domingo, 8 de março de 2020

Tudo muito perfeito



Mas … a Educação que falta? A Corrupção que abunda? Foram escamoteadas neste edifício futurologista, como sempre aprumado na sua construção? Parece-me que era preciso começar por aí, para diminuir tal dualidade. Mas disso não se fala, é tabu. Como o tal AO da nossa humilhação….
OPINIÃO: Os desafios da velha sociedade dual
A sociedade dual há 60 anos, trinta antes do nascimento do PÚBLICO. Texto de António Barreto lido na conferência “Portugal... e agora?”, esta quinta-feira, na cerimónia que assinalou os 30 anos do PÚBLICO
PÚBLICO, 6 de Março de 2020, 15:41
Era nos anos sessenta, trinta anos antes do nascimento do PÚBLICO, que se reflectia sobre a “sociedade dual”. Foi nessa altura, tanto em Portugal como no resto do mundo, que esse termo teve curso e êxito seguro. Para simplificar, referia-se ao dualismo internacional ou ao dualismo interno ou nacional. Pelo primeiro, designava-se a diferença entre países desenvolvidos e países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, cada vez mais distantes uns dos outros.
Assim se pretendia descrever o dualismo interno: dentro de cada país, duas sociedades desenvolvem-se em paralelo, muitas vezes afastando-se, com ritmos de crescimento, valores e padrões de vida diferentes. Portugal era um exemplo flagrante. Dois países ou duas sociedades viviam paredes-meias, uma moderna e desenvolvida, outra tradicional e subdesenvolvida ou, eufemisticamente, em vias de desenvolvimento. Uma principalmente rural e rústica ou agrária, outra essencialmente urbana, industrial e de serviços. Os optimistas pensavam que, mesmo a ritmos diferenciados, as duas sociedades acabariam por convergir. Os cépticos consideravam que a separação era definitiva e que uma parte importante do país seria deixada por conta ou ficaria entregue a si própria. Enquanto os primeiros acentuavam as necessidades e as hipóteses de políticas públicas voluntaristas de promoção da convergência, os últimos argumentavam que apenas rupturas politicas e sociais permitiriam um dia assegurar a convergência ou criar dinâmica de desenvolvimento para as regiões e comunidades mais atrasadas.
Este raciocínio era similar ao que se fazia relativamente a países e ao mundo. Os optimistas acreditavam na convergência e na aproximação entre países subdesenvolvidos e desenvolvidos. Os cépticos garantiam que, salvo alteração fundamental de carácter político, essa convergência nunca ocorreria, até porque em boa medida o desenvolvimento de uns países se fazia à custa de outros, das suas matérias-primas, do seu trabalho e dos seus recursos. As décadas seguintes trouxeram realidades novas, confirmação ou negação do que se afirmava.
Portugal vivia então todos esses problemas com intensidade. Subdesenvolvido ou em vias de desenvolvimento para uns; desenvolvido, mas pobre, para outros. E muito desequilibrado internamente, com a maior parte do território, da sociedade e da população a viver lenta e tradicionalmente, a emigrar para as cidades ou para o interior, a participar modestamente no produto, a usufruir ainda mais pobremente dos benefícios da modernidade, da saúde, da educação, da segurança, dos equipamentos modernos, da habitação e da cultura. A minoria da população, por contraste, era largamente beneficiada pelas políticas públicas, pelas iniciativas privadas e pela dinâmica dos mercados, com rendimentos, produtos, privilégios, equipamentos e acesso a serviços desproporcionados relativamente à dimensão do território. Os “desafios da velha sociedade dual” eram estes: combater as dualidades, fazer com que a maior parte da população e do território beneficiasse da sociedade moderna.
Estes eram só parte dos “desafios”. Os portugueses conheciam outros, talvez mais dramáticos. A pobreza geral, quando comparada com os nossos vizinhos europeus. O atraso económico e social ilustrado por numerosos indicadores, designadamente por um fortíssimo analfabetismo e por uma absurdamente elevada mortalidade infantil. Três guerras em África que se eternizavam. Uma emigração que mais se assemelhava a uma “hemorragia demográfica”. Indicadores sanitários impróprios para um país europeu. Uma reduzida integração das mulheres no espaço público, na sociedade e na economia. Ausência de liberdades acrescentada a uma real deficiência de legitimidade. Para muitos, eram estes os “desafios”, eram estas as “aspirações”.
Passemos por cima dos anos seguintes, não sem recordar que foram estes que trouxeram a década de maior crescimento económico da história do país, o início da integração europeia, um raro impulso ao investimento externo e à industrialização, uma revolução política, a fundação da democracia e o desenvolvimento do Estado social. Em 1990, quando nasce o PÚBLICO, os portugueses tinham percorrido um caminho único e vertiginoso de mudança e de crise. A guerra acabara sem deixar demasiadas feridas. Apesar de desastrada, a descolonização chegara ao fim. A democracia, depois de combates arriscados e de ameaças perigosas, estava estabelecida. A integração europeia iniciava a sua segunda etapa. A pobreza geral tinha diminuído consideravelmente. A convergência de níveis de desenvolvimento com os países europeus tinha finalmente avançado. Os equipamentos colectivos e os serviços familiares cobriam o país. Timidamente iniciado nos anos sessenta, o Estado social aproximava-se da universalidade e trazia alguma segurança a toda a gente. Apesar das desigualdades notórias, a integração das mulheres era plena. A emigração reduzia-se consideravelmente, dando mesmo lugar a saldos migratórios positivos, isto é, vinham mais estrangeiros viver para Portugal do que portugueses partiam para o estrangeiro. A sociedade surgia agora como plural, situação inédita há décadas ou séculos. A globalização dava os seus primeiros passos.
Muitos dos dilemas dos anos sessenta, muitos dos desafios daquele tempo, pareciam bem resolvidos. É verdade que se tinha perdido muito tempo com o fim da ditadura, a guerra do Ultramar, a descolonização, a revolução, a nacionalização seguida da reprivatização da economia e a liberalização da sociedade. Mas a sensação geral era a de muitos deveres cumpridos, de dilemas ultrapassados, de rapidez e de segurança nos caminhos percorridos. A fechar o século XX, as comemorações dos 500 anos dos Descobrimentos e a Exposição Mundial de Lisboa ilustravam o optimismo reinante. Os portugueses pareciam satisfeitos com eles! Falavam-se todas as línguas, rezava-se a todos os deuses, comia-se de todas as cozinhas e vestiam-se roupas de todas as cores! Ainda não era o turismo dos dias de hoje, mas era a certeza de que Portugal entrava decididamente numa época de abertura. Pelo mundo fora, o fim do comunismo e do apartheid dava um formidável sinal de esperança e uma quase sugestão de aventura!
Nessa altura, as aspirações de muitos portugueses eram já bem diferentes das décadas anteriores. O desenvolvimento técnico, científico e cultural estava agora à cabeça. As prioridades eram sempre aumentar e melhorar, já não se falava de rupturas. Mais saúde, mais educação, mais cultura e mais ciência! Os trinta anos que se seguem vão trazer isso tudo, mas em quantidades e qualidades bem menores. E trouxeram problemas novos para os quais nem sempre estávamos preparados. Além do mais, trouxeram uma crise económica e financeira como não se via há muitas décadas. Mais o crescimento do terrorismo pelo mundo inteiro.
Os portugueses vão descobrir de repente que tinham construído um mundo novo em cima de velhos ou fracos alicerces. Que muitos países das margens europeias de Leste convergiram mais e mais depressa com a Europa do que eles. Que tinham mudado muito, mas os outros também. Que uma espécie de esgotamento se tinha instalado no seu país. A economia quase deixou de crescer. A capacidade produtiva instalada foi utilizada mas não aumentada ou renovada. Os recursos em capital e tecnologia eram parcos. Verificou-se que afinal ainda nos faltava muita educação, muita formação, muita ciência e muita cultura. Que a desigualdade social e económica era profunda, mais acentuada do que em quase toda a Europa. Que a Justiça parecia ser o mais renitente e o mais resistente de todos os obstáculos à modernidade e ao desenvolvimento.
Que se pode então dizer da “velha sociedade dual”? Será que se mantêm os problemas e persistem os desafios? Como ainda hoje se fala, com insistência, do “litoral desenvolvido” e do “interior abandonado”, será que vivemos situação semelhante à dos anos sessenta ou noventa do século passado? A minha resposta é simples: não! Tudo é hoje diferente. Ou antes, o essencial é muito diferente. A dualidade acentuada parece ter sido esbatida. As condições constitucionais, políticas, jurídicas e sociais fizeram com que hoje exista uma igualdade de condição e de estatuto que não era a dos anos passados. A universalização dos grandes serviços de saúde, educação e segurança criou condições de igualdade de acesso ou de oportunidades inexistentes no passado. O que era a minoria da população que detinha a grande maioria dos benefícios e facilidades passou a ser a maioria da população, agora residente nas áreas metropolitanas. A maior parte da população e do território era a sociedade tradicional, eventualmente rústica e rural. Hoje já não é assim. A maior parte da população é urbana, trabalha nas indústrias e nos serviços.
As grandes desigualdades (o dualismo, se quisermos…) são hoje sobretudo sociais e concentradas nas áreas metropolitanas. Os principais dualismos são hoje sociais e económicos, são mais desigualdade do que dualismo, encontram-se no interior das grandes áreas metropolitanas, Lisboa (com Setúbal, Almada, Barreiro, Cascais, Amadora, Loures…) e Porto (com Gaia, Aveiro, Braga, Guimarães…). Apesar de o interior continuar a ser o interior, convêm não esquecer que o interior, pelos indicadores e pelas características sociais e económicas, representa hoje mais de três quartos do país! Ora, este interior já não é o que era. Já não é apenas a entidade geográfica e social atrasada, subdesenvolvida e tradicional.
Na verdade, a dimensão temporal do país mudou muito, o país ficou mais pequeno e mais rápido, tudo ficou mais próximo e mais acessível. A integração das populações (rurais e urbanas, homens e mulheres, interior e litoral, Norte e Sul) aumentou consideravelmente. As condições sociais ou os estatutos de cidadania são hoje equivalentes. É verdade que a integração, a concentração e a proximidade das populações não fazem necessariamente a igualdade social, mas criam a igualdade de condição. A desigualdade é hoje sobretudo económica. Uma vez mais, essa desigualdade manifesta-se nas grandes áreas urbanas ou metropolitanas. É aí que se encontram os muito afortunados e os muito desfavorecidos. É dentro desses espaços, não nas regiões, que encontramos as grandes divisões. Também é verdade que grande parte do país se encontra hoje despovoada, mais despovoada do que há trinta anos. Mas despovoamento não quer dizer necessariamente fonte de desigualdade. Há regiões humanamente despovoadas que podem fazer integralmente parte da economia, da natureza ou da ecologia, sem que seja a título de declínio ou despovoamento.
E hoje? Bem ou mal, alguns desafios e aspirações de há sessenta ou trinta anos encontram-se ultrapassados ou resolvidos. Perderam-se combates, ganharam-se batalhas. O debate político nem sempre é esclarecedor sobre o presente e o futuro. Ora porque a propaganda impera; ora porque a crítica ácida tem tendência para afastar a análise. Mas é legítimo perguntar-nos: quais são os próximos desafios? Quais são, para além das habituais prioridades políticas eleitorais, as exigências e as aspirações mais importantes?
A procura de um equilíbrio demográfico, com implicações políticas e estratégicas, parece evidentemente estar à cabeça. É sabido que não podemos determinar com exactidão a população que queremos ter daqui a trinta anos, mas podemos definir as condições sociais e económicas que têm influência na criação desse equilíbrio, hoje ameaçado pelo envelhecimento, pela queda da natalidade e pela mudança radical de costumes. As políticas públicas para a demografia e para as migrações definem-se agora e terão resultados dentro de décadas. Portugal e quase todos os países da Europa estão em situação complexa perante a demografia. O que implica dificuldades em muitas outras árias, políticas, sociais e económicas. Se as actuais gerações não estiverem à altura de definir horizontes, não cumprirão um sério dever. E correm o risco de alimentar, mais tarde, crises e desordens.
Em consequência das dificuldades económicas e das crises nacionais e internacionais, nas novas situações da globalização e da integração europeia, os portugueses sabem agora que têm de tratar, com responsabilidade, de uma das maiores dificuldades para o futuro: as condições de investimento e de desenvolvimento duráveis. Os nossos compatriotas sabem agora, depois da crise de assistência internacional, que a nossa estrutura produtiva é frágil e que não temos suficientes recursos para gerar desenvolvimento. Se não queremos desistir, é agora a altura certa para prever.
Depois das últimas décadas, foi-nos dado ver que um traço da sociedade portuguesa se salienta: a desigualdade social. Há algo na nossa história, na economia, na sociedade, na lei e nos costumes que faz com que Portugal seja mais desigual do que muitos outros países mais ricos, mais pobres ou igualmente remediados. Perceber e combater essas desigualdades é uma exigência da liberdade e da decência.
De igual modo, combate de gerações é o da Justiça, seguramente o mais difícil e mais complexo da nossa agenda de desafios e aspirações. Sabemos que sem justiça dificilmente teremos liberdade e democracia. E muito certamente teremos desordem e atraso.
Vivemos, finalmente, tempos inéditos em que, ao contrário da maior parte da nossa história, os portugueses se dissolvem de modo crescente no universo europeu, com enquadramento da globalização. A sua transformação em sociedade e economia cosmopolitas aumentará a liberdade dos portugueses? Poderão os portugueses consolidar o pluralismo social sem apagar alguns traços que valorizam a sua autonomia? A evidente diminuição de independência e de identidade pode contribuir para um reforço da liberdade? Estas são, para mim, as perguntas mais cruéis. E os desafios mais difíceis.
Sociólogo

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