quinta-feira, 5 de março de 2020

E assim vamos revivendo



Revivendo a história antiga, receando a história moderna, que vai passando longe até ver…
ANÁLISE
A Europa e a Grécia face à chantagem da Turquia e à crise humanitária
Este caso mostra cruamente os limites do soft power europeu para resolver problemas estratégicos, de segurança e humanitários nas suas fronteiras.
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES
PÚBLICO, 4 de Março de 2020
1.É um dos casos mais interessantes e paradoxais da cultura e geopolítica contemporâneas. A Europa da União Europeia adora a Grécia da Antiguidade, mas aprecia pouco a Grécia Moderna. A primeira — a Grécia da Antiguidade — é suficientemente distante na história para ser idealizada e idolatrada. A segunda — a Grécia Moderna — é tão próxima e tão repleta de problemas económicos (crise económico-financeira) e políticos (crises políticas, crise dos refugiados) que usualmente é olhada com suspeita e incomodidade.
A Europa da União Europeia, que se construiu após a II Guerra Mundial, pretende ter raízes na Grécia da Antiguidade Clássica. A mitologia grega foi útil para isso. A União Europeia e o europeísmo que gravita à sua volta vêem-se como absorvendo esse passado, como herdeiros deste. O mito da deusa Europa é assim útil para a União Europeia de hoje se legitimar. Entre outras coisas, sugere uma ideia de Europa e de europeísmo que existiria desde a Antiguidade. Múltiplos livros dedicam mais ou menos tempo a esse passado procurando mostrar as raízes culturais comuns e a naturalidade da (re)construção europeia de hoje. Hoje a Grécia está novamente no centro das atenções, não por questões culturais, mas devido à guerra na Síria e à chantagem da Turquia, que está a usar os migrantes/refugiados como ‘arma de arremesso’. Mas é necessário olhar primeiro com mais detalhe histórico para a relação da Grécia (e da Turquia) com a Europa para compreendermos a actual crise na sua profundidade e múltiplas ramificações. 
2.Para além da mitologia da Grécia da Antiguidade, a qual impregna inquestionavelmente a cultura europeia na literatura, na pintura, na arquitectura, na psicanálise, etc., há uma dimensão geográfico-política desse passado com repercussões de relevo no mundo de hoje. Importa lembrar que o termo Europa foi também usado na Antiguidade para designar um continente — categoria geográfica que também devemos aos gregos antigos. Para estes, a Europa abrangia os territórios helénicos situados na margem esquerda do mar Egeu, a Ocidente do Bósforo, por oposição à terra, ou continente, situado a Oriente, designado por Ásia.
Mas esse legado geográfico-político é problemático, por várias razões que serão evidenciadas em seguida. Para além disso, há entre a Grécia da Antiguidade e a Grécia Moderna um enorme hiato, tal como entre a Europa do mundo antigo e a Europa de hoje. Esse enorme hiato histórico engloba três acontecimentos fundamentais que dão uma identidade diferenciada à Grécia de hoje, ainda que sob formas por vezes subtis e não imediatamente perceptíveis. A longa persistência do Império Romano do Oriente; a especificidade do Cristianismo oriental em fractura profunda com o ocidental a partir do século XI; e, com mais implicações ainda, a pertença da Grécia ao Império Otomano, desde finais dos séculos XIV/XV até aos séculos XIX/inícios do século XX, consoante as partes do território consideradas.
3.O actual mapa político da Europa entronca nas realidades que existiam no século XIX e se transformaram pelos acontecimentos da I Guerra Mundial (fundamentalmente) e também pela II Guerra Mundial (menos). Teve uma última modificação de relevo com o final da Guerra-Fria e a desagregação da União Soviética. Mas no caso da Grécia e da Turquia, as transformações fundamentais ocorreram durante o século XIX e inícios do século XX. No século XIX esses territórios eram o Próximo Oriente, não Europa. A ambiguidade cultural e política que se transferiu para a União Europeia começa aqui. Em termos culturais a Grécia era Europa, pois esta era percebida como tendo as suas raízes na Grécia clássica. Mas em termos culturais e políticos a percepção era outra. Era vista como Próximo Oriente, tal como a Turquia. A representação dominante pelos europeus dessa época era a de que o exotismo e o despotismo do Oriente começavam aí.
Mas no caso da Grécia e da Turquia, as transformações fundamentais ocorreram durante o século XIX e inícios do século XX. No século XIX esses territórios eram o Próximo Oriente, não Europa. A ambiguidade cultural e política que se transferiu para a União Europeia começa aqui.
A ambiguidade está bem presente na formação da Grécia moderna e na sua luta pela independência contra o Império Otomano. Se dispunha de grande simpatia cultural no Ocidente europeu — onde era imaginada romanticamente em continuidade com a Grécia clássica — gerava animosidade política pela sua conexão com a Rússia, pela via do Cristianismo Ortodoxo. Uma Grécia independente, tal como a Sérvia ou a Bulgária, dava aos russos possibilidades de expansão da sua influência para os Balcãs e o Mediterrâneo Oriental.
Nada exemplifica melhor a contradição entre o cultural e o geopolítico do que a atitude pró-helénica de George Gordon Byron, o notável poeta romântico e a posição antagónica do governo britânico. O primeiro foi um dos apoiantes guerra da independência da Grécia contra o Império Otomano nos anos 1820, protagonizando um sentimento que existia em grande parte da Europa culta. O segundo, o governo britânico, não era nada entusiasta de uma Grécia independente por razões geopolíticas de contenção da influência russa.
4. A referida política das potências europeias do século XIX, em particular dos britânicos, mas também dos franceses, de preferência por um Império Otomano enfraquecido no Sudeste europeu, em detrimento de uma Rússia mais forte nessa área geopolítica, deixou marcas que se prolongaram no tempo e se projectam na União Europeia de hoje. Após a II Guerra Mundial, os EUA retomaram a estratégia britânica clássica de apoio ao Império Otomano/Turquia contra a Rússia/União Soviética. A adesão da Turquia à NATO nos anos 1950 foi mais um episódio dessa lógica estratégica. Mas a contradição entre entre o cultural e geopolítico transferiu-se também para o interior União Europeia. Primeiro, com o alargamento à Grécia no início dos anos 1980. Mais tarde, com a aceitação da Turquia como candidato oficial e posterior abertura de negociações de adesão, já em 2005.
Uma União Europeia culturalmente pró-helénica — entenda-se que absorveu a herança da Grécia da Antiguidade na sua identidade — contrasta com uma União Europeia que, em termos estratégicos, tende a favorecer o seu inimigo histórico e rival, a Turquia, desde logo pela via da NATO. E o actual Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan, tem sido particularmente hábil a tirar partido da dependência estratégica europeia. Usa a sua posição geopolítica para pressionar e fazer chantagem sem nunca ter tido uma oposição de relevo. Pelo contrário, encontrou, quase sempre, compreensão e reacções brandas dos europeus. 
5. Quando, na semana passada, em resultado dos confrontos militares na Síria, na província do Idlib, surgiu uma nova vaga de migrantes e refugiados provocada deliberadamente pela Turquia, foi bem claro que a União Europeia foi, mais uma vez, apanhada de surpresa. Não teve capacidade de antecipação estratégica face às manobras de Recep Tayyip Erdoğan. Em Bruxelas, a milhares de quilómetros de distância do problema no terreno, os políticos e burocratas europeus chefiados por Ursula von der Leyen começaram por minimizar a situação, dizendo, com alguma displicência, que o acordo com a Turquia se mantinha em vigor. Aparentemente, não haveria muito a recear. Mas a realidade no terreno desmentiu-os rapidamente.
Milhares de migrantes/refugiados têm-se dirigido para as fronteiras da Grécia — e em menor grau da Bulgária — seja pelos seus meios ou colocados lá pelos próprios turcos. Os migrantes/refugiados estão assim a ser usados como ‘arma de arremesso’ entre os beligerantes para obterem dividendos estratégicos no conflito da Síria, ou noutras questões do seu interesse. Nesta altura, a Turquia joga cinicamente com estes para fazer vergar a Grécia e levar a opinião pública europeia a querer intervir na guerra Síria contra Bashar al-Assad e a Rússia e/ou pagar-lhe ainda mais dinheiro do que já faz desde o acordo de 2016.
A Turquia joga cinicamente com migrantes/refugiados para fazer vergar a Grécia e levar a opinião pública europeia a querer intervir na guerra Síria contra Bashar al-Assad e a Rússia e/ou pagar-lhe.
6. O soft power europeu tem resultados muito limitados quando enfrenta crises onde os intervenientes se movem por motivações que vão muito além do económico, como acontece na guerra da Síria. A União Europeia, desde 2016, paga para que outros — a Grécia dentro e especialmente a Turquia fora —, resolvam o problema das vagas de migrantes/refugiados. Independentemente dos méritos humanitários, a política de fronteiras abertas de Angela Merkel em 2015, acabou por colocar a própria chanceler numa situação política insustentável. Assim, o acordo entre a União Europeia e a Turquia foi feito, em grande parte, para resolver o problema alemão. Apesar de tudo, ia funcionando, melhor ou pior, mas agora está à beira de ser rompido pelo aventureirismo de Recep Tayyip Erdoğan na Síria. Com as suas pretensões frustradas em grande parte pela Rússia, aliada de Bashar al-Assad, este faz agora, como já explicado, chantagem com a União Europeia através do seu elo mais fraco — a Grécia. Não obstante as palavras de solidariedade da União Europeia, para já a Grécia tem de enfrentar praticamente sozinha a hostilidade da Turquia e o desespero das massas de migrantes/refugiados que se dirigem para as sua fronteiras, as quais são também fronteiras externas da União Europeia devido ao Espaço Schengen.
7. A guerra da Síria e os enormes dramas humanos que gerou, e continua a gerar, não foram provocados pela União Europeia. A guerra, para além de opor violentamente o governo de Bashar al-Assad aos grupos rebeldes, jihadistas e não jihadistas, envolve ainda outros Estados como o Irão, a Rússia e a Turquia. Provavelmente, uma intervenção directa da União Europeia e/ou da NATO só iria aumentar a intensidade do conflito ou até fazê-lo expandir para uma perigosa guerra em toda a região. Uma intervenção directa da União Europeia e/ou da NATO na Síria só iria aumentar a intensidade do conflito ou até fazê-lo expandir para uma perigosa guerra em toda a região.
Foi o aventureirismo de Recep Tayyip Erdoğan que colocou a Turquia como beligerante na Síria, sem qualquer necessidade estrita de segurança e defesa do seu país. Claro que tudo isto foi uma dádiva política para a (extrema) direita e a (extrema) esquerda europeias e os populismos em geral, sejam de tipo securitário ou de tipo humanitário, ganharem um novo fôlego.
Os primeiros mostram até à exaustão diversas imagens de hordas de homens que procuram forçar a fronteira grega, jogando com os sentimentos de insegurança e medo da população. Os segundos exploram a crise humanitária, arvorando-se em defensores irredutíveis dos migrantes/refugiados e explorando os sentimentos de culpa colonial de uma Europa rica que não se comove com a tragédia.
Claro que ambos não têm qualquer solução exequível e equilibrada, em termos de segurança e humanitários, para um problema tão complexo, nem isso lhes interessa politicamente. Mas este caso mostra cruamente os limites do soft power europeu para resolver problemas estratégicos, de segurança e humanitários nas suas fronteiras. Esperemos que não seja o início de uma nova crise grave que deixa a Grécia sozinha face à Turquia e ao drama humano dos migrantes/refugiados, colocando europeus contra europeus.
Investigador do IPRI-NOVA - Universidade NOVA de Lisboa
COMENTÁRIOS:
francisco tavares INICIANTE: Atendendo à história turca sob Kemal Atatürk de mover-se para um laicismo progressivo, a entrada em cena de Tayyip Erdogan, com o AKP e a sua orientação islamista, é um retrocesso e tem-se revelado prejudicial à resolução dos conflitos que surgem amiúde naquela zona, devido à sua pose de califa ( sucessor do profeta Maomé e orientador do processo político com base na religião islâmica, logo orientada para a ditadura religiosa). Talvez fosse desejável que houvesse mais empenho da Europa, e dos EUA, na formação da nação curda.
Luís Miguel MODERADOR: Um enquadramento a meu ver bem feito por José Pedro Teixeira Fernandes, que mostra bem o papel da Turquia nos últimos acontecimentos na Síria. Para outra ocasião, talvez uma retrospectiva do papel da Turquia no conflito sírio desde 2011. Nessa perspectiva, Erdogan aludiu hoje «à pertença de Idlib» (da província de Idlib) «à Mãe-Pátria», ao mesmo título que o Hatay (província síria de Alexandreta anexada pela Turquia ao tempo do mandato francês) e a oposição kemalista (CHP) insurgiu-se no parlamento com os numerosos soldados turcos mortos na Síria por causa do «aventureirismo» de Erdogan. O resultado foi este, esta tarde: «Free Wrestling in Turkish Parliament over Erdogan’s Idlib Intervention». Recomendo a observação do vídeo que acompanha esta notícia. Até deputadas participaram na refrega.
Luís Miguel MODERADOR: Quero com isto dizer que Erdogan não é a Turquia nem a Turquia se resume a Erdogan. Haja capacidade da oposição laica para o demonstrar. Já quanto às intenções de Erdogan, são estas bem claras: anexar mais território sírio.
Nuno Silva EXPERIENTE: Não foi somente a Turquia que promoveu a guerra da Siria. Foi a UE e os EUA. Embora a família Erdogan tenha enriquecido à custa, isso é um grão de areia, no meio de tanto refugiado que a Turquia acolheu (a Turquia não é somente aquela família corrupta e criminosa)...
Eugénio Santos INICIANTE: O que vem aí é apenas o começo...
AndradeQB MODERADOR: Mais um com essa da chantagem, mas que é que está a fazer a Turquia além de seguir as indicações da UE, que é de não barrar migrantes? Ou os progressistas europeus passam a Trumps logo que a Itália, Grécia, Turquia os levam a sério e deixam de erguer muros?


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