segunda-feira, 23 de março de 2020

Disparidades de culturas


Istambul, Hanói, Colóne as comparações entre os cicerones… Lembro-me da impressão que me causou há já muitos anos – “nem eu sei já” quantos, como aconteceu ao Guerra Junqueiro no seu regresso ao lar e à velha ama que ficou chorando quando ele partiu, mas não é o meu caso. Foi quando retornei, que demos por cá alguns passeios, entre os quais ao Palácio de Vila Viçosa, onde um cicerone contava com muita ironia – via-se que não era monárquico, ou tinha recados para o demonstrar, vivia-se o “Abril sempre” com muito arreganho (que, aliás, nunca esmoreceu) – contava, repito, o cicerone, com muita ironia pretensamente inteligente, factos do viver monárquico, na referência às baixelas ou riquezas reais que íamos visitando, sem um resquício de respeito pelo seu papel de contador de História, que apalhaçara em puro exibicionismo de uma boa disposição grosseira e deseducada, brincalhões que somos, porque nunca aprendemos…. Mas foi um aparte a referência, o Dr. Salles que me desculpe, nem sei mesmo se já contei a história, que isto das memórias é como as cerejas, embora estas não se possam repetir, como aquelas, cada uma comida a preceito e desaparecida de vez, fora os caroços, ao contrário das lembranças, por muitos caroços que tenham. Mas era desses cicerones que gostaríamos que existissem nos nossos espaços visitáveis, idênticos ao de Istambul e ao de Hanói, sabedores, respeitadores, competentes, em suma. Contudo, falta-nos o “caroço” para essas coisas somenos.

Uma sorte, essas viagens suas pelo mundo, para si, de certeza, para nós, por generosidade sua, em partilhá-las.

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 22.03.20
O guia é elemento fundamental na qualidade do turismo.
Lembro-me do guia que tivemos em Istambul que era professor de História de Cons
tantinopla numa Universidade local e que, falando português, aproveitava as férias académicas para ganhar mais umas Libras conduzindo grupos portugueses.
Foram três dias de palestra de manhã à noite de um interesse inexcedível. O Dinç[i] só se atrapalhou uma vez com uma pergunta que uma imbecil lhe fez ao passarmos junto do estádio do Galatasarai sobre quantos lugares o recinto tinha. Olhou para mim com alguma aflição a pedir-me ajuda e eu respondi de imediato em voz alta «10 mil». A Fulana, ufana, logo replicou que o Benfica tinha muito mais e exalou um número que esqueci de imediato. Não me fiquei e apenas comentei «Pullus ad margatitam». Os ruídos envolventes do trânsito e a pressa do guia na mudança de tema evitaram a aula de latim.
Lembro-me do guia que tivemos em Hanói que era professor de microbiologia na Universidade local e que, falando castelhano, também aproveitava as férias académicas para ganhar uns Dólares. Devia ter um nome complicado pelo que nos pediu que o tratássemos por Juan[ii]. Aprendera castelhano durante a comissão militar obrigatória que fizera em Cuba. Andou connosco – uma trintena de espanhóis e cinco falantes de português – durante os três ou quatro dias de visita ao norte do Vietname e volta que não volta, lá estava o Juan a fazer uma palestra formidável. A primeira vez que falou com enorme substância foi frente ao mausoléu de Ho Chi Minh. Não chegou a dez minutos para nos dar uma aula inesquecível da História do Vietname desde os tempos do mítico pássaro viet até ao final da guerra com os americanos. O «Tio Ho», afinal, não era comunista.
Para além destes dois professores de excepção, tivemos muitos outros guias por todas as partes do mundo que temos visitado, praticamente todos de grande sabedoria e enorme simpatia. Inequivocamente, todos eles verdadeiros Embaixadores dos respectivos países junto das «Cortes» visitantes.
Num nível diferente, temos apanhado também alguns motoristas que pouco ou nada sabem sobre os locais a que nos conduzem. Deve-se ao seu voluntarismo (mais ou menos inventivo) alguma informação que a nossa curiosidade lhes saca. Mas a credibilidade fica para confirmar mais tarde, quando estudarmos os temas. Foi o caso do «guia» (sim, era ele que guiava a carrinha) que nos calhou em sorte nas «afueras» de Colón.
Do complexo de observação turística das eclusas do lado atlântico, fomos até Portobello, uma «cidade» que foi importante até que o Canal a destronou. De facto, era por ali que passava tudo o que se dirigisse por caminhos de pé posto das margens do Atlântico para o Pacífico ou para o magro interland. Tudo? Sim, tudo com excepção da candonga que fugia por outros caminhos. É que em Portobello localizava-se a Alfândega e aquelas gentes vindas das Espanhas andavam desterradas para se enriquecerem a si próprias e não ao Rei. Até porque para contrabandista, Alfândega é o mesmo que Inquisição para judeu, xamã ou jesuíta. Então, sendo rica e local de concentração da colecta real, Portobello era muito assediada por piratas e corsários. Daí, as fortificações que tentavam defendê-la tanto na entrada do braço de mar que a serve como no espaço fronteiro à própria Alfândega. As populações que se arranjassem como pudessem e se alguma residente engravidasse num desses assaltos, isso até era bom para refrescamento do sangue. Engravidar de passante era punível; de assaltante era «acidente» desculpável.
Visitámos a igreja local que tem por orago o «Cristo Negro» cuja imagem é considerada muito milagrosa. Não representando Cristo como alguém de raça negra (o que Ele não foi), a cor resulta dos fumos da pólvora que à sua volta ardeu nas refregas navais e na batalha final em que o seu navio se afundou frente a esta «cidade» e donde, depois de algum tempo entre areias e lodos, a imagem foi resgatada e posta neste altar em que se encontra desde inícios do séc. XIX. Para além da devoção local (não consegui apurar se de mistura com algumas práticas vudus), na sua festa anual faz-se procissão pela «cidade» à qual aderem muitos forasteiros. E o comércio floresce e sobrevive até ao ano seguinte. Trabalhar? Não vi ninguém nessa actividade que deve ser considerada perniciosa. Excepção ao dono do restaurante onde almoçámos opiparamente. Ao todo, vi três edifícios com ar próspero: o restaurante e duas escolas de dança. Tudo o resto se distribui entre casas de quem se governa pela calada e por edifícios que foram monumentais e que hoje me fizeram lembrar a nossa vergonha de Jerumenha.
Regressámos a Colón pela estrada já nossa conhecida entre campos não cultivados e com uma sensação de tristeza.
(continua)
Henrique Salles da Fonseca
[i] - Professor Dinç Tümerkan
[ii] - Nunca lhe soubemos o nome verdadeiro, perdi-lhe o rasto
COMENTÁRIOS:
Anónimo 22.03.2020: Foi muito agradável e útil a leitura deste post. Como disse no post anterior, pouco se conhece de Panamá a não ser o seu canal, pelo que saber alguma coisa mais não desaproveita a ninguém. Não sei qual vai ser o percurso deste cruzeiro, mas é de aguardar por relatos que nos vão encher a medida.
Henrique Salles da Fonseca 22.03.2020: Dearest Friend: Este terceiro relato dá um prazer imenso. Gosto muito mesmo de ler as tuas crónicas. E espero a continuação... Até sempre Isabel O'Sullivan


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