Istambul, Hanói, Colón… e as
comparações entre os cicerones… Lembro-me da impressão que me causou há já
muitos anos – “nem eu sei já” quantos, como aconteceu ao Guerra Junqueiro no
seu regresso ao lar e à velha ama que ficou chorando quando ele partiu, mas não
é o meu caso. Foi quando retornei, que demos por cá alguns passeios, entre os
quais ao Palácio de Vila Viçosa, onde um
cicerone contava com muita ironia – via-se que não era monárquico, ou tinha
recados para o demonstrar, vivia-se o “Abril sempre” com muito arreganho (que,
aliás, nunca esmoreceu) – contava, repito, o cicerone, com muita ironia
pretensamente inteligente, factos do viver monárquico, na referência às
baixelas ou riquezas reais que íamos visitando, sem um resquício de respeito
pelo seu papel de contador de História, que apalhaçara em puro exibicionismo de
uma boa disposição grosseira e deseducada, brincalhões que somos, porque nunca
aprendemos…. Mas foi um aparte a referência, o Dr. Salles que me desculpe, nem
sei mesmo se já contei a história, que isto das memórias é como as cerejas,
embora estas não se possam repetir, como aquelas, cada uma comida a preceito e
desaparecida de vez, fora os caroços, ao contrário das lembranças, por muitos
caroços que tenham. Mas era desses cicerones que gostaríamos que existissem nos
nossos espaços visitáveis, idênticos ao de Istambul e ao de Hanói, sabedores,
respeitadores, competentes, em suma. Contudo, falta-nos o “caroço” para essas
coisas somenos.
Uma sorte, essas viagens suas pelo
mundo, para si, de certeza, para nós, por generosidade sua, em partilhá-las.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 22.03.20
O guia é elemento fundamental na
qualidade do turismo.
Lembro-me do guia que tivemos em Istambul que era professor de História de
Cons
tantinopla numa Universidade local e que, falando português, aproveitava as férias académicas para ganhar mais umas Libras conduzindo grupos portugueses. Foram três dias de palestra de manhã à noite de um interesse inexcedível. O Dinç[i] só se atrapalhou uma vez com uma pergunta que uma imbecil lhe fez ao passarmos junto do estádio do Galatasarai sobre quantos lugares o recinto tinha. Olhou para mim com alguma aflição a pedir-me ajuda e eu respondi de imediato em voz alta «10 mil». A Fulana, ufana, logo replicou que o Benfica tinha muito mais e exalou um número que esqueci de imediato. Não me fiquei e apenas comentei «Pullus ad margatitam». Os ruídos envolventes do trânsito e a pressa do guia na mudança de tema evitaram a aula de latim.
tantinopla numa Universidade local e que, falando português, aproveitava as férias académicas para ganhar mais umas Libras conduzindo grupos portugueses. Foram três dias de palestra de manhã à noite de um interesse inexcedível. O Dinç[i] só se atrapalhou uma vez com uma pergunta que uma imbecil lhe fez ao passarmos junto do estádio do Galatasarai sobre quantos lugares o recinto tinha. Olhou para mim com alguma aflição a pedir-me ajuda e eu respondi de imediato em voz alta «10 mil». A Fulana, ufana, logo replicou que o Benfica tinha muito mais e exalou um número que esqueci de imediato. Não me fiquei e apenas comentei «Pullus ad margatitam». Os ruídos envolventes do trânsito e a pressa do guia na mudança de tema evitaram a aula de latim.
Lembro-me
do guia que tivemos em Hanói que era professor
de microbiologia na Universidade local e que, falando castelhano, também
aproveitava as férias académicas para ganhar uns Dólares. Devia ter um nome
complicado pelo que nos pediu que o tratássemos por Juan[ii]. Aprendera castelhano durante a
comissão militar obrigatória que fizera em Cuba. Andou connosco – uma
trintena de espanhóis e cinco falantes de português – durante os três ou quatro
dias de visita ao norte do Vietname e
volta que não volta, lá estava o Juan a fazer uma palestra formidável. A
primeira vez que falou com enorme substância foi frente ao mausoléu de Ho
Chi Minh. Não chegou a dez minutos para nos dar
uma aula inesquecível da História do Vietname desde os tempos do mítico
pássaro viet até ao final da guerra com os
americanos. O «Tio Ho», afinal, não era comunista.
Para
além destes dois professores de excepção, tivemos muitos outros guias por todas
as partes do mundo que temos visitado, praticamente todos de grande sabedoria e
enorme simpatia. Inequivocamente, todos eles verdadeiros Embaixadores dos respectivos
países junto das «Cortes» visitantes.
Num
nível diferente, temos apanhado também alguns motoristas que pouco ou nada
sabem sobre os locais a que nos conduzem. Deve-se ao seu voluntarismo (mais ou
menos inventivo) alguma informação que a nossa curiosidade lhes saca. Mas a
credibilidade fica para confirmar mais tarde, quando estudarmos os temas. Foi o
caso do «guia» (sim, era ele que guiava a carrinha) que nos calhou em sorte nas
«afueras» de Colón.
Do
complexo de observação turística das eclusas do lado atlântico, fomos
até Portobello, uma
«cidade» que foi importante até que o Canal a destronou. De facto, era
por ali que passava tudo o que se dirigisse por caminhos de pé posto das
margens do Atlântico para o Pacífico ou para o magro interland. Tudo? Sim, tudo
com excepção da candonga que fugia por outros caminhos. É que em Portobello
localizava-se a Alfândega e aquelas gentes vindas das Espanhas andavam
desterradas para se enriquecerem a si próprias e não ao Rei. Até porque para contrabandista, Alfândega é o
mesmo que Inquisição para judeu, xamã ou jesuíta. Então, sendo rica e local
de concentração da colecta real, Portobello era muito
assediada por piratas e corsários. Daí,
as fortificações que tentavam defendê-la tanto na entrada do braço de mar que a
serve como no espaço fronteiro à própria Alfândega. As populações que se
arranjassem como pudessem e se alguma residente engravidasse num desses
assaltos, isso até era bom para refrescamento do sangue. Engravidar de
passante era punível; de assaltante era «acidente» desculpável.
Visitámos
a igreja local que tem por orago o «Cristo Negro» cuja imagem é considerada
muito milagrosa. Não representando Cristo como alguém de raça negra (o que
Ele não foi), a cor resulta dos fumos da pólvora que à sua volta ardeu nas
refregas navais e na batalha final em que o seu navio se afundou frente a esta
«cidade» e donde, depois de algum tempo entre areias e lodos, a imagem foi
resgatada e posta neste altar em que se encontra desde inícios do séc. XIX.
Para além da devoção local (não consegui apurar se de mistura com algumas
práticas vudus), na sua festa anual faz-se procissão pela «cidade» à qual
aderem muitos forasteiros. E o comércio floresce e sobrevive até ao ano
seguinte. Trabalhar? Não vi ninguém nessa actividade que deve ser considerada
perniciosa. Excepção ao dono do restaurante onde almoçámos opiparamente.
Ao todo, vi três edifícios com ar próspero: o restaurante e duas escolas de
dança. Tudo o resto se distribui entre casas de quem se governa pela
calada e por edifícios que foram monumentais e que hoje me fizeram lembrar a
nossa vergonha de Jerumenha.
Regressámos
a Colón pela estrada já nossa conhecida entre campos não cultivados e
com uma sensação de tristeza.
(continua)
Henrique
Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS:
Anónimo 22.03.2020: Foi muito
agradável e útil a leitura deste post. Como disse no post anterior, pouco se
conhece de Panamá a não ser o seu canal, pelo que saber alguma coisa mais não
desaproveita a ninguém. Não sei qual vai ser o percurso deste cruzeiro, mas é
de aguardar por relatos que nos vão encher a medida.
Henrique Salles da
Fonseca 22.03.2020: Dearest Friend: Este terceiro relato dá um prazer imenso. Gosto
muito mesmo de ler as tuas crónicas. E espero a continuação... Até sempre
Isabel O'Sullivan
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