domingo, 8 de março de 2020

Leitura para vários gostos



Para mim, o “escrever bem” de Vasco Pulido Valente tem a ver com o seu discurso feito de uma arte incisiva, de simplicidade, rigor e clareza tais que outro não seria possível, a palavra exacta denunciando o facto, e simultaneamente o conceito pessoal por vezes cáustico, sem propriamente azedume, mas decerto desdenhoso e sombrio, talvez pelo sentimento de impotência correctora, no caso do seu país, conceito de nitidez absoluta, como raio x ou luminoso a incidir sobre o ponto exacto do seu destino. Só alguém muito avisado ou muito lido se pode permitir tais mensagens de brevidade escrita em dissonância com a dimensão conceituosa. É esse, quanto a mim, o "escrever bem” de VPV que lhe rende a admiração geral, ainda que seja opinião ironizada para “mito” por António Guerreiro. O mito – tal como o das rosas (ou do tal Ulisses) prova que todos são sensíveis a essa verdade, de um “nada que é tudo” e sem dúvida encanta.
A mitologia do “escrever bem”
ANTÓNIO GUERREIRO
PÚBLICO, 28 de Fevereiro de 2020
“Escrever bem” foi a virtude retórica ou literária (não se sabe bem qual, mas interessa perceber que elas não são necessariamente coincidentes e até estão muitas vezes em oposição) mais exaltada nos últimos dias. O objecto deste culto gregário e mimético que se difundiu como um coro harmonioso e unânime foi a escrita de Vasco Pulido Valente. Estranha acuidade analítica, esta, que localiza e aponta como evidência o que nunca se conseguirá definir.
“Já tudo foi dito e mesmo assim sabe a pouco. A lucidez, a cultura, a ironia, a inteligência. E claro, o português. Não há escrita igual àquela: contida e cintilante.” Paulo Rangel, sobre Vasco Pulido Valente, in PÚBLICO, 25/02/2019
Para a mitologia do “escrever bem” de Vasco Pulido Valente, esta elucubração de Paulo Rangel corresponde a mais um esforço, embora inútil e exasperado porque “já tudo foi dito”. E quando já tudo foi dito, mas tudo é ainda insuficiente, a única saída é a do inefável. Só que, aí, é uma tarefa titânica estar à altura das exigências e todo o esforço de elevação em direcção ao sublime sofre uma deflação e entra em queda na “escrita (...) contida e cintilante”. É preciso avisar Paulo Rangel de que também há o “escrever mal” e que a sua escrita é disso um bom exemplo por proclamar sempre, em cada palavra, em cada frase: “vejam o que é escrever bem!”
Há o “escrever bem” num sentido escolar e académico: consiste em respeitar as normas gramaticais e discursivas fixadas pela tradição, de modo a enunciar com clareza e rigor uma argumentação que desenvolve um pensamento. Não era esta, certamente, a qualidade a que se referem os crentes do bem escrever, na celebração ecuménica a que se entregaram nos últimos dias. E também não era, de certeza, algo que se possa confundir com as operações que consistem em estetizar a retórica numa técnica que engendra os estereótipos do bem dizer e do bem escrever. Esse virtuosismo ornamental é o oposto das virtudes persuasivas do mais fino ofício de “escrever bem” que tanta gente vê, claramente visto, em Pulido Valente. Por outro lado, também não é claro que esta qualificação superlativa, o “escrever bem”, seja reivindicada como condição necessária e suficiente para dizer que ela define um escritor: a exaltação do autor que “escrevia bem”, tinha a “melhor prosa” e “escrevia como ninguém” atinge esta elevação sublime, mas não ousa, ou raramente ousa, passar para um plano literário. De resto, essa identificação só iria perturbar o sentido dos elogios: alguém ousa dizer de um escritor, para o engrandecer, que ele escreve bem? Um venenoso cumprimento estaria implícito nessas palavras. Escrever bem é uma prerrogativa que contempla escritores obscuros, como Dante e Joyce, ou que devemos reservar para um Eça de Queirós e um Thomas Mann? Aceitamos como pertinente o juízo de que Marguerite Duras escrevia bem quando a colocamos ao lado de uma outra Marguerite, a Yourcenar? Escrever bem é, em suma, uma qualidade inidentificável e vazia. Não significa nada e não pode responder a exigências normativas porque, nesse caso, corresponderia a uma fórmula estereotipada. Escrever bem é como o unicórnio e outros animais imaginários. Também não é o contrário de escrever mal.
Resta um enigma por resolver: como é que se criou esta “mitologia” em torno da escrita (mas não será o “escrever bem” algo estranho à própria ideia de escrita?), enquanto historiador, mas sobretudo enquanto cronista, de Vasco Pulido Valente? Uma hipótese malévola, com algum teor de injustiça, é a de que ele era detentor de um “estilo”, exactamente na medida da feição demagógica que o estilo pode ter, quando se compraz em exibir as suas calculadas astúcias e as maquinações caricaturais. O estilo, neste sentido, é uma fraseologia. A auto-representação, no seu máximo de teatralidade, do cronista misantropo e às vezes renegado é um artifício da fraseologia. Sim, há um temperamento renegado que se traduz num humor infeliz e mesquinho que, em última instância, é também uma estética que fabrica indignações. Mas esta hipótese malévola não pode ser vista como a única explicação. A outra hipótese que explica esta mitologia diz menos acerca da escrita de Vasco Pulido Valente do que sobre o ambiente intelectual e as suas frivolidades e crenças. Em boa verdade, o culto do “escrever bem” a que assistimos é o culto de uma mentira em que, pelos vistos, muitos acreditam: a de que o artifício da clareza e da verdade tem uma superioridade ética e estética sobre o discurso que, não procurando denegar os seus artifícios, parece mais obscuro. O que os mitólogos do “escrever bem” celebram com tanto entusiasmo e unanimidade em Vasco Pulido Valente é uma qualidade trans-histórica que lhes foi inculcada como norma: o “frasear” clássico, claro, uma escrita que se presta à compreensão e à interpretação inequívocas. Este classicismo do discurso, do “discorrer” conjuga-se com uma pretensão: a do juízo final. No “escrever bem” o que os leitores procuram, afinal, é o mecanismo que os instala num território de satisfações frívolas, onde reina a auto-complacência. Não quer dizer que esteja aqui toda a verdade sobre o “escrever bem” de Vasco Pulido Valente. Mas está certamente uma boa parte da explicação para a mitologia que à sua volta se criou. 
COMENTÁRIOS:
Jeine Ósten EXPERIENTE: Tanto António Guerreiro como Vasco Pulido Valente escrevem bem. Acompanhei sempre VPV depois de o ter conhecido no O Independente, pelo facto de gostar da escrita dele. Gostava do estilo e do conteúdo. Penso que esta dicotomia já caiu em desuso, mas eu uso-a na mesma. E gosto da escrita de AG pelos mesmos motivos. Porém, são formas de escrever diferentes. AG procura a objectividade. Tem um estilo académico de quem ainda está a monografar para teses de mestrado e PhD. Tem tento nas palavras, cita figuras de autoridade e é "sério". VPV é o intelectual que escreve e opina subjectivamente, respaldado pelo seu saber. O humor cruel, sarcástico, tanto o redime, como o torna mais ácido. Encantador! Glória, romance, é uma obra de arte. VPV ri-se de todos e faz-nos rir. E pensar. Escrita excelente!  28.02.2020
Licínio Miguel INICIANTE: Lembro-me de aulas de Teorias da Argumentação, onde se liam e analisavam criticamente crónicas de VPV, tal era o teor de sofismas, falácias e paralogismos que exibiam… Nada mau, para um expoente tão incensado da "opinião lusa"...  28.02.2020
Leclerc INICIANTE: Gostava de ler o VPV porque escrevia de forma diferente dos restantes, tinha um raciocínio e interpretação da realidade que dava gosto ler (mesmo quando não concordava com o que escrevia), estimulava a reflexão sobre os acontecimentos que comentava. Lia-o do princípio ao fim com gosto, o tempo em que estava de férias (que anunciava na crónica antes das mesmas) deixava uma sensação de vazio. Mesmo assim todas as semanas lá clicava no nome, podia ser que tivesse voltado antes… Para mim isto é escrever bem. A “mitologia do António Guerreiro”, a um quarto do artigo já estava a ver se ainda faltava muito para o fim. Não consegui ler todo. Não percebi se o artigo foi escrito para ser lido ou se foi escrito como forma de autocontentamento do autor. Não gostei. Para mim um exemplo de escrever mal. 28.02.2020
Liberal Duro de Desactivar e Muito EXPERIENTE: Ele até tem pelo menos um ponto de contacto com Vasco Pulido Valente, é super-vaidoso. E também escreve bem, mas não para o mirífico leitor médio de jornais. 29.02.2020
Fowler fowler INICIANTE: Muito bem observado. 28.02.2020
Colete AmareloEXPERIENTE: Proponho um subtítulo para este artigo: Explicação - em boa parte pelo menos - do que leva os leitores de Vasco Pulido Valente a gostar da sua escrita, e do quanto eles se enganam quando tentam caracterizar as qualidades da escrita do falecido usando termos indefiníveis. 28.02.2020
paulo da silva ferreira INICIANTE: inveja 28.02.2020


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