segunda-feira, 16 de março de 2020

Antes que seja tarde



Um texto – de HELENA GARRIDO - e vários comentários para ponderarmos.
Eutanásia, eficiência, equidade e liberdade /premium
A despenalização da eutanásia viola o contrato social entre o Estado e os cidadãos. Estamos a privilegiar a eficiência, como as tribos que consideramos primitivas.
OBSERVADOR, 17 fev 2020, 07:0535
Antes de mais é preciso saber do que estamos a falar. A eutanásia, voluntária ou involuntária, é um acto da sociedade, são os outros, um médico em geral, que nos matam. O suicídio, assistido ou não, é um acto de liberdade individual na medida em que será a pessoa a infligir a sua morte. Convém perceber bem as diferenças, na medida em que se pode defender a morte não natural como um acto de liberdade individual no suicídio, mas não na eutanásia.
A Holanda foi o primeiro país a despenalizar quer a eutanásia quer o suicídio assistido, em 2002, após pelo menos duas décadas de debate. É ali que deveríamos ir buscar alguns ensinamentos sobre os erros cometidos, o que aparentemente alguém já fez. Theo Boer, professor de ética na Universidade de Teologia de Kampen, diz neste longo artigo do The Guardian que quando mostra as estatísticas holandesas em Portugal ou na Islândia alerta que esse será o ponto em que Portugal estará daqui a duas décadas.
Que estatísticas são essas? Uma subida vertiginosa de casos com a escolha a recair mais pela eutanásia do que pelo suicídio assistido. A excepção ocorreu em 2018. De acordo com o Comité holandês para a Eutanásia, em 2018 houve 6.126 notificações, 4% do número de pessoas que morreram nesse ano, registando-se uma quebra relativamente a 2017 (6.585, ou 4,4%), como se pode ler no seu relatório. A maioria dos casos é de cancro e na esmagadora maioria (96%) a vida foi terminada por eutanásia. O suicídio assistido representou 3,4%. Este peso relativo tem-se mantido ao longo dos anos, com as pessoas a preferirem a eutanásia ao suicídio.
A decisão de exercer o direito de escolher morrer, enquanto valor de liberdade individual, não é naturalmente fácil, já que as pessoas, pelos dados da Holanda, preferem entregar o acto aos outros, à sociedade. E é aqui que se começam a levantar os problemas da nossa imagem como sociedade.
A liberdade individual é um valor que se sobrepõe a muitos valores, especialmente para aqueles que se consideram liberais e, desse ponto de vista, têm razões para defender, não a eutanásia, mas sim o suicídio assistido. António Barreto, em “Morte na primeira pessoa”, escreve sobre este tema no Público.
A eutanásia, enquanto acto da sociedade, afecta inevitavelmente o colectivo que construímos, baseado em valores de solidariedade e humanismo, que remonta ao século XIX e que nos afastou dos grupos que consideramos mais primitivos. O Estado, com as suas origens na Alemanha do século XIX pelas mãos do chanceler Bismark, estabeleceu um contrato social com os cidadãos. Em troca de impostos e de contribuições, o Estado compromete-se a apoiar-nos nos tempos difíceis da nossa vida, no desemprego, na doença e na velhice.
Despenalizar a eutanásia é violar esse contrato social entre os cidadãos e o Estado, é escolher a eficiência como o faziam (ou fazem) as sociedades sem essa rede social, em fases de pobreza extrema, ou as tribos de caçadores-recolectores.
Há um filme, A Balada de Narayama, que tem a sua primeira versão em 1958 e uma segunda em 1983, que retrata o drama de um filho que leva a mãe para morrer na montanha sagrada, respeitando a regra da aldeia onde se vivia em pobreza extrema. Onde não se podia alimentar uma boca que nada produzia.
Mas há igualmente o relato da tribo Aché, que viveu no Paraguai até 1960, e que se pode ler no livro “Sapiens” de Yuval Noah Harari. Os antropólogos que estudaram essa tribo nómada de caçadores recolectores contam que os idosos, quando se tornavam um fardo, eram mortos pelos jovens, pelas costas, com uma machadada na cabeça.
O Estado social foi construído para nos afastar da pressão individualista da luta pela sobrevivência que dramaticamente se expõe naqueles dois exemplos. Despenalizar a eutanásia é, inevitavelmente, ferir o Estado social. Com a eutanásia estamos a escolher, implicitamente, libertar a sociedade (e a família) da responsabilidade de cuidar da pessoa, estamos a dizer-lhe que é um fardo e pode (ou deve) por isso escolher que a matem. Diferente é dar à pessoa a liberdade de se suicidar, de exercer a sua liberdade individual solitariamente, mesmo que isso seja uma dor maior para quem fica.
Do ponto de vista da economia, estamos a fazer escolhas que explicitam valores que não correspondem à imagem da sociedade que queremos ter e que construímos. Essas escolhas, quer se queira quer não, têm efeitos financeiros e empresariais. A ciência económica é isto mesmo, estuda a forma como se fazem escolhas. E essas escolhas reflectem valores. Que, neste caso concreto, acabam por privilegiar a eficiência – uma pessoa doente não produz, gasta – em detrimento da equidade e de valores éticos e morais.
Mesmo não sendo essa a razão e o argumento fundamental que leva à defesa da despenalização da eutanásia, as escolhas têm efeitos financeiros e empresariais.
Em sociedades envelhecidas como as nossas, despenalizar a eutanásia é abrir espaço para gerar poupanças no Serviço Nacional de Saúde e, mesmo que marginalmente, na segurança social por via das pensões ou dos subsídios de doença.
Os custos associados aos doentes terminais aumentam significativamente por via dos tratamentos, da medicação e da utilização de recursos hospitalares. No caso português, estes custos são fundamentalmente suportados pelo Estado por via do SNS, ainda que possam igualmente ser parcialmente imputados às seguradoras até a um determinado limite e, obviamente, para as pessoas que os têm. As próprias famílias podem ser afectadas financeiramente.
A eutanásia induzirá poupanças que não são, contudo, directas nem líquidas. Primeiro porque nem todas as pessoas com doenças terminais optarão pela morte assistida e depois porque a criação de todo um sistema de concretização da eutanásia terá custos. Uma análise sistematizada, embora para o caso norte-americano, pode ser lida, por exemplo, no artigo “The Ethical and Economic Concerns of Physician Assisted Suicide”. É, contudo, de admitir que as poupanças sejam superiores aos custos.
Um outro argumento, mais económico do que financeiro, é que esses recursos poupados podem ser usados para tratar melhor as pessoas com perspectivas de cura. Estamos assim perante um aumento da eficiência “à Pareto”: com recursos escassos e limitados, matar quem não tem cura liberta recursos para quem tem cura.
Se a eficiência aumenta, o mesmo não se pode dizer tão claramente em relação à igualdade. Os críticos da eutanásia argumentam que serão as pessoas de grupos mais desfavorecidos que acabarão por escolher a eutanásia. É difícil perceber se assim será embora, à partida, as pessoas com maiores recursos tenham a possibilidade de aceder a cuidados paliativos de maior qualidade, que lhes permitem ter uma morte digna e sem pressões para escolherem morrer.
Finalmente temos em interligação com tudo isto os negócios que se podem gerar em torno da eutanásia, o mais importante dos quais é o do turismo, como acontece na Suíça. Mas isso só acontecerá se, tal como nesse país, a legislação permitir a eutanásia a não nacionais. E, claro, como já se referiu, os potenciais ganhos das seguradoras.
Nesta breve resenha de argumentos é difícil perceber como é que a esquerda defende mais do que a direita a eutanásia.
Teoricamente, a esquerda defende um Estado Social forte e a submissão dos direitos individuais ao interesse da sociedade, um quadro de pensamento que não se enquadra nem na eutanásia nem no suicídio assistido. Deste ponto de vista, o PCP é o que tem a posição mais coerente, ao colocar-se contra a eutanásia.
Os partidos à direita que não se considerem liberais deveriam seguir o mesmo caminho que o PCP ou defenderem apenas o suicídio assistido – pelo valor da liberdade individual — mas não a eutanásia – pelo envolvimento que o Estado tem na decisão, ao avaliar se a pessoa é ou não elegível.
O tema é difícil e toca fundo nos nossos valores, como percebemos. Nunca deveria ser decidido à pressa e muito menos sem que os partidos se tivessem posicionado sobre a eutanásia quando se apresentaram a eleições. Estamos perante o risco de institucionalizar a desumanização, com argumentos de liberdade individual, quando na realidade o Estado se está a meter no assunto, pelo menos no caso da eutanásia. Valia a pena, no mínimo, estudar melhor o que se passa na Holanda.
COMENTÁRIOS
João Diogo:O melhor texto que li sobre a problemática da eutanásia, muito bom.
José Paulo C Castro: A escolha é tão pessoal que necessita de um terceiro para a executar... A questão é tão individual que o Estado tem que a legislar... A hipocrisia grassa entre os que defendem um ato de liberdade naquilo que não passa de desresponsabilização do ato de matar.
João Martins: Se estamos a falar de economia, não sei o que será mais rentável: a eutanásia ou o negócio prolongado dos cuidados "paliativos", por conseguinte isso não serve de parâmetro. Além disso a eutanásia é sempre voluntária, caso contrário é homicídio. Isto em termos de categorias concretas, e não de terminologias ao sabor do freguês! Finalmente, a falha do contrato social acontece quando o indivíduo espera algo que lhe é negado e não quando a sua vontade é reconhecida. Quando a vontade do próprio é a de ser libertado do sofrimento, impor-lhe esse sofrimento só é parte do pacto social das ditaduras!!!
ALEX de Sousa > João Martins: "Se estamos a falar de economia, não sei o que será mais rentável: a eutanásia ou o negócio prolongado dos cuidados "paliativos", por conseguinte isso não serve de parâmetro." Não sabe? Ora pense lá um bocadinho. Por que é que os privados se apressaram a dizer que não iam aplicar a eutanásia nos seus hospitais? Quanto mais tempo o doente estiver no hospital (paliativos) mais rende! A eutanásia encurta o tempo médio de permanência no hospital, logo a facturação.
Liberal Impenitente > ALEX de Sousa: A eutanásia não tem custos económicos, e essa é a verdade da coisa. Pode haver quem se sinta mal com isso, tal como alguns médicos e pessoal de cuidados de saúde, mas esse é o lado para o qual devemos dormir melhor.
Jose Maria Brissos > João Martins: A agenda fracturante da esquerda sado-marxista, já enjoa. Em França, o Estado proíbe sites pró-vida e impede a divulgação de anúncios com crianças com trissomia 21. Alega-se que os anúncios podem perturbar as mulheres que abortaram. Como se chegou a esta barbárie? Como é que se chama progresso a uma atmosfera que proíbe a aparição pública de crianças deficientes? O sado-marxismo sempre foi decadente, mas agora está mesmo no ponto de rebuçado da decadência. Só pode cair a partir de agora. O sinal maior da queda é a transformação da morte num direito. Como é que se pode elevar a morte à categoria de conquista? Como é que se apelida de "reaccionário", "inimigo da liberdade" ou "insensível" aquele que defende como sagrada a inviolabilidade da vida humana? Pelo andar da carruagem, a eutanásia vai ter o mesmo destino do aborto. Como se sabe já nem se pode dizer aborto, é "IVG", uma sigla que pretende retirar o "aborto" do debate moral, colocando-o somente no campo médico. Lamento, mas o aborto não é uma mera operação médica, não se está a retirar um rim. É um "nascituro" humano que está a ser aniquilado. Nascituro quer dizer "vai nascer". É irrelevante saber se com uma ou dez semanas; se não houver intervenção externa, ele vai nascer. E esta pessoa por nascer, a mais frágil de todas, merece protecção jurídica. Claro que a popularização do termo IVG mata a dimensão moral à partida. Acontecerá o mesmo com a eutanásia. Passará a ser qualquer coisa como MCD, morte com dignidade, ou MCE, morte como escolha. Ora, morte como escolha chama-se suicídio. Mas não tem o direito de convocar os médicos e a comunidade para esse ato. O suicídio não pode ser um valor colectivo. E o que quer dizer morte com dignidade? Um velho que morre acamado e rodeado pelo amor da família tem uma morte sem dignidade? Será que não estamos a confundir dignidade com motricidade? Será que só aceitamos como vida digna a vida num corpo perfeito na sua mecânica? Será que um corpo imperfeito na sua motricidade não tem dignidade? tem ainda mais dignidade e, portanto, a discussão devia estar nos cuidados paliativos. Porque se vamos por este caminho fracturante, acabaremos por chegar a um sítio que não reconhece a dignidade de uma vida com deficiência física e mental. E se calhar já chegámos a esse sítio, porque os bebés com trissomia 21 são quase todos abortados, porque se proíbe anúncios com crianças deficientes. Isto não é progresso médico ou eutanásia, é mesmo eugenia.
Pedro Silveira: Excelente artigo Helena Garrido, mais na vertente económica e financeira, mas excelente
Ana Vasconcelos: A liberalização da eutanásia é também muito perigosa porque entre a diferença entre o auxílio ao suicídio e a instigação ao suicídio pode ser muito pequena e difícil de determinar. Ou seja, aqueles que rodeiam o velho ou o doente podem sistematicamente sugerir ou insinuar que a morte é melhor que uma vida de sofrimento e levar a pessoa a aceitar a eutanásia, ainda que não tivesse essa ideia espontaneamente. Uma vez a eutanásia liberalizada este comportamento dificilmente será penalizado.
pedro dragone: Quando, hoje em dia, de uma forma perfeitamente legal e compatível com a deontologia médica, um médico administra a um doente terminal (tipicamente doentes oncológicos), com dores lancinantes, uma overdose de sedativo que o põe inconsciente e a seguir lhe provoca a morte(*) está a fazer o quê? Por favor não brinquem com as palavras e os conceitos! A eutanásia é, acima de tudo, uma questão de humanidade ou falta dela. Não é tema para chicana política ainda que disfarçada com números. Tenham vergonha e um pouco mais de respeito pela inteligência dos outros. E a dor de quem sofre.
(*) sabendo o médico de antemão que a morte é o "efeito colateral" que vai ser provocado pela overdose.
Ia para lhe dizer que não respondo a perguntas imbecis mas depois arrepiei caminho. Um doente em situação terminal não está em condições de fazer o que quer que seja. Daí a necessidade da ajuda de terceiros. Tenho a certeza que mais tarde poderá haver mecanismos robóticos de administração da dose letal, accionados pelo olhar do doente por exemplo (quando isso seja possível!). Mas ainda assim alguém tem de carregar a dita dose letal no mecanismo robótico. No limite poderíamos dizer que o abastecimento do mecanismo robótico em toda a cadeia de abastecimento de drogas, desde a produção ao consumidor final, está 100% robotizada. Ainda assim haveria intervenção humana no desenvolvimento e concepção da dose letal, e na decisão de a desenvolver com esse fim. De acordo com a lei vigente todas essas pessoas, e particular quem programou o robot para administrar a droga em cada doente específico, poderiam ser criminalizadas, certo? Ou não certo?
Finalmente convém recordar que existe objecção de consciência. Nenhum médico é obrigado a ajudar a morrer quem quer que seja.
José Paulo C Castro: O efeito de indução será visível na pressão feita para que o indivíduo escolha morrer. Depois, dirão que foi uma escolha pessoal.

Nenhum comentário: