Mas … a Educação que falta? A Corrupção que abunda?
Foram escamoteadas neste edifício futurologista, como sempre aprumado na sua
construção? Parece-me que era preciso começar por aí, para diminuir tal dualidade. Mas disso não
se fala, é tabu. Como o tal AO da nossa humilhação….
OPINIÃO: Os desafios da velha sociedade dual
A sociedade dual há 60 anos, trinta antes
do nascimento do PÚBLICO. Texto de António Barreto lido na conferência
“Portugal... e agora?”, esta quinta-feira, na cerimónia que assinalou os 30
anos do PÚBLICO
PÚBLICO, 6 de
Março de 2020, 15:41
Era
nos anos sessenta, trinta anos antes do nascimento do PÚBLICO, que se reflectia
sobre a “sociedade
dual”. Foi nessa altura, tanto em Portugal
como no resto do mundo, que esse termo teve curso e êxito seguro. Para
simplificar, referia-se ao dualismo internacional ou ao dualismo interno ou
nacional. Pelo primeiro, designava-se a diferença entre países
desenvolvidos e países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, cada vez
mais distantes uns dos outros.
Assim se pretendia descrever o
dualismo interno: dentro de cada país, duas sociedades desenvolvem-se em
paralelo, muitas vezes afastando-se, com ritmos de crescimento, valores e
padrões de vida diferentes. Portugal era um exemplo flagrante. Dois
países ou duas sociedades viviam paredes-meias, uma moderna e desenvolvida,
outra tradicional e subdesenvolvida ou, eufemisticamente, em vias de
desenvolvimento. Uma principalmente rural e rústica ou agrária, outra
essencialmente urbana, industrial e de serviços. Os optimistas pensavam que,
mesmo a ritmos diferenciados, as duas sociedades acabariam por convergir. Os
cépticos consideravam que a separação era definitiva e que uma parte importante
do país seria deixada por conta ou ficaria entregue a si própria. Enquanto os
primeiros acentuavam as necessidades e as hipóteses de políticas públicas
voluntaristas de promoção da convergência, os últimos argumentavam que apenas
rupturas politicas e sociais permitiriam um dia assegurar a convergência ou
criar dinâmica de desenvolvimento para as regiões e comunidades mais atrasadas.
Este
raciocínio era similar ao que se fazia relativamente a países e ao mundo. Os optimistas acreditavam na convergência e na
aproximação entre países subdesenvolvidos e desenvolvidos. Os cépticos
garantiam que, salvo alteração fundamental de carácter político, essa
convergência nunca ocorreria, até porque em boa medida o desenvolvimento de uns
países se fazia à custa de outros, das suas matérias-primas, do seu trabalho e
dos seus recursos. As décadas seguintes trouxeram realidades novas, confirmação
ou negação do que se afirmava.
Portugal
vivia então todos esses problemas com intensidade. Subdesenvolvido ou em vias de desenvolvimento para
uns; desenvolvido, mas pobre, para outros.
E muito desequilibrado internamente, com a maior parte do território, da
sociedade e da população a viver lenta e tradicionalmente, a emigrar para as
cidades ou para o interior, a participar modestamente no produto, a usufruir
ainda mais pobremente dos benefícios da modernidade, da saúde, da educação, da
segurança, dos equipamentos modernos, da habitação e da cultura. A
minoria da população, por contraste, era largamente beneficiada pelas políticas
públicas, pelas iniciativas privadas e pela dinâmica dos mercados, com
rendimentos, produtos, privilégios, equipamentos e acesso a serviços
desproporcionados relativamente à dimensão do território. Os “desafios
da velha sociedade dual” eram estes: combater as dualidades, fazer com que a
maior parte da população e do território beneficiasse da sociedade moderna.
Estes
eram só parte dos “desafios”. Os portugueses conheciam outros,
talvez mais dramáticos. A pobreza
geral, quando comparada com os nossos vizinhos europeus. O atraso económico e
social ilustrado por numerosos indicadores, designadamente por um fortíssimo
analfabetismo e por uma absurdamente elevada mortalidade infantil. Três guerras
em África que se eternizavam. Uma emigração que mais se
assemelhava a uma “hemorragia demográfica”. Indicadores sanitários
impróprios para um país europeu. Uma reduzida integração das mulheres no espaço
público, na sociedade e na economia. Ausência de liberdades acrescentada a uma
real deficiência de legitimidade. Para muitos, eram estes os “desafios”, eram estas
as “aspirações”.
Passemos
por cima dos anos seguintes, não sem recordar que foram
estes que trouxeram a década de maior crescimento económico da história do
país, o início da integração europeia, um raro impulso ao investimento externo
e à industrialização, uma revolução política, a fundação da democracia e o
desenvolvimento do Estado social. Em
1990, quando nasce o PÚBLICO, os portugueses tinham percorrido um caminho único
e vertiginoso de mudança e de crise. A guerra acabara sem deixar demasiadas feridas.
Apesar de desastrada, a descolonização chegara ao fim. A democracia, depois de
combates arriscados e de ameaças perigosas, estava estabelecida. A integração
europeia iniciava a sua segunda etapa. A pobreza geral tinha diminuído
consideravelmente. A convergência de níveis de desenvolvimento com os países
europeus tinha finalmente avançado. Os equipamentos colectivos e os serviços
familiares cobriam o país. Timidamente iniciado nos anos sessenta, o Estado
social aproximava-se da universalidade e trazia alguma segurança a toda a
gente. Apesar das desigualdades notórias, a integração das mulheres era plena.
A emigração reduzia-se consideravelmente, dando mesmo lugar a saldos
migratórios positivos, isto é, vinham mais estrangeiros viver para Portugal do que
portugueses partiam para o estrangeiro. A sociedade surgia agora como plural,
situação inédita há décadas ou séculos. A globalização dava os seus primeiros
passos.
Muitos
dos dilemas dos anos sessenta, muitos dos desafios daquele tempo, pareciam bem
resolvidos. É verdade que se tinha perdido muito tempo com o fim da
ditadura, a guerra do Ultramar, a descolonização, a revolução, a nacionalização
seguida da reprivatização da economia e a liberalização da sociedade. Mas a
sensação geral era a de muitos deveres cumpridos, de dilemas ultrapassados, de
rapidez e de segurança nos caminhos percorridos. A fechar o século XX, as
comemorações dos 500 anos dos Descobrimentos e a Exposição Mundial de Lisboa
ilustravam o optimismo reinante. Os portugueses pareciam satisfeitos com eles!
Falavam-se todas as línguas, rezava-se a todos os deuses, comia-se de todas as
cozinhas e vestiam-se roupas de todas as cores! Ainda não era o turismo dos
dias de hoje, mas era a certeza de que Portugal entrava decididamente numa
época de abertura. Pelo mundo fora, o fim do comunismo e do apartheid dava um
formidável sinal de esperança e uma quase sugestão de aventura!
Nessa
altura, as aspirações de muitos portugueses eram já bem diferentes das décadas
anteriores. O desenvolvimento técnico, científico e cultural
estava agora à cabeça. As prioridades eram sempre aumentar e melhorar, já não
se falava de rupturas. Mais saúde, mais educação, mais cultura e mais ciência!
Os trinta anos que se seguem vão trazer isso tudo, mas em quantidades e qualidades
bem menores. E trouxeram problemas novos para os quais nem sempre estávamos
preparados. Além do mais, trouxeram uma crise económica e financeira
como não se via há muitas décadas. Mais o crescimento do terrorismo
pelo mundo inteiro.
Os portugueses vão descobrir de repente que tinham construído um mundo
novo em cima de velhos ou fracos alicerces. Que muitos países das margens
europeias de Leste convergiram mais e mais depressa com a Europa do que eles.
Que tinham mudado muito, mas os outros também. Que uma espécie de esgotamento
se tinha instalado no seu país. A economia quase deixou de crescer. A
capacidade produtiva instalada foi utilizada mas não aumentada ou renovada. Os
recursos em capital e tecnologia eram parcos. Verificou-se que afinal ainda nos
faltava muita educação, muita formação, muita ciência e muita cultura. Que a
desigualdade social e económica era profunda, mais acentuada do que em quase
toda a Europa. Que a Justiça parecia ser o mais renitente e o mais resistente
de todos os obstáculos à modernidade e ao desenvolvimento.
Que
se pode então dizer da “velha sociedade dual”? Será que se mantêm os problemas
e persistem os desafios? Como ainda hoje se fala, com insistência, do “litoral
desenvolvido” e do “interior abandonado”, será que vivemos situação semelhante
à dos anos sessenta ou noventa do século passado? A minha resposta é simples: não! Tudo é hoje
diferente. Ou antes, o essencial é muito diferente. A dualidade acentuada
parece ter sido esbatida. As condições constitucionais, políticas, jurídicas e
sociais fizeram com que hoje exista uma igualdade de condição e de estatuto que
não era a dos anos passados. A universalização dos grandes serviços de saúde,
educação e segurança criou condições de igualdade de acesso ou de oportunidades
inexistentes no passado. O que era a minoria da população que detinha a grande
maioria dos benefícios e facilidades passou a ser a maioria da população, agora
residente nas áreas metropolitanas. A maior parte da população e do território
era a sociedade tradicional, eventualmente rústica e rural. Hoje já não é
assim. A maior parte da população é urbana, trabalha nas indústrias e nos
serviços.
As grandes desigualdades (o
dualismo, se quisermos…) são hoje sobretudo sociais e concentradas nas áreas
metropolitanas. Os
principais dualismos são hoje sociais e económicos, são mais desigualdade do
que dualismo, encontram-se no interior das grandes áreas metropolitanas, Lisboa
(com Setúbal, Almada, Barreiro, Cascais, Amadora, Loures…) e Porto (com Gaia,
Aveiro, Braga, Guimarães…). Apesar de o interior continuar a ser o interior,
convêm não esquecer que o interior, pelos indicadores e pelas
características sociais e económicas, representa hoje mais de três quartos do
país! Ora, este interior já não é o que era. Já não é apenas a entidade
geográfica e social atrasada, subdesenvolvida e tradicional.
Na verdade, a dimensão temporal do
país mudou muito, o país ficou mais pequeno e mais rápido, tudo ficou mais
próximo e mais acessível. A integração das populações (rurais e urbanas, homens
e mulheres, interior e litoral, Norte e Sul) aumentou consideravelmente. As
condições sociais ou os estatutos de cidadania são hoje equivalentes. É verdade
que a integração, a concentração e a proximidade das populações não fazem
necessariamente a igualdade social, mas criam a igualdade de condição. A desigualdade é hoje sobretudo económica. Uma vez mais, essa desigualdade manifesta-se nas
grandes áreas urbanas ou metropolitanas. É aí que se encontram os muito
afortunados e os muito desfavorecidos. É dentro desses espaços, não nas
regiões, que encontramos as grandes divisões. Também é verdade que grande parte
do país se encontra hoje despovoada, mais despovoada do que há trinta anos. Mas
despovoamento não quer dizer necessariamente fonte de desigualdade. Há regiões
humanamente despovoadas que podem fazer integralmente parte da economia, da
natureza ou da ecologia, sem que seja a título de declínio ou despovoamento.
E hoje? Bem ou mal, alguns desafios e
aspirações de há sessenta ou trinta anos encontram-se ultrapassados ou
resolvidos. Perderam-se combates, ganharam-se batalhas. O debate político nem
sempre é esclarecedor sobre o presente e o futuro. Ora porque a propaganda
impera; ora porque a crítica ácida tem tendência para afastar a análise. Mas é
legítimo perguntar-nos: quais são os próximos desafios? Quais são, para além
das habituais prioridades políticas eleitorais, as exigências e as aspirações
mais importantes?
A
procura de um equilíbrio demográfico, com implicações políticas e estratégicas,
parece evidentemente estar à cabeça. É sabido que não podemos determinar com
exactidão a população que queremos ter daqui a trinta anos, mas podemos definir
as condições sociais e económicas que têm influência na criação desse equilíbrio,
hoje ameaçado pelo
envelhecimento, pela queda da natalidade e pela mudança radical de
costumes. As
políticas públicas para a demografia e para as migrações definem-se agora e
terão resultados dentro de décadas. Portugal e quase todos os países da Europa
estão em situação complexa perante a demografia. O que implica dificuldades em
muitas outras árias, políticas, sociais e económicas. Se as actuais gerações
não estiverem à altura de definir horizontes, não cumprirão um sério dever. E
correm o risco de alimentar, mais tarde, crises e desordens.
Em
consequência das dificuldades económicas e das crises nacionais e
internacionais, nas novas situações da globalização e da integração europeia, os
portugueses sabem agora que têm de tratar, com responsabilidade, de uma das
maiores dificuldades para o futuro: as condições de investimento e de desenvolvimento
duráveis. Os nossos compatriotas sabem agora, depois da crise de assistência
internacional, que a nossa estrutura produtiva é frágil e que não temos
suficientes recursos para gerar desenvolvimento. Se não queremos desistir, é
agora a altura certa para prever.
Depois das últimas décadas, foi-nos
dado ver que um traço da sociedade portuguesa se salienta: a desigualdade
social. Há algo na nossa história, na economia, na sociedade, na lei e nos
costumes que faz com que Portugal seja mais desigual do que muitos outros
países mais ricos, mais pobres ou igualmente remediados. Perceber e combater
essas desigualdades é uma exigência da liberdade e da decência.
De
igual modo, combate de gerações é o da Justiça, seguramente o mais difícil e
mais complexo da nossa agenda de desafios e aspirações. Sabemos que sem justiça
dificilmente teremos liberdade e democracia. E muito certamente teremos
desordem e atraso.
Vivemos,
finalmente, tempos inéditos em que, ao contrário da maior parte da nossa
história, os portugueses se dissolvem de modo crescente no universo europeu,
com enquadramento da globalização. A sua transformação em sociedade e
economia cosmopolitas aumentará a liberdade dos portugueses? Poderão os
portugueses consolidar o pluralismo social sem apagar alguns traços que
valorizam a sua autonomia? A evidente diminuição de independência e de
identidade pode contribuir para um reforço da liberdade? Estas são, para mim,
as perguntas mais cruéis. E os desafios mais difíceis.
Sociólogo
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