quarta-feira, 18 de março de 2020

“Orgulho e preconceito”



Mostrar ao mundo a diferença, em relação ao resto do mundo. Sempre foi assim, a Inglaterra, desde os seus cavaleiros da Távola Redonda, mas esta Távola só para os cavaleiros, naturalmente. O “Pequeno Lorde” também deu lições, de uma nobreza, todavia, em que se expulsavam, naturalmente, os de baixa condição social e moral. Já as peças de Shakespeare mostravam um rigor de caracteres destemidos e orgulhosos que marcaram para sempre a personalidade dos ilustres, como, de resto, as figuras graciosas de Óscar Wilde, ou as ficções novelescas das manas Brontë ou da Jane Austen, pese embora as obras de um Charles Dickens explorando as habilidades e facetas do povo sofredor. Mas tudo isso marcou a tradição inglesa segundo um preceito de nobreza e superioridade que lhe definiu o carisma, mantido na sua corte com um aparato nem sempre discreto e nem sempre aristocrático, dados os ventos de mudança e as naturais divergências entre os seres.
O certo é que, em relação ao coronavírus, a China procedeu de uma forma totalmente diversa e inicialmente pela calada até, e parece que se estão a safar. O resto do mundo segue-a nos preceitos isolacionistas rigorosos, mas o mundo ocidental é mais ruidoso e remexido, não se vai safar tão rapidamente, como os países asiáticos, de uma mansidão tantas vezes cínica.
Quanto ao procedimento inglês, de altivo desdém pelo bom senso, segundo este texto de João André Costa, quem sou eu para criticar ou apoiar, eu que não pertenço a essa sociedade que arrosta a tempestade, para criar imunidade a uma doença e mostrar, com tal desafio, uma altivez que contrasta com a aparente pusilanimidade dos governos mais democráticos, mas de um exagero tal que acabará, talvez, por afundar os países no descalabro da miséria. Mas o certo é que João André Costa vive os mesmos medos, continuando a trabalhar, que os que estão parados e fechados nos seus redutos domésticos, pesem embora as imposições de continuidade laboral aos que têm a função de zelar pela saúde ou a subsistência públicas. Não deixa, tal exagero, de parecer caricato.
Em Inglaterra ninguém arreda pé
As escolas não fecham, os serviços não fecham, os restaurantes, pubs e bares não fecham, as empresas também não e a ideia vigente é a de que podemos, e devemos, ficar todos doentes com o novo coronavírus, desta feita garantindo a imunidade de todo um povo. Uma ideia rocambolesca e perigosa.
PÚBLICO, 17 de Março de 2020
Pediram-me para escrever sobre o vírus em Inglaterra e como é que nos está a afectar, mas, como a ansiedade por estes lados é tão inglesa como portuguesa, não sei o que escrever.
Para além disso, e tendo em conta que o “Brexit” é um rebuçado ao pé disto, se já toda a gente estava farta de ouvir falar do “Brexit”, o que dizer então do novo coronavírus? Por isso não sei nada sobre o coronavírus, não quero saber sobre o coronavírus e tenho raiva de quem sabe sobre o coronavírus.
As férias da Páscoa? Nem de propósito, no Sul de Itália: já foste. Recebemos hoje um e-mail da British Airways a convidar-nos, livre de quaisquer custos extras, a alterar a data da nossa viagem a Nápoles. Vamos alterar, para a próxima Páscoa (e por aí adiante, que para o ano logo se vê). De caminho, já contactámos o hotel e oferecem-nos um voucher no valor total da reserva, também para o ano que vem.
Não há outro remédio, não há outra solução, viajar de avião para onde quer que seja, neste momento, seja para casa ou não, é garantia de não podermos regressar — e de não podermos regressar já tivemos quanto baste, aquando da tempestade de areia em Lanzarote há um mês. O céu? Está em Lanzarote, nos Jameos del Agua. Mas isso são outras conversas para outra crónica, a que nunca escreverei: vejam com os vossos olhos, por favor, em Lanzarote.
Entretanto, passámos o domingo inteiro de supermercado em supermercado à procura de ovos, sim, ovos, esgotaram, assim como esgotou o papel higiénico, o arroz, o pão, os anti-inflamatórios, o leite, fruto da avidez e do egoísmo universal, de modos que, comprando um rolo aqui, um ovo ali, um quilo de arroz acolá, lá conseguimos trazer para casa o essencial para uma semana de trabalho, mais uma.
Sim, porque em Inglaterra ninguém arreda pé, as escolas não fecham, os serviços não fecham, os restaurantes, pubs e bares não fecham, as empresas também não e a ideia vigente é a de que podemos, e devemos, ficar todos doentes, desta feita garantindo a imunidade de todo um povo. Chamam a isto a imunidade de grupo, ou a imunidade do rebanho. Uma ovelha olha-me de lado, do lado de lá do espelho.
Em Inglaterra, a vida continua como sempre, como se nada fosse, e, como se nada fosse, todos os dias continuamos a ir para o trabalho, qual rebanho domesticado onde ninguém pia e todos balem, e não fosse o facto de as chefias não colocarem os pés nos empregos, ao invés, “trabalhando” a partir de casa, e talvez acreditássemos nesta patranha mirabolante da imunidade de grupo.
Ao melhor estilo da aldeia gaulesa, à custa de uma geração inteira a brincar à selecção natural e à sobrevivência do mais forte, os ingleses pretendem mostrar ao resto do mundo, e em contraposição com o resto do mundo, como já vem sendo seu hábito, o significado de, hoje e sempre, resistir ao invasor.
Tal ideia, tão rocambolesca como perigosa, só faz sentido num país onde a aristocracia marca a linha entre quem merece e não merece viver. Tal ideia não é senão o pináculo da cobardia vestida a sangue azul, o capitão é o primeiro a sair do barco e que se lixem as mulheres e as crianças, mulheres há muitas e crianças também, mas como capitão há só um, ali vai ele a saltar borda para a segurança e conforto do seu umbigo.
Entretanto, milhões preparam-se para morrer de pé em nome desta meia dúzia de criaturas entre continências e hinos à pátria e por mais que me belisque não consigo deixar de acreditar nestes olhos e no tamanho da ignorância.
As minhas últimas palavras vão para quem mais quero. Espero que estejam todos bem. E, sim, já dei o nome para, voluntariamente, contrair o vírus e assim ajudar ao desenvolvimento de uma vacina. Não sou o único. Muitos mais já mostraram igual vontade. Ficar doente de uma vez por todas é, e será sempre, em tudo melhor do que viver ad aeternum no medo e na desconfiança contínua do outro, sem culpa nenhuma de se sentar ao meu lado a caminho da vida.
COMENTÁRIOS
Luis INICIANTE: O único país com um plano. Curioso porque pediram ao JAC para escrever sobre o vírus na Inglaterra... 17.03.2020
daniel.rego.869733 INICIANTE: Caro João André Costa, não há evidências de que ser contaminado por um vírus, nomeadamente uma estirpe de coronavírus, o torna imune ao mesmo. Acrescento ainda que não estão comprovadas as repercussões que a contaminação pode provocar no organismo, mesmo em casos assintomáticos. Para além de representar um custo humano brutal, o conceito de criar uma imunidade de grupo para o coronavírus é uma estratégia completamente ineficaz. Se não sabe nada do coronavírus e tem raiva de quem sabe, poderia ao menos abster-se de partilhar publicamente a sua opinião. 17.03.2020
Manuel Brito.205795 MODERADOR: Vê-se que não percebeu nada do tom sarcástico deste artigo. 17.03.2020
Francisca van Dijken.892771 INICIANTE: Não esquecer que ‘keep calm and carry on’ é o lema nacional. 17.03.2020
Baptista V. INICIANTE: Tenha calma que não vejo porque não pode funcionar esse esquema 17.03.2020
PRO MODERADOR: Fique você doente. Alguém o proíbe!? Não contamine é quem não queira ficar doente. 17.03.2020
João Carvalho EXPERIENTE: Não vê?! Se o sistema de saúde deixar de conseguir atender os que têm coronavírus e os que não têm coronavírus... Nada mais a dizer. 17.03.2020


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