Revivendo a história antiga, receando a
história moderna, que vai passando longe até ver…
ANÁLISE
A Europa e a Grécia face à chantagem da
Turquia e à crise humanitária
Este caso mostra cruamente os limites do
soft power europeu para resolver problemas estratégicos, de segurança e
humanitários nas suas fronteiras.
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES
PÚBLICO, 4 de Março de 2020
1.É
um dos casos mais interessantes e paradoxais da cultura e geopolítica
contemporâneas. A Europa da União Europeia adora a Grécia da Antiguidade,
mas aprecia pouco a Grécia Moderna. A primeira — a Grécia da Antiguidade
— é suficientemente distante na história para ser idealizada e idolatrada. A segunda — a Grécia Moderna — é tão próxima e tão
repleta de problemas económicos (crise económico-financeira) e políticos
(crises políticas, crise dos refugiados) que usualmente é olhada com suspeita e
incomodidade.
A Europa da União Europeia, que se
construiu após a II Guerra Mundial, pretende ter raízes na Grécia da Antiguidade
Clássica. A mitologia grega foi útil para isso. A União
Europeia e o europeísmo que gravita à sua volta vêem-se como absorvendo esse
passado, como herdeiros deste. O
mito da deusa Europa é assim útil para a União Europeia de hoje se
legitimar. Entre outras coisas, sugere
uma ideia de Europa e de europeísmo que existiria desde a Antiguidade.
Múltiplos livros dedicam mais ou menos tempo a esse passado procurando mostrar
as raízes culturais comuns e a naturalidade da (re)construção europeia de hoje. Hoje a Grécia está novamente no centro das atenções, não por questões
culturais, mas devido à guerra na Síria e à chantagem da Turquia, que está a
usar os migrantes/refugiados como ‘arma de arremesso’. Mas é necessário olhar primeiro com mais detalhe
histórico para a relação da Grécia (e da Turquia) com a Europa para
compreendermos a actual crise na sua profundidade e múltiplas ramificações.
2.Para
além da mitologia da Grécia da Antiguidade, a qual impregna inquestionavelmente
a cultura europeia na literatura, na pintura, na arquitectura, na psicanálise,
etc., há uma dimensão geográfico-política desse passado com
repercussões de relevo no mundo de hoje. Importa
lembrar que o termo Europa foi também usado na Antiguidade para designar um
continente — categoria geográfica que também devemos aos gregos antigos. Para
estes, a Europa abrangia os territórios helénicos situados na margem esquerda
do mar Egeu, a Ocidente do Bósforo, por oposição à terra, ou continente,
situado a Oriente, designado por Ásia.
Mas
esse legado geográfico-político é problemático, por várias razões que serão
evidenciadas em seguida. Para além disso, há entre a Grécia da Antiguidade e a
Grécia Moderna um enorme hiato, tal como entre a Europa do mundo antigo e a
Europa de hoje. Esse
enorme hiato histórico engloba três acontecimentos fundamentais que dão uma identidade diferenciada à Grécia de hoje,
ainda que sob formas por vezes subtis e não imediatamente perceptíveis. A longa persistência do Império Romano do
Oriente; a especificidade do Cristianismo
oriental em fractura profunda com o ocidental a partir do século XI; e, com
mais implicações ainda, a pertença da Grécia ao Império Otomano, desde finais
dos séculos XIV/XV até aos séculos XIX/inícios do século XX, consoante as
partes do território consideradas.
3.O
actual mapa político da Europa entronca nas realidades que existiam no século
XIX e se transformaram pelos acontecimentos da I Guerra Mundial
(fundamentalmente) e também pela II Guerra Mundial (menos). Teve uma última
modificação de relevo com o final da Guerra-Fria e a desagregação da União
Soviética. Mas no
caso da Grécia e da Turquia, as transformações fundamentais ocorreram durante o
século XIX e inícios do século XX. No século XIX esses territórios eram o
Próximo Oriente, não Europa. A ambiguidade
cultural e política que se
transferiu para a União Europeia começa aqui. Em termos culturais a Grécia
era Europa, pois esta era percebida como tendo as suas raízes na Grécia
clássica. Mas em termos culturais e políticos a percepção era outra. Era vista
como Próximo Oriente, tal como a Turquia. A representação dominante pelos
europeus dessa época era a de que o exotismo e o despotismo do Oriente
começavam aí.
Mas
no caso da Grécia e da Turquia, as transformações fundamentais ocorreram
durante o século XIX e inícios do século XX. No século XIX esses territórios
eram o Próximo Oriente, não Europa. A ambiguidade cultural e política que se
transferiu para a União Europeia começa aqui.
A ambiguidade está bem presente na
formação da Grécia moderna e na sua luta pela independência contra o Império
Otomano. Se dispunha
de grande simpatia cultural no Ocidente europeu — onde era imaginada
romanticamente em continuidade com a Grécia clássica — gerava
animosidade política pela sua conexão com a Rússia, pela via do Cristianismo
Ortodoxo. Uma Grécia independente, tal como a Sérvia ou a Bulgária, dava aos
russos possibilidades de expansão da sua influência para os Balcãs e o
Mediterrâneo Oriental.
Nada
exemplifica melhor a contradição entre o cultural e o geopolítico do que a
atitude pró-helénica de George Gordon Byron, o notável poeta romântico e a posição antagónica do
governo britânico. O
primeiro foi um dos apoiantes guerra da independência da Grécia contra o
Império Otomano nos anos 1820, protagonizando um sentimento que existia em
grande parte da Europa culta. O
segundo, o governo britânico, não era nada entusiasta de uma Grécia
independente por razões geopolíticas de contenção da influência russa.
4.
A referida política das potências europeias do século XIX, em particular dos
britânicos, mas também dos franceses, de preferência por um Império Otomano
enfraquecido no Sudeste europeu, em detrimento de uma Rússia mais forte nessa
área geopolítica, deixou marcas que se prolongaram no tempo e se projectam na
União Europeia de hoje. Após a II Guerra Mundial, os EUA retomaram a
estratégia britânica clássica de apoio ao Império Otomano/Turquia contra a
Rússia/União Soviética. A adesão da Turquia à NATO nos anos 1950 foi mais um
episódio dessa lógica estratégica. Mas a contradição entre entre o cultural e
geopolítico transferiu-se também para o interior União Europeia. Primeiro, com o
alargamento à Grécia no início dos anos 1980. Mais
tarde, com a aceitação da Turquia como candidato oficial e posterior abertura
de negociações de adesão, já em 2005.
Uma União Europeia culturalmente
pró-helénica — entenda-se que absorveu a herança da Grécia da Antiguidade na
sua identidade — contrasta com uma União Europeia que, em termos estratégicos,
tende a favorecer o seu inimigo histórico e rival, a Turquia, desde logo pela
via da NATO. E o actual Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan, tem sido
particularmente hábil a tirar partido da dependência estratégica europeia. Usa
a sua posição geopolítica para pressionar e fazer chantagem sem nunca ter tido
uma oposição de relevo. Pelo contrário, encontrou, quase sempre, compreensão e
reacções brandas dos europeus.
5. Quando,
na semana passada, em resultado dos confrontos militares na Síria, na província
do Idlib, surgiu uma nova vaga de migrantes e
refugiados provocada deliberadamente pela Turquia, foi bem claro que a União
Europeia foi, mais uma vez, apanhada de surpresa. Não teve capacidade de antecipação estratégica
face às manobras de Recep Tayyip Erdoğan. Em
Bruxelas, a milhares de quilómetros de distância do problema no terreno, os
políticos e burocratas europeus chefiados por Ursula von der Leyen começaram
por minimizar a situação, dizendo, com alguma displicência, que o acordo com a
Turquia se mantinha em vigor. Aparentemente, não haveria muito a recear. Mas a
realidade no terreno desmentiu-os rapidamente.
Milhares
de migrantes/refugiados têm-se dirigido para as fronteiras da Grécia — e em
menor grau da Bulgária — seja pelos seus meios ou colocados lá pelos próprios
turcos. Os migrantes/refugiados estão assim a ser usados como
‘arma de arremesso’ entre os beligerantes para obterem dividendos estratégicos
no conflito da Síria, ou noutras questões do seu interesse. Nesta altura, a Turquia joga cinicamente com estes
para fazer vergar a Grécia e levar a opinião pública europeia a querer intervir
na guerra Síria contra Bashar al-Assad e a Rússia e/ou pagar-lhe ainda mais
dinheiro do que já faz desde o acordo de 2016.
A Turquia joga cinicamente com
migrantes/refugiados para fazer vergar a Grécia e levar a opinião pública
europeia a querer intervir na guerra Síria contra Bashar al-Assad e a Rússia
e/ou pagar-lhe.
6. O soft
power europeu tem resultados muito limitados quando enfrenta crises onde os
intervenientes se movem por motivações que vão muito além do económico, como
acontece na guerra da Síria. A União
Europeia, desde 2016, paga para que outros — a Grécia dentro e especialmente a
Turquia fora —, resolvam o problema das vagas de migrantes/refugiados. Independentemente dos méritos humanitários,
a política de fronteiras abertas de Angela Merkel em 2015, acabou
por colocar a própria chanceler numa situação política insustentável. Assim, o acordo entre a União Europeia e a Turquia foi
feito, em grande parte, para resolver o problema alemão. Apesar de tudo, ia funcionando, melhor ou pior, mas
agora está à beira de ser rompido pelo aventureirismo de Recep Tayyip Erdoğan
na Síria. Com as suas pretensões frustradas em
grande parte pela Rússia, aliada de Bashar al-Assad, este faz agora, como já
explicado, chantagem com a União Europeia através do seu elo mais fraco — a
Grécia. Não obstante as palavras de solidariedade da União Europeia, para já a
Grécia tem de enfrentar praticamente sozinha a hostilidade da Turquia e o
desespero das massas de migrantes/refugiados que se dirigem para as sua
fronteiras, as quais são também fronteiras externas da União Europeia devido ao
Espaço Schengen.
7. A guerra
da Síria e os enormes dramas humanos que gerou, e continua a gerar, não foram
provocados pela União Europeia. A
guerra, para além de opor violentamente o governo de Bashar al-Assad aos grupos
rebeldes, jihadistas e não jihadistas, envolve ainda outros Estados como o Irão,
a Rússia e a Turquia. Provavelmente, uma intervenção directa da União
Europeia e/ou da NATO só iria aumentar a intensidade do conflito ou até fazê-lo
expandir para uma perigosa guerra em toda a região. Uma intervenção directa da União
Europeia e/ou da NATO na Síria só iria aumentar a intensidade do conflito ou
até fazê-lo expandir para uma perigosa guerra em toda a região.
Foi o aventureirismo de Recep Tayyip
Erdoğan que colocou a Turquia como beligerante na Síria, sem qualquer necessidade
estrita de segurança e defesa do seu país. Claro que tudo isto foi uma dádiva
política para a (extrema) direita e a (extrema) esquerda europeias e os
populismos em geral, sejam de tipo securitário ou de tipo humanitário, ganharem
um novo fôlego.
Os primeiros mostram até à exaustão diversas imagens de hordas de
homens que procuram forçar a fronteira grega, jogando com os sentimentos de
insegurança e medo da população. Os segundos exploram a crise humanitária, arvorando-se em
defensores irredutíveis dos migrantes/refugiados e explorando os sentimentos de
culpa colonial de uma Europa rica que não se comove com a tragédia.
Claro que ambos não têm qualquer
solução exequível e equilibrada, em termos de segurança e humanitários, para um
problema tão complexo, nem isso lhes interessa politicamente. Mas este caso
mostra cruamente os limites do soft power europeu para resolver problemas
estratégicos, de segurança e humanitários nas suas fronteiras. Esperemos que
não seja o início de uma nova crise grave
que deixa a Grécia sozinha face à Turquia e ao drama humano dos
migrantes/refugiados, colocando europeus contra europeus.
Investigador do IPRI-NOVA - Universidade NOVA de
Lisboa
TÓPICOS MUNDO
UNIÃO EUROPEIA EUROPA TURQUIA RÚSSIA MÉDIO ORIENTE SÍRIA
COMENTÁRIOS:
francisco tavares INICIANTE: Atendendo à história turca sob Kemal Atatürk de
mover-se para um laicismo progressivo, a entrada em cena de Tayyip
Erdogan, com o AKP e a sua orientação islamista, é um retrocesso e
tem-se revelado prejudicial à resolução dos conflitos que surgem amiúde naquela
zona, devido à sua pose de califa ( sucessor do profeta Maomé e orientador
do processo político com base na religião islâmica, logo orientada para a
ditadura religiosa). Talvez fosse desejável que houvesse mais empenho da
Europa, e dos EUA, na formação da nação curda.
Luís Miguel MODERADOR: Um enquadramento a meu ver bem feito por José Pedro Teixeira Fernandes, que mostra bem o papel da Turquia nos últimos
acontecimentos na Síria. Para outra ocasião, talvez uma retrospectiva do papel
da Turquia no conflito sírio desde 2011. Nessa perspectiva, Erdogan aludiu hoje
«à pertença de Idlib» (da província de Idlib) «à Mãe-Pátria», ao mesmo título
que o Hatay (província síria de Alexandreta anexada pela Turquia ao tempo do
mandato francês) e a oposição kemalista (CHP) insurgiu-se no parlamento com os
numerosos soldados turcos mortos na Síria por causa do «aventureirismo» de
Erdogan. O resultado foi este, esta tarde: «Free Wrestling in Turkish
Parliament over Erdogan’s Idlib Intervention». Recomendo a observação do
vídeo que acompanha esta notícia. Até deputadas participaram na refrega.
Luís Miguel MODERADOR: Quero com isto dizer que Erdogan não é a Turquia nem a
Turquia se resume a Erdogan. Haja capacidade da oposição laica para o
demonstrar. Já quanto às intenções de Erdogan, são estas bem claras: anexar
mais território sírio.
Nuno
Silva EXPERIENTE: Não foi somente a Turquia que promoveu a guerra da
Siria. Foi a UE e os EUA. Embora a família Erdogan tenha enriquecido à custa,
isso é um grão de areia, no meio de tanto refugiado que a Turquia acolheu (a Turquia
não é somente aquela família corrupta e criminosa)...
Eugénio Santos INICIANTE: O que vem aí é apenas o começo...
AndradeQB MODERADOR: Mais um com essa da chantagem, mas que é que está a
fazer a Turquia além de seguir as indicações da UE, que é de não barrar
migrantes? Ou os progressistas europeus passam a Trumps logo que a
Itália, Grécia, Turquia os levam a sério e deixam de erguer muros?
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