O Dr. Salles não tem papas na língua. Ou seja, não tem complexos
de se afirmar com orgulho, naquilo que temos de mais valioso, que é uma certa
humanidade – não confundir com humanismo, que esse, ai de nós, mal nos tem acompanhado,
ao longo da nossa história de extrema incúria intelectual, seguida de um
humilhante sentimento de insignificância, quando em situação de paralelismo
cultural com outros povos, como bastas vezes é referido por Fernando Namora no seu livro “Diálogo em Setembro” de 1966, em que relata circunstanciadamente as várias participações em erudito congresso
científico em Genebra a respeito do futuro do homem num mundo em que o papel da
máquina se torna cada vez mais alucinantemente açambarcador e alienante no
universo humano, que nela repousa e dela depende. Como exemplo do afirmado,
transcrevo infra um excerto exemplificativo desse nosso complexo entre as
muitas referências a essa idiossincrasia tão extraordinariamente sentida, no
meio da riqueza intelectual demonstrada pelos congressistas europeus, cujas
temáticas Namora com agudeza
relata.
Deitando um olhar para a nossa História
colonizadora, Salles da Fonseca, de nobre
cepa lusitana, não tem complexos em denunciar
as facetas da nossa colonização mais humana e integradora dos povos – bem
diferente do segregacionismo altivo de outros povos europeus, e, no caso
presente, dos espanhóis aguerridos. Posição bem marcante de um brio próprio patriótico,
que a esquerda facciosa não tem pejo de calcar, em cobarde aviltamento próprio,
inventariador repudiante de um passado de extraordinários feitos e maldosamente
revestido, em altos brados, do labéu de racismo. Vale a pena ler o texto de Salles da Fonseca, como
exemplo de um corajoso orgulho nacional, hoje sem sentido:
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 25.03.20
Desde
os meus tempos de recruta em Abril de 1970 que não andava tanto a pé como neste
dia de visita a Cartagena de las Índias
e, acabado o circuito do op on-op off, deixaram-nos propositadamente longe do
ponto de embarque para que atravessássemos um parque com flores e animais.
Bonito, sem dúvida, mas eu já só ambicionava uma chaise longue ou coisa
equivalente. Fui direito à varanda do nosso camarote, sentei-me
confortavelmente e por ali fiquei a pensar na fatalidade da jovem cornúpeta até
serem horas de nos arranjarmos para o jantar.
E
o que me disse a bezerra antes de se finar?
Disse-me
ela que espanhóis e portugueses tivemos posições muito diferentes de estar no
mundo. Nós,
portugueses, tivemos grandes Senhores à frente da epopeia dos descobrimentos,
muitos deles, segundo consta, de tradição templária; dos conquistadores espanhóis
se diz que eram gente a contas com a Justiça que pelo degredo da conquista de
novas terras para a Coroa, obtinham o perdão real. Daqui resultaram atitudes diferentes no contacto com
os povos indígenas de tal modo que nós, portugueses, fomos os primeiros a ir e
os últimos a voltar; os espanhóis, não. Nós, portugueses, não fomos nenhuns
«santinhos» mas sempre houve a preocupação de seguir uma conduta a que hoje
chamamos Estado de Direito; os espanhóis parece que primaram pela chacina. Nós,
portugueses, suportámos a Inquisição por pressão espanhola; os espanhóis
inventaram-na. Finalmente,
a bezerra lembrou-me que nós, portugueses, fizemos muito mais mulatos do que os
espanhóis e que esse poderá ter sido o segredo de alcova que fez perdurar o
nosso Império. E tudo
isto, afinal, sem termos sido nenhuns «santinhos». Foi também nesta altura que me lembrei daquele angolano
preto, mecânico de aviões na delegação das OGMA em Luanda que a certa altura emigrou
para o Congo ex-belga onde ia ganhar muito melhor vencimento mas que, passado
um ano, regressou a Angola e às funções anteriores. Perguntado por que
regressara, respondeu: - Eles lá pagavam bem mas tratavam-me como preto;
aqui, Vocês pagam mal mas tratam-me como pessoa.
E
o navio apitou três vezes e acordou-me desta modorra de final de dia
culturalmente rico mas fisicamente muito cansativo. Deixámo-nos ficar na varanda
a ver o barco dos Pilotos da barra ao nosso lado, vimos os prédios altíssimos
até junto do farol no extremo da restinga que separa o mar da baía interior e…
aí está o balancé novamente. Contudo, uma mudança de rumo e o mar deixou de vir
de lado e passou a vir de frente. O balancé foi substituído por uma sucessão
sucessiva de «sobe e desces» suaves de que eu gosto mas no que não sou
acompanhado por muita gente. Uma nota final neste tema: a minha mulher e eu não
sabemos o que é enjoar.
Arranjámo-nos
e fomos jantar. À porta do restaurante no deck 4 já estavam os nossos amigos
e companheiros de viagens longas e de médio curso (Turquia,
périplo marítimo da Austrália, Índia, Sri Lanka, Vietname, Camboja) e voltámos às subtilezas gustativas. A bordo
come-se demais pelo que, frequentemente, saltamos um prato. Neste cruzeiro
fixámo-nos num vinho tinto tempranillo da Rioja «Marquez de ???» em que uma
garrafa era mais do que suficiente para nós os quatro e sobrava sempre uma
pinga para quem nos servia. De seguida, espectáculo de variedades no teatro
(assistimos a uma recriação formidável dos Abba) e, depois, recolha a quartéis.
A vida a bordo continua pelos bares e discoteca até quase ao raiar do dia mas
esse não é o nosso estilo.
E,
de onda em onda, lá vamos rumo à Jamaica,
a terra da madeira e da água, da abundância.
Amanhã
há mais se Neptuno quiser.
(continua)
Março de 2020
Henrique Salles da Fonseca
Eis o passo seguinte de “Diálogo em Setembro”, de Fernando Namora:
«A
um estrangeiro que se estima acaba-se quase sempre por disparar uma pergunta
alvoroçada: “Quando pensa vir a Portugal?” Repetimo-la a Robert Goutorbe. Ele
sorri, hesita na resposta.
-Não
me dou bem com os ares da Ibéria. São muito sufocantes para o meu gosto. Um
dia, porém…
Sabemos
o que ele quer dizer. Mas insistimos. Obrigamo-lo, quase, a serenar os nossos
brios com uma concessão:
-Notem,
porém, que eu sinto um certo afecto por Portugal, mesmo sem lá ter ido.
É
a frase do costume. Ouvimo-la a todo o passo, sob vários matizes, ouvimo-la com
amargura e até com irritação.
Com
amargura, com irritação. Estou em crer que somos dos povos que mais amam a sua
terra, como se ama uma pessoa, que mais desejam vê-la conhecida, apreciada,
reabilitada, por muito que o pacovismo ou o coração ferido nos levem, por
vezes, a amesquinha-la. A nossa hospitalidade, amiúde ansiosa, hospitalidade de
solitários e de desdenhados, tem decerto, nesse sentimento, a raiz funda. Por
outro lado, o facto de lá fora se nos evidenciar o nosso sequestro, que nos
aparta do mundo moderno, a nossa insignificância, que não é de tamanho, mas de
mentalidade, aguça ainda esse secreto desejo de resgate. Se, pela nossa parte,
ultrapassada a fronteira, a fronteira dos Pirenéus, sentimos, desde logo, que
viemos de longe, que tudo o que se passa lá em baixo se reduz a uma escala
aldeã, a acontecimentos domésticos, os outros recebem-nos como gente exótica
que desceu ao povoado. Aqui em Genebra, como em qualquer ambiente alheio,
agudiza-se a sensação de que nada somos, de que nada representamos. Fora do
País, prolonga.se, ou aviva-se, o nosso isolamento de serranos: gente de uma
terra ignorada que se procura laboriosamente no mapa, onde acontecem coisas que
só lá se compreendem e repercutem; arribadiços que saíram episodicamente da sua
terra. Não pertencemos ao mundo, não participamos de uma odisseia comum que faz
destes escritores, cientistas, políticos, homens de todas as pátrias sem
renegarem a sua. Escritores, cientistas, políticos que, seja onde for, se
sentem em sua casa, pois a sua presença, como a sua acção, reflectem-se num
viver comunitário. Nós aqui em Genebra, ou em qualquer ambiente alheio,
continuamos apenas a ser apenas portugueses.»
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