quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Os terrenos baldios da nossa indigência


Não, não chegámos a crescer. Nem nunca chegaremos. Já no tempo de Salazar, ouvi justificar, em Lourenço Marques, que as estradas construídas recentemente, logo se esventravam às primeiras grandes chuvadas, com grande espanto meu, porque o alcatrão fora desviado por pessoal destro em desvios de utilização própria. Também ouvi falar do mestre de obras que nos caminhos de ferro de lá desviava material para construir as suas casas, e assim enriquecera. Está-nos no sangue. Ou talvez nos genes. Mas o caso seguinte, tão esclarecedor e tão bem contado – por Maria João Marques e por Helena Garrido, no OBSERVADOR, também é de estarrecer, embora já não nos espante. Não, não se trata de Raríssimos mas de Vulgaríssimos, na banalização dos desmandos nacionais e na extensão a todas as pseudo classes sociais. “Sem emenda”, segundo o Dr. António Barreto. A ausência de controlo pelas chefias mostra bem o fosso em que chafurdamos, apesar das denúncias por jornalistas corajosos e por mulheres de fibra.
IPSS                         Raríssimos políticos
Maria João Marques              OBSERVADOR, 13/12/2017
Perante tudo isto, qual a reação à esquerda? As do costume. João Galamba (palmas para a falta de originalidade) tentou colocar a culpa em cima do ministro da segurança social do governo anterior.
A TVI fez uma reportagem denunciando más práticas várias na Raríssimas. É uma IPSS com trabalho meritório, e os indícios de desvarios que lá se passaram serão investigados pelo Ministério Público e pela tutela. Mas este caso também nos permitiu ver alguns querubins da nossa política que se envolvem com instituições que recebem dinheiro dos contribuintes. Motivados, claro, apenas pelo mais assolapado amor pelo próximo.
Temos um secretário de estado da Saúde (demitiu-se; aleluia) que achou razoável receber três mil euros mensais, por largos meses, de uma instituição de solidariedade com problemas financeiros. Por trabalho vago de consultoria. Tirando casos muito particulares de trabalho a tempo inteiro, bastante especializado e com alto valor de mercado, que tipo de político considera adequado, num país onde toda a gente está sempre à míngua de fundos, receber um complemento do ordenado de milhares de euros de uma IPSS?
Temos a deputada socialista Sónia Fertuzinhos, mulher do ministro que fornece centenas de milhar de euros anuais à Raríssimas, sendo escolhida pela dita Raríssimas para uma alegre viagem a um país nórdico. (É indiferente se foi a IPSS que pagou a viagem ou se simplesmente escolheu a deputada para beneficiária do presente dos organizadores do evento.) Como é possível um político eleito não ver conflito de interesses?
E temos Vieira da Silva, ministro da segurança social, que dá montantes jeitosos a uma associação que oferece viagens à sua mulher e da qual já fez parte dos órgãos. Chefiando um ministério portador de um curioso buraco negro, onde até as cartas que denunciam atos questionáveis da dita IPSS se desmaterializam. Vieira da Silva, alma simples, nunca reparou que se pagavam ordenados exorbitantes para uma IPSS, nem que os carros não eram propriamente modestos, nem que a presidente tinha tiques megalómanos. Mas não surpreende, já que Vieira da Silva foi dos que acompanhou Sócrates sem desconfiar dos hábitos pouco consonantes com os rendimentos que lhe eram conhecidos. Talvez fosse bom começarmos a exigir políticos menos ingénuos que os que beatificamente acreditaram no conto de fadas da fortuna da mãe de Sócrates.
Perante tudo isto, qual a reação à esquerda? As do costume. João Galamba (palmas para a falta de originalidade) tentou colocar a culpa em cima do ministro da segurança social do governo anterior. E as claques começaram logo a apontar problemas ao trabalho jornalístico da TVI. (Em boa verdade, estão muito treinadas: fizeram-no anos a fio com os trabalhos jornalísticos sobre Sócrates.)
Horror, a jornalista identificou Sónia Fertuzinhos como casada com Vieira da Silva. Evidentemente é uma relação relevante neste caso, mas vamos fingir todos que é uma menorização imperdoável e machista da deputada socialista e concentrar a nossa fúria na jornalista.
Choque e pavor, a jornalista disse que um vestido de 200€ era alta costura. De facto, é um erro clamoroso. Consta que o fantasma de Christian Dior, sedento de vingança, está à procura da jornalista para a atormentar sete dias e sete noites. Um vestido de alta costura custa dezenas de milhar de euros e a marca referida na reportagem nem sequer é prêt- à-porter de luxo. Uma coisa destas desqualifica logo uma reportagem, não é? Se calhar não, porque num país onde um quinto dos assalariados ganham o salário mínimo, um vestido haute couture Elie Saab é tão inacessível como um vestido de duzentos euros. Mas enfim, não vamos pedir à nossa esquerda que perceba as vicissitudes da vida dos mais pobres, aqueles que diz representar, pois não?
Já PCP e BE, de caninos afiados, clamaram contra a existência de instituições como a Raríssimas recebendo dinheiros dos contribuintes. Afinal o Estado é que devia responder às necessidades de toda a população, certo? E de caminho enlameia-se todo o setor social privado, confundindo-o com as manigâncias da Raríssimas. Pois bem, deixo o meu testemunho. Conheço muita gente que trabalha em IPSS e ONG. É certo que não são apadrinhadas por políticos, porém nunca vi carros de luxo, nem despesas de representação, nem spas nem ordenados milionários.
Bom, para não abusar do tempo dos leitores não vou entrar na discussão ideológica que supõe que uma máquina pesada como um Estado, orientada para as suas clientelas, tem capacidade de responder a tudo. Ou, se a tivesse, se deveria.
Lembro apenas que a esquerda – que quer o Estado com monopólio de atividades que podem ser desempenhadas por instituições privadas, eventualmente com subsídios públicos (mediante fiscalização, claro) – votou, aquando da discussão do orçamento para 2018, contra a proposta do CDS de alargar de três para cinco os ciclos de procriação medicamente assistida no SNS para casais inférteis. Apesar de proclamar adorar a medida e de o aumento de ciclos de tratamento exponenciar o sucesso da PMA.
A esquerda toda – que depois do fim da austeridade (dizem-nos) se recusa a pagar atos médicos fulcrais para cerca de 300.000 casais, tão caros que pouquíssimos os poderão pagar nas clínicas privadas (para a esquerda perceber: só aqueles que sabem como reconhecer uma carteira Botega Venetta), num país com uma taxa de natalidade calamitosamente baixa – diz com desfaçatez que o estado pode suportar na totalidade todas as respostas sociais.
A falta de noção e de adesão à realidade é tanta na nossa esquerda que eu começo a suspeitar que a ideologia socialista se deve a perfis de química cerebral que produzem naturalmente substâncias alucinogénias. Os neurologistas que estudem isto. Isto e as desmaterializações no ministério da segurança social.
Raríssimas, uma história de subdesenvolvimento
Helena Garrido              Observador 14/12/2017
Num país desenvolvido as instituições teriam funcionado e a Casa dos Marcos teria sido fiscalizada. Nenhum país enriquece sendo como vimos que Portugal é no caso Raríssimas. Enriquecem algumas pessoas
É impossível evitar o tema. Pelo que expôs em todas as suas vertentes. O nosso atraso económico não está na legislação laboral, na elevada tributação ou na burocracia. Está na ausência de instituições fortes, na falta de educação e na ausência de valores. O caso da Raríssimas mostrou-nos um lado de Portugal que nos agonia, pela total ausência de valores, pela imoralidade sem consciência com que se explora o dinheiro do Estado, de voluntários e de doadores privados. É aqui que está a raiz do nosso subdesenvolvimento. Em vários dos terríveis acontecimentos que enfrentámos este ano e que culminaram com um projecto que se baseia num dos nossos mais altruístas valores, a solidariedade.
A TVI e a jornalista Ana Leal estão de parabéns assim como quem teve a coragem de denunciar a situação. São duas as reportagens que quem não viu deve ver sobre o caso da Raríssimas, a primeira “Para onde vai o dinheiro que a Raríssimas recebe” e a segunda, a entrevista ao ex-secretário de Estado da Saúde que acabou por conduzir à demissão que estava a evitar.
A primeira grande lição é que a reportagem nunca aconteceria se as instituições tivessem funcionado. Se a primeira carta não tivesse desaparecido, se o ministro Vieira da Silva tivesse actuado conforme é sua obrigação logo no Verão, uma segunda oportunidade que foi ignorada. E a entrevista, que nos faz corar por vergonha alheia, nunca teria acontecido se o sentimento de impunidade não fosse tão significativo ou se a inconsciência ética e moral não estivesse tão ausente dos horizontes de uma personalidade que chegou ao governo do País.
O não funcionamento das instituições a que foram dirigidas as queixas é, talvez, a mais grave revelação implícita do “caso Raríssimas”. Um cidadão consciente usa as ferramentas que tem ao seu dispor para denunciar “irregularidades” e vê as suas denuncias ignoradas. E depois de protagonizar as denuncias na TVI ainda ouve o ministro Vieira da Silva, que era suposto ter dado sequência às suas cartas, agarrar-se a questões de semântica: ninguém lhe disse que havia “gestão danosa”, só leu “irregularidades”. Assistiu-se ao vivo e em directo à validação da conversa de café que todos nós, com consciência da importância das instituições e dos políticos, tentamos combater: “estão todos feitos uns com os outros”.
Nunca um país se poderá desenvolver se as instituições funcionarem assim, controladas pelos interesses de um grupo de pessoas, que são supostas pertencerem à elite do país, e que afinal usam os recursos dos seus concidadãos pagos por via dos impostos ou por solidariedade como se fossem seus e para satisfazerem os seus deslumbramentos.
Não é surpreendente, dirão alguns. Não seria de facto de estranhar depois do que vimos neste terrível ano de 2017 nos incêndios, no roubo em Tancos, na mensagem da aluna que identificava a sua explicadora como tendo tido acesso aos exames e nos secretários de Estado que consideram normal irem assistir a um jogo de futebol pago por uma empresa que tem negócios dependentes das suas decisões. Mas é de ficar (ainda) incrédula porque estas denúncias nos mostraram as fronteiras que já foram quebradas, o nível baixo a que já se chegou.
Paula Brito e Costa, como se pode ler neste perfil, merece ser elogiada pelo que construiu. A partir de determinada altura a obra ultrapassou-a e ela não foi capaz de aguentar os desafios éticos e morais que se lhe colocaram. Num país desenvolvido, Paula nunca teria caído na tentação de usar a instituição e de manipular o regime em proveito próprio. As instituições não o teriam permitido nem existiriam elites para tanta promiscuidade.
Depois do que soubemos, o pior que podemos fazer é colocar todas as instituições de solidariedade social sob suspeita e, pior ainda, deixar cair o projecto da Rarísssimas. Mas precisamos urgentemente de distinguir as que funcionam focadas nos seus objectivos das que são usadas para proveito próprio. Como fazer isso? Teoricamente devia ser o Estado a garantir isso, através de inspecções da Segurança Social. Aliás, num país desenvolvido, no dia seguinte, logo pela manhã de segunda-feira, deveriam ter estado à porta da Casa dos Marcos os inspectores que chegaram na quarta-feira, sem esperarem por qualquer orientação de um ministro.
Um país não se pode desenvolver enquanto as suas instituições não forem fortes. Nenhum país se desenvolve dependendo apenas da coragem de quem põe em risco a sua vida pessoal e profissional, para aparecer a denunciar o que o Estado não quis fiscalizar, ou da força e coragem de jornalistas e órgãos de comunicação social. Os bons não podem ficar em silêncio, mas sem instituições nunca conseguirão vencer a corrupção.
Um dos piores males que se fez foi a partidarização da administração pública. Todas as soluções, de concursos a entidades reguladores independentes, têm-se revelado incapazes de resolver esse problema. Os governos chegam, instalam os seus “boys e girls” e uma nova era começa a reina no aparelho do Estado, frequentemente igual à anterior, mas com amigos novos. Quem se mantiver independente e tiver a desfaçatez de discordar em público será dispensado assim que houver oportunidade ou queimado em praça pública. Como as instituições já estão fracas, nada resiste a esta investida dos interesses.

A crise financeira de 2011 foi uma oportunidade perdida para mudar este estado das coisas que nos condena ao subdesenvolvimento. É neste ponto que estamos, um pouco sem esperança de ver Portugal reconstruir as instituições fortes de que precisa.

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