O certo é que por cá já não se fala dos fugitivos
que procuram outros redutos de sobrevivência, centrados que estamos no nosso
vírus, lendo as boas crónicas, como as de Pacheco Pereira.
Justifica-se tão grande mudança, para uma doença que,
para a maioria, é razoavelmente benigna? Justifique-se ou não, vai-se saber
depois, porque o que se vive hoje é um ponto sem retorno.
JOSÉ PACHECO
PEREIRA PÚBLICO, 14 de Março de 2020
Há
muito pouco tempo escrevi sobre o “ruído do mundo” e a imprevisibilidade da
história. Nem vale a pena lembrar como, em meia dúzia de dias, o “ruído do
mundo” cresceu tanto que estamos na verdade “noutro mundo”, diferente daquele
que tínhamos nessa altura. Para os filósofos, para todas as
ciências que devem a Darwin o seu cânone, para os que sabem como funcionam as
mutações e percebem o DNA e a contínua chuva de partículas que nos atravessa, a
nós e aos vírus, para os ateus e agnósticos que não têm uma visão teleológica
do mundo e do devir, para os matemáticos, que lidam com o acaso, nada disto é
surpresa.
FOTO: Edgar Allan Poe. O conto A Máscara da Morte Vermelha devia
ser de leitura obrigatória em tempos de pandemia
A
humanidade tem uma longa história de defrontar epidemias e pandemias. O
mundo contemporâneo, com muito pouca memória, tem menos experiência. E quando
me refiro ao mundo contemporâneo, refiro-me à globalização, ao tecido social e
demográfico que está muito para além do imediato passado do século XX. Em 1918, havia
ainda a guerra, as trincheiras, as más condições de vida nas rectaguardas, a
escassez de cuidados médicos, a falta de higiene generalizada, nenhuns canais
de comunicação de massas, e foi nessa ecologia que a gripe pneumónica fez os
estragos que fez. Mas, pouco do que se passou na altura, há mais de cem anos
serve para hoje, embora haja algum adquirido científico da pandemia, que tem
vindo sistematicamente a ser estudada.
O mundo mudou muito, cidades, campo,
transportes, condições de vida, alimentação, padrões de vida e de consumo,
saúde pública e medicina, sociedade, comunicações, são muito diferentes de há
cem anos. As imagens de cidades e ruas vazias que pareciam apenas existir em
filmes de ficção científica, mostram a diferença pela estranheza. E é nesse
mundo que a pandemia da covid-19 se desenvolve e, se
não fosse trágico, poder-se-ia dizer que a natureza nos ofereceu um laboratório
sobre as doenças, mas também, e sobretudo, sobre os comportamentos humanos, sem
paralelo. O problema é que não é in vitro.
Um
dos principais aspectos da actual crise pandémica é a absoluta, contínua,
maciça dose de informação, comunicação, desinformação que todos estão a
receber, sem sequer poderem parar para pensar. É mesmo a “massagem” de McLuhan.
Não sei se é bom, se é mau, ver-se-á depois. Por um lado, as pessoas estão
melhor informadas, e presume-se que mais conscientes dos riscos que correm, por
si e pelos outros; por outro lado, há a possibilidade de reacções de pânico e
comportamentos irracionais, como a corrida a determinados bens de consumo que
nada indica estarem em ruptura, ou excessos de distanciação, ou o olhar para
tudo à nossa volta como um mar de vírus que nos toca mesmo com luvas e máscara
ou a dez metros de distância. Mas
há também o lado da desinformação, nalguns países suscitadas pelas agendas políticas
do poder e dos seus aliados na comunicação, como é o caso exemplar dos EUA, entre um displicente e desleixado, minimizando o que
acontece, e a Fox News a dar-lhe cobertura. E depois, genericamente, nas
chamadas “redes sociais, onde proliferam falsas notícias, teorias
conspirativas, pseudociência, boatos, tribalismo e populismo. Hoje, não há
maneira de impedir que este bas-fond suba miasmático para a atmosfera e
envenene o ar.
Outro
aspecto é o de encontrar na sociedade um contraste entre a solidão de muitos -
em particular o alvo preferencial da covid-19, os mais velhos - e um gregarismo
muito comercializado entre os mais novos, bares, concertos, vagabundagem
colectiva dos jovens adultos e circulação pelos novos espaços urbanos dos
centros comerciais, e a tentação da praia, como se não se soubesse viver sem
isso. Todos
estes movimentos ou paragens suportam uma nova perturbação que é o encerramento
das escolas, atirando para a casa e para horas que ainda são para muita gente
de trabalho, mesmo na situação actual, com centenas de milhares de crianças.
Acrescem a estas perturbações, os diferentes graus de quarentena ou isolamento
obrigatório ou voluntário de muitos milhares de pessoas, muitas das quais
dependentes de terceiros para obterem o que necessitam. A única
coisa que mitiga esta perturbação no espaço e no tempo individual e colectivo é
a esperança de que não dure muito.
Justifica-se
tão grande mudança, para uma doença que, para a maioria, é razoavelmente
benigna? Justifique-se ou não, vai-se saber depois, porque o que se vive hoje é
um ponto sem retorno. Claro que entre a prudência e o medo, o medo é mais
poderoso, e o medo moderno, comunicacional, urbano, entre o telemóvel e a Rede,
é tão inesperado e tão pouco experienciado nas sociedades sem guerra, que leva
à paranóia.
Deixo de lado, os efeitos
económicos sobre os quais muito se tem escrito e que será
provavelmente o rastro mais durável da pandemia: mas se for apenas este o
efeito, mais a médio prazo do que se está a passar, volta-se ao sítio com
algumas perdas, desigualmente distribuídas como é costume. Porém, evita-se a
componente social do medo que o desconhecido gera, muito mais fundo do que as
falências, os despedimentos, a crise, que são coisas que conhecemos e que são
muito perturbadoras para a vida de indivíduos e famílias, mas menos
perturbantes para a cabeça. Para quem não está na primeira linha de risco, é na
cabeça que os estragos vão ser maiores. Ámen.
Colunista
COMENTÁRIOS
CV CV INICIANTE: Inacreditavelmente pelo que se sabe o Reino
Unido está mesmo a fazer o que descreve neste momento, o desrespeito
inacreditável pelas pessoas, muitos dos quais lutaram nas fileiras da 2º guerra
para que a elite descendente os elimine num piscar de olhos, este comportamento
está a par do que Hitler fez a outros povos! 15.03.2020
nelsonfari EXPERIENTE: Sem dúvida um bom texto de JPP. Mas, quem está a
provocar esta sucessão de epidemias? Os que reflectem em termos reais, pela
observação e pela experimentação, tentando criar verdades científicas, não têm
dúvidas: a destruição de habitats de outras espécies, impulsionada pela
expansão urbana e a utilização dos recursos disponíveis até à sua quase
exaustão, em suma, a industrialização e a multiplicação de gigantescas áreas
urbanas densamente povoadas, levou a que as outras espécies cada vez mais
tenham de viver perto de urbanizações. A desflorestação, a invasão das
actividades agro-alimentares comprimem não só agricultores e produtores
independentes mas também animais. A transmissão de vírus para a espécie humana
fica, deste modo, facilitada. A incessante procura do lucro tudo esquece e
despreza. 15.03.2020
manuel.m2 INICIANTE: E se a insanidade vem de cima? Ou se o que vem de cima
é muito pior que a insanidade, uma espécie de experiencia em Eugenia? No meu
país, o RU ,o meu Governo finalmente esclarece por que razão não adopta as
medidas radicais em vigor no resto da Europa: Trata-se, não de impedir a
progressão do vírus, mas sim de permitir que este atinja 60% dos 66.5 milhões
de Britânicos criando imunidade "na manada",(Herd immunity), o que
daria protecção no futuro. A geração dos mais velhos seria dizimada com
evidente poupança nos custos sociais. Resta dizer que não é sabido ainda se, e
por quanto tempo, o novo vírus produz imunidade, essa sim garantida por uma
vacina possível num futuro não muito distante. 15.03.2020
Jose MODERADOR: As guerras feitas premeditadamente matam mais que o
covid-19. Estão em curso com falanges de apoio na comunicação social e nas
redes sociais. As motivações das guerras são a cobiça do que é de outros para
garantir o sustento da vida de sobrevivência que é ainda a da humanidade. A
luta contra o coronavírus tem outras motivações. Trata-se de os Estados fazerem
prova da sua capacidade de proteger os seus povos de um vírus novo para o qual
não há vacina e não há medicação para os infectados com covid-19. O uso do medo
existe para manter o mundo a funcionar e neste caso para parar o mundo. É
também o medo usado para justificar as guerras em nome da liberdade, da
democracia, da honra dos povos... Diz isso quem ataca e quem defende. É o
estado da técnica da acção política. Não sabemos agir melhor. 15.03.2020
Caetano Brandão INFLUENTE: Espectacular, bem haja PP, porque eu pensava que a
insanidade mental se tinha neste país e tal como diz, o vírus atinge
preferencialmente os miolos das pessoas e felizmente verifico que ainda há
alguém que pára para pensar com a cabeça e não com os cotovelos. Eu subscrevo
totalmente o que diz e não há dúvida que na raiz da solução para todos os
problemas neste mundo está no conhecimento e na sensatez, as quais advêm de
muita leitura, curiosidade, educação e não de instagrames e youtubes ou
facebooks. 14.03.2020
José Cruz Magalhaes MODERADOR: Ainda bem que a quarentena não abrange o pensamento, nem
a pandemia afecta a exposição da opinião e do comentário. 14.03.2020
bento guerra EXPERIENTE: Já cantava o Variações "quando a cabeça não tem
juízo, o corpo é que paga" 14.03.2020
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