos hábitos pouco consonantes com os
rendimentos que lhe eram conhecidos. Talvez fosse bom começarmos a exigir
políticos menos ingénuos que os que beatificamente acreditaram no conto de
fadas da fortuna da mãe de Sócrates.
Perante tudo isto, qual
a reação à esquerda? As do costume. João Galamba (palmas para a falta de
originalidade) tentou colocar a culpa em cima do ministro da segurança social
do governo anterior. E as claques começaram logo a apontar problemas ao
trabalho jornalístico da TVI. (Em boa verdade, estão muito treinadas:
fizeram-no anos a fio com os trabalhos jornalísticos sobre Sócrates.)
Horror, a jornalista
identificou Sónia Fertuzinhos como casada com Vieira da Silva. Evidentemente é
uma relação relevante neste caso, mas vamos fingir todos que é uma menorização
imperdoável e machista da deputada socialista e concentrar a nossa fúria na
jornalista.
Choque e pavor, a
jornalista disse que um vestido de 200€ era alta costura. De facto, é um erro
clamoroso. Consta que o fantasma de Christian Dior, sedento de vingança, está à
procura da jornalista para a atormentar sete dias e sete noites. Um vestido de
alta costura custa dezenas de milhar de euros e a marca referida na reportagem
nem sequer é prêt- à-porter de luxo. Uma coisa destas desqualifica
logo uma reportagem, não é? Se calhar não, porque num país onde um quinto dos
assalariados ganham o salário mínimo, um vestido haute couture Elie
Saab é tão inacessível como um vestido de duzentos euros. Mas enfim, não vamos
pedir à nossa esquerda que perceba as vicissitudes da vida dos mais pobres,
aqueles que diz representar, pois não?
Já PCP e BE, de caninos afiados,
clamaram contra a existência de instituições como a Raríssimas recebendo
dinheiros dos contribuintes. Afinal o Estado é que devia responder às
necessidades de toda a população, certo? E de caminho enlameia-se todo o setor
social privado, confundindo-o com as manigâncias da Raríssimas. Pois bem, deixo
o meu testemunho. Conheço muita gente que trabalha em IPSS e ONG. É certo que
não são apadrinhadas por políticos, porém nunca vi carros de luxo, nem despesas
de representação, nem spas nem ordenados milionários.
Bom, para não abusar do
tempo dos leitores não vou entrar na discussão ideológica que supõe que uma
máquina pesada como um Estado, orientada para as suas clientelas, tem
capacidade de responder a tudo. Ou, se a tivesse, se deveria.
Lembro apenas que a
esquerda – que quer o Estado com monopólio de atividades que podem ser
desempenhadas por instituições privadas, eventualmente com subsídios públicos
(mediante fiscalização, claro) – votou, aquando da discussão do orçamento para
2018, contra a proposta do CDS de alargar de três para cinco os
ciclos de procriação medicamente assistida no SNS para casais
inférteis. Apesar de proclamar adorar a medida e de o aumento de ciclos de
tratamento exponenciar o sucesso da PMA.
A esquerda toda – que
depois do fim da austeridade (dizem-nos) se recusa a pagar atos médicos
fulcrais para cerca de 300.000 casais, tão caros que pouquíssimos os poderão
pagar nas clínicas privadas (para a esquerda perceber: só aqueles que sabem
como reconhecer uma carteira Botega Venetta), num país com uma taxa de
natalidade calamitosamente baixa – diz com desfaçatez que o estado pode
suportar na totalidade todas as respostas sociais.
A falta de noção e de
adesão à realidade é tanta na nossa esquerda que eu começo a suspeitar que a
ideologia socialista se deve a perfis de química cerebral que produzem
naturalmente substâncias alucinogénias. Os neurologistas que estudem isto. Isto
e as desmaterializações no ministério da segurança social.
Raríssimas, uma história de subdesenvolvimento
Helena
Garrido Observador
14/12/2017
Num país desenvolvido as
instituições teriam funcionado e a Casa dos Marcos teria sido fiscalizada.
Nenhum país enriquece sendo como vimos que Portugal é no caso Raríssimas.
Enriquecem algumas pessoas
É impossível evitar o
tema. Pelo que expôs em todas as suas vertentes. O nosso atraso económico não
está na legislação laboral, na elevada tributação ou na burocracia. Está na
ausência de instituições fortes, na falta de educação e na ausência de valores.
O caso da Raríssimas mostrou-nos um lado de Portugal que nos agonia, pela
total ausência de valores, pela imoralidade sem consciência com que se explora
o dinheiro do Estado, de voluntários e de doadores privados. É aqui que está a
raiz do nosso subdesenvolvimento. Em vários dos terríveis acontecimentos que
enfrentámos este ano e que culminaram com um projecto que se baseia num
dos nossos mais altruístas valores, a solidariedade.
A TVI e a jornalista Ana
Leal estão de parabéns assim como quem teve a coragem de denunciar a situação.
São duas as reportagens que quem não viu deve ver sobre o caso da
Raríssimas, a primeira “Para onde vai o dinheiro que a
Raríssimas recebe” e a segunda, a entrevista ao ex-secretário de
Estado da Saúde que acabou por conduzir à demissão que estava a
evitar.
A primeira grande lição
é que a reportagem nunca aconteceria se as instituições tivessem funcionado. Se
a primeira carta não tivesse desaparecido, se o ministro Vieira da Silva
tivesse actuado conforme é sua obrigação logo no Verão, uma segunda
oportunidade que foi ignorada. E a entrevista, que nos faz corar por
vergonha alheia, nunca teria acontecido se o sentimento de impunidade não fosse
tão significativo ou se a inconsciência ética e moral não estivesse tão ausente
dos horizontes de uma personalidade que chegou ao governo do País.
O não funcionamento das
instituições a que foram dirigidas as queixas é, talvez, a mais grave revelação
implícita do “caso Raríssimas”. Um cidadão consciente usa as ferramentas que
tem ao seu dispor para denunciar “irregularidades” e vê as suas denuncias
ignoradas. E depois de protagonizar as denuncias na TVI ainda ouve o ministro
Vieira da Silva, que era suposto ter dado sequência às suas cartas, agarrar-se
a questões de semântica: ninguém lhe disse que havia “gestão danosa”, só leu
“irregularidades”. Assistiu-se ao vivo e em directo à validação da
conversa de café que todos nós, com consciência da importância das instituições
e dos políticos, tentamos combater: “estão todos feitos uns com os outros”.
Nunca um país se poderá
desenvolver se as instituições funcionarem assim, controladas pelos interesses
de um grupo de pessoas, que são supostas pertencerem à elite do país, e que
afinal usam os recursos dos seus concidadãos pagos por via dos impostos ou por
solidariedade como se fossem seus e para satisfazerem os seus deslumbramentos.
Não é surpreendente,
dirão alguns. Não seria de facto de estranhar depois do que vimos neste
terrível ano de 2017 nos incêndios, no roubo em Tancos, na mensagem da aluna
que identificava a sua explicadora como tendo tido acesso aos exames e nos
secretários de Estado que consideram normal irem assistir a um jogo de futebol
pago por uma empresa que tem negócios dependentes das suas decisões. Mas é de
ficar (ainda) incrédula porque estas denúncias nos mostraram as fronteiras que
já foram quebradas, o nível baixo a que já se chegou.
Paula Brito e
Costa, como se pode ler neste perfil, merece ser
elogiada pelo que construiu. A partir de determinada altura a obra
ultrapassou-a e ela não foi capaz de aguentar os desafios éticos e morais
que se lhe colocaram. Num país desenvolvido, Paula nunca teria caído na
tentação de usar a instituição e de manipular o regime em proveito próprio. As
instituições não o teriam permitido nem existiriam elites para tanta
promiscuidade.
Depois do que soubemos,
o pior que podemos fazer é colocar todas as instituições de solidariedade social
sob suspeita e, pior ainda, deixar cair o projecto da Rarísssimas. Mas
precisamos urgentemente de distinguir as que funcionam focadas nos seus
objectivos das que são usadas para proveito próprio. Como fazer isso?
Teoricamente devia ser o Estado a garantir isso, através de inspecções da
Segurança Social. Aliás, num país desenvolvido, no dia seguinte, logo pela
manhã de segunda-feira, deveriam ter estado à porta da Casa dos Marcos os
inspectores que chegaram na quarta-feira, sem esperarem
por qualquer orientação de um ministro.
Um país não se pode
desenvolver enquanto as suas instituições não forem fortes. Nenhum país se
desenvolve dependendo apenas da coragem de quem põe em risco a sua vida pessoal
e profissional, para aparecer a denunciar o que o Estado não quis fiscalizar,
ou da força e coragem de jornalistas e órgãos de comunicação social. Os bons
não podem ficar em silêncio, mas sem instituições nunca conseguirão vencer a
corrupção.
Um dos piores males que
se fez foi a partidarização da administração pública. Todas as soluções,
de concursos a entidades reguladores independentes, têm-se revelado incapazes
de resolver esse problema. Os governos chegam, instalam os seus “boys e girls”
e uma nova era começa a reina no aparelho do Estado, frequentemente igual à
anterior, mas com amigos novos. Quem se mantiver independente e tiver a
desfaçatez de discordar em público será dispensado assim que houver
oportunidade ou queimado em praça pública. Como as instituições já estão
fracas, nada resiste a esta investida dos interesses.
A crise financeira de
2011 foi uma oportunidade perdida para mudar este estado das coisas que nos
condena ao subdesenvolvimento. É neste ponto que estamos, um pouco sem
esperança de ver Portugal reconstruir as instituições fortes de que precisa.
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