quinta-feira, 26 de março de 2020

Um homem de brio



O Dr. Salles não tem papas na língua. Ou seja, não tem complexos de se afirmar com orgulho, naquilo que temos de mais valioso, que é uma certa humanidade – não confundir com humanismo, que esse, ai de nós, mal nos tem acompanhado, ao longo da nossa história de extrema incúria intelectual, seguida de um humilhante sentimento de insignificância, quando em situação de paralelismo cultural com outros povos, como bastas vezes é referido por Fernando Namora no seu livro “Diálogo em Setembro” de 1966, em que relata circunstanciadamente as várias participações em erudito congresso científico em Genebra a respeito do futuro do homem num mundo em que o papel da máquina se torna cada vez mais alucinantemente açambarcador e alienante no universo humano, que nela repousa e dela depende. Como exemplo do afirmado, transcrevo infra um excerto exemplificativo desse nosso complexo entre as muitas referências a essa idiossincrasia tão extraordinariamente sentida, no meio da riqueza intelectual demonstrada pelos congressistas europeus, cujas temáticas Namora com agudeza relata.
Deitando um olhar para a nossa História colonizadora, Salles da Fonseca, de nobre cepa lusitana, não tem complexos em denunciar as facetas da nossa colonização mais humana e integradora dos povos – bem diferente do segregacionismo altivo de outros povos europeus, e, no caso presente, dos espanhóis aguerridos. Posição bem marcante de um brio próprio patriótico, que a esquerda facciosa não tem pejo de calcar, em cobarde aviltamento próprio, inventariador repudiante de um passado de extraordinários feitos e maldosamente revestido, em altos brados, do labéu de racismo. Vale a pena ler o texto de Salles da Fonseca, como exemplo de um corajoso orgulho nacional, hoje sem sentido:

POR TORDESILHAS ALÉM… - 6  NAVEGANTES E CONQUISTADORES
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 25.03.20
Desde os meus tempos de recruta em Abril de 1970 que não andava tanto a pé como neste dia de visita a Cartagena de las Índias e, acabado o circuito do op on-op off, deixaram-nos propositadamente longe do ponto de embarque para que atravessássemos um parque com flores e animais. Bonito, sem dúvida, mas eu já só ambicionava uma chaise longue ou coisa equivalente. Fui direito à varanda do nosso camarote, sentei-me confortavelmente e por ali fiquei a pensar na fatalidade da jovem cornúpeta até serem horas de nos arranjarmos para o jantar.
E o que me disse a bezerra antes de se finar?
Disse-me ela que espanhóis e portugueses tivemos posições muito diferentes de estar no mundo. Nós, portugueses, tivemos grandes Senhores à frente da epopeia dos descobrimentos, muitos deles, segundo consta, de tradição templária; dos conquistadores espanhóis se diz que eram gente a contas com a Justiça que pelo degredo da conquista de novas terras para a Coroa, obtinham o perdão real. Daqui resultaram atitudes diferentes no contacto com os povos indígenas de tal modo que nós, portugueses, fomos os primeiros a ir e os últimos a voltar; os espanhóis, não. Nós, portugueses, não fomos nenhuns «santinhos» mas sempre houve a preocupação de seguir uma conduta a que hoje chamamos Estado de Direito; os espanhóis parece que primaram pela chacina. Nós, portugueses, suportámos a Inquisição por pressão espanhola; os espanhóis inventaram-na. Finalmente, a bezerra lembrou-me que nós, portugueses, fizemos muito mais mulatos do que os espanhóis e que esse poderá ter sido o segredo de alcova que fez perdurar o nosso Império. E tudo isto, afinal, sem termos sido nenhuns «santinhos». Foi também nesta altura que me lembrei daquele angolano preto, mecânico de aviões na delegação das OGMA em Luanda que a certa altura emigrou para o Congo ex-belga onde ia ganhar muito melhor vencimento mas que, passado um ano, regressou a Angola e às funções anteriores. Perguntado por que regressara, respondeu: - Eles lá pagavam bem mas tratavam-me como preto; aqui, Vocês pagam mal mas tratam-me como pessoa.
E o navio apitou três vezes e acordou-me desta modorra de final de dia culturalmente rico mas fisicamente muito cansativo. Deixámo-nos ficar na varanda a ver o barco dos Pilotos da barra ao nosso lado, vimos os prédios altíssimos até junto do farol no extremo da restinga que separa o mar da baía interior e… aí está o balancé novamente. Contudo, uma mudança de rumo e o mar deixou de vir de lado e passou a vir de frente. O balancé foi substituído por uma sucessão sucessiva de «sobe e desces» suaves de que eu gosto mas no que não sou acompanhado por muita gente. Uma nota final neste tema: a minha mulher e eu não sabemos o que é enjoar.
Arranjámo-nos e fomos jantar. À porta do restaurante no deck 4 já estavam os nossos amigos e companheiros de viagens longas e de médio curso (Turquia, périplo marítimo da Austrália, Índia, Sri Lanka, Vietname, Camboja) e voltámos às subtilezas gustativas. A bordo come-se demais pelo que, frequentemente, saltamos um prato. Neste cruzeiro fixámo-nos num vinho tinto tempranillo da Rioja «Marquez de ???» em que uma garrafa era mais do que suficiente para nós os quatro e sobrava sempre uma pinga para quem nos servia. De seguida, espectáculo de variedades no teatro (assistimos a uma recriação formidável dos Abba) e, depois, recolha a quartéis. A vida a bordo continua pelos bares e discoteca até quase ao raiar do dia mas esse não é o nosso estilo.
E, de onda em onda, lá vamos rumo à Jamaica, a terra da madeira e da água, da abundância.
Amanhã há mais se Neptuno quiser.
(continua)
Março de 2020
Henrique Salles da Fonseca

Eis o passo seguinte deDiálogo em Setembro”, de Fernando Namora:
«A um estrangeiro que se estima acaba-se quase sempre por disparar uma pergunta alvoroçada: “Quando pensa vir a Portugal?” Repetimo-la a Robert Goutorbe. Ele sorri, hesita na resposta.
-Não me dou bem com os ares da Ibéria. São muito sufocantes para o meu gosto. Um dia, porém…
Sabemos o que ele quer dizer. Mas insistimos. Obrigamo-lo, quase, a serenar os nossos brios com uma concessão:
-Notem, porém, que eu sinto um certo afecto por Portugal, mesmo sem lá ter ido.
É a frase do costume. Ouvimo-la a todo o passo, sob vários matizes, ouvimo-la com amargura e até com irritação.
Com amargura, com irritação. Estou em crer que somos dos povos que mais amam a sua terra, como se ama uma pessoa, que mais desejam vê-la conhecida, apreciada, reabilitada, por muito que o pacovismo ou o coração ferido nos levem, por vezes, a amesquinha-la. A nossa hospitalidade, amiúde ansiosa, hospitalidade de solitários e de desdenhados, tem decerto, nesse sentimento, a raiz funda. Por outro lado, o facto de lá fora se nos evidenciar o nosso sequestro, que nos aparta do mundo moderno, a nossa insignificância, que não é de tamanho, mas de mentalidade, aguça ainda esse secreto desejo de resgate. Se, pela nossa parte, ultrapassada a fronteira, a fronteira dos Pirenéus, sentimos, desde logo, que viemos de longe, que tudo o que se passa lá em baixo se reduz a uma escala aldeã, a acontecimentos domésticos, os outros recebem-nos como gente exótica que desceu ao povoado. Aqui em Genebra, como em qualquer ambiente alheio, agudiza-se a sensação de que nada somos, de que nada representamos. Fora do País, prolonga.se, ou aviva-se, o nosso isolamento de serranos: gente de uma terra ignorada que se procura laboriosamente no mapa, onde acontecem coisas que só lá se compreendem e repercutem; arribadiços que saíram episodicamente da sua terra. Não pertencemos ao mundo, não participamos de uma odisseia comum que faz destes escritores, cientistas, políticos, homens de todas as pátrias sem renegarem a sua. Escritores, cientistas, políticos que, seja onde for, se sentem em sua casa, pois a sua presença, como a sua acção, reflectem-se num viver comunitário. Nós aqui em Genebra, ou em qualquer ambiente alheio, continuamos apenas a ser apenas portugueses.»

Nenhum comentário: