quinta-feira, 12 de março de 2020

Estamos em democracia



Tudo podemos dizer, e mesmo acusar, que não há mais tribunal censório nem pide opressora que nos prenda por tal motivo. Vivemos em democracia. Os tribunais, o governo, fazem o seu trabalho, tentam resolver – ou não – o que têm em mãos, indiferentes às vozes e aos escritos, aos grevistas e aos gritos desses que, destemperados, só sabem acusar, maledicentes e ingratos. Já podemos falar. Vivemos em democracia, trá lá lá. E escrever, como tão bem o faz António Barreto. Ninguém escuta, porém, nem lê. Aos gritos destemperados dos que alcançaram a liberdade democrática, responde a surdez da democracia governante. As côdeas que esta distribui, benfazeja, pelos governados, são imediatamente recobertas pelo amontoado sôfrego dos que governam para, acima de tudo, se governarem. Pobre António Barreto, que não desiste de apontar isso. Calculo que com vergonha própria. Mas como bem demonstra, não há solução. Estamos em democracia. No caos.
O que se tem vindo a verificar na Relação de Lisboa, um dos mais importantes tribunais do país, é simplesmente aterrador
ANTÓNIO BARRETO PÚBLICO, 8 de Março de 2020
É bem provável que nunca os portugueses tenham vivido um período igual na sua história. Não há memória de uma convergência de processos judiciais desta importância, nem de que um tal conjunto de crimes e infracções se tenha amontoado às portas dos tribunais e nos corredores das polícias. Nem aquando das revoluções de 1910, de 1926 e de 1974, até porque as revoluções, por definição, fazem a economia da justiça. Mas também é certo que, nos anos que antecederam e sucederam às revoluções, os portugueses, eméritos juristas falhados, se dedicaram vorazmente aos processos judiciais, tentando resolver nos tribunais o que à política, à economia e aos costumes pertencia. Mas nem nessas alturas se viu uma tão medonha coincidência de processos e de casos com fortes repercussões políticas como aquela a que assistimos agora.
Sucedem-se os raides de polícias, de inspectores, de agentes ou funcionários das Finanças, dos Impostos, da Judiciária e dos Estrangeiros, em casa de poderosos, nos bancos, nas empresas, nos clubes de futebol, nos escritórios de advogados, nas sociedades de consultoria e auditoria e em departamentos governamentais. Já quase não há semana sem rusga. De repente, pela manhã, brigadas de funcionários fiscais batem às portas de empresas e de domicílios. Sucedem-se as pesquisas e as contrafés. Deixaram de se fazer as velhas rusgas da ASAE, substituídas agora, dada a sua impopularidade, pelas buscas fiscais e equiparadas.
É triste, mas a verdade é que grande parte da actividade política, financeira, administrativa e recreativa do país está sob suspeita. Um primeiro-ministro, ministros e deputados são hoje nomes tóxicos. O maior grupo privado financeiro está nas ruas da amargura e parece ter dado conta de milhares de milhões de euros. Vários bancos de menor importância foram objecto de roubo e desvio e depois de inquérito, resgate e falência, ficando quase sempre por punir os responsáveis e por apurar o destino dos rendimentos. Todo o episódio dos interesses angolanos em Portugal e portugueses em Angola deixou em aberto uma visão infernal de promiscuidade e vulnerabilidade que parece sem remédio. Os famigerados roubos de Tancos e subsequentes episódios de fraude, ocultação e mentira deixaram as Forças Armadas com mácula e o Governo com culpa. Até as tragédias dos incêndios florestais acabaram por desvendar uma teia de corrupção, dissimulação e roubo.
As melhores empresas portuguesas da banca, das telecomunicações, da energia, dos cimentos e dos transportes foram destruídas ou vendidas sem critério, deixando quase sempre suspeitas corrupção ainda por averiguar. Uma das maiores indústrias portuguesas, a de jogadores e treinadores de futebol, está sob inspecção por centenas de funcionários, polícias e técnicos, naquela que é seguramente a mais porosa, para não dizer criminosa, das actividades económicas do país.
Sabe-se que, num país pequeno como o nosso, o tecido de interesses ilegítimos e de crimes de colarinho é tão denso que “isto anda tudo ligado”. Parece não haver casos simples. Daí os “megaprocessos”, entidade original e contraproducente. Processos com milhares de volumes, centenas de milhares de páginas, anos de inquérito, centenas de funcionários, milhões de horas de trabalho e dezenas de testemunhas são excelentes candidatos a nunca chegarem a conclusões, a prescreverem e a ficar de tal modo confusos e intrincados que não seja possível levar a julgamento. Pior ainda, são de tal modo complexos que se não podem investigar e instruir decentemente. É muito fácil uma insuficiência de prova “poluir” os restantes argumentos.
Durante muito tempo, pensava-se que o problema da justiça era sobretudo de meios, de pessoal e de processos legais. Assim como de passividade do universo legislativo e de receio do poder político. Agora percebe-se que é muito mais do que isso. É também de promiscuidade e corrupção. De luta entre profissões e corpos judiciais. De fidelidades partidárias e idiossincráticas de muitos dos seus agentes. De manipulação fraudulenta dos procedimentos legais. O que se tem vindo a verificar na Relação de Lisboa, um dos mais importantes tribunais do país, é simplesmente aterrador. Tudo parece estar a ser ali descoberto: sorteios falsificados, sentenças pagas e veredictos manipulados…
Como sair do atoleiro? É um dos mais aflitivos mistérios. Entregar a justiça à política é totalmente ineficaz, todas as experiências conhecidas mostram que a emenda é pior! Esperar pelos próprios magistrados? Já se percebeu que agora nem esse meio é possível. Ter confiança na justiça popular? Seria absolutamente odioso. Depositar esperança em formas populistas de justiça? O que se sabe é detestável. Não há ditador nem justiceiro que resolva o problema. Não há salvador nem virtuoso. Só podemos ter alguma esperança em sistemas de justiça, nas liberdades e na informação livre. Por isso muitos se perguntam todos os dias: estamos preparados para o que temos? Estamos prontos para lutar contra o que aí vem?
Temos magistrados em quantidade suficiente e com as competências técnicas adequadas para julgar estes assuntos de dinheiros, contrabando, fuga ao fisco, branqueamento internacional e corrupção organizada? Temos procuradores preparados para as tarefas de inquérito, instrução e acusação em todas essas áreas? Temos magistrados e procuradores honestos e disponíveis para garantir o cumprimento dessas tarefas? Temos processos de sorteio, de investigação e de recurso suficientemente isentos e à prova de intrusos? Temos leis adequadas para dar conta de tão difíceis tarefas de apuramento da verdade, de julgamento de criminosos e de castigo de infracções? Temos leis processuais que impeçam que os poderosos, ricos e políticos manobrem as investigações e se aproveitem dos sistemas de garantias, de recursos e de prescrições a seu favor? Temos a paz entre magistrados e procuradores que permita a realização de processos sem a intervenção do ciúme, da rivalidade, da vingança e da competição entre sociedades políticas, religiosas e laicas? Temos a certeza de que o ordenamento jurídico e o sistema judicial não constituem um monumental bodo de protecção aos poderosos, aos milionários, aos políticos, aos famosos e aos corruptos?
Está a justiça portuguesa à altura da tarefa? Às vezes, fazer a pergunta é dar a resposta.
Sociólogo
COMENTÁRIOS:
OldVic1 MODERADOR: "Como sair do atoleiro? É um dos mais aflitivos mistérios.": o atoleiro acaba quando a maioria do povo português se tornar intolerante a estas coisas, sejam elas pequenas ou grandes, porque as pequenas fazem o chão onde se apoiam as grandes. Até agora não foi o que aconteceu. Se tivesse que apostar, tendo em conta a nossa história, diria que nunca acontecerá. 09.03.2020
Manuel Pessoa INICIANTE: Considero errado apontar todos estes problemas, nomeadamente aqueles que a Justiça vive e enfrenta, sem analisar com maior profundidade se eles decorrem ou não do ambiente social em que nos deixámos cair. Sabemos que o inventário de problemas de AB só pecará por defeito. Então, concluo, é porque há um caldo de cultura que proporciona este caos. A aceitação, ou não reprovação clara e explícita, de atitudes fundamentadas na ganância por dinheiro e benefícios individuais haveria de, mais tarde ou mais cedo, atingir e toldar a sensatez que requeremos para o pessoal da Justiça. Será que nós (a sociedade) estamos a criar condições para que o caos não possa instalar-se na vida colectiva? E, se não estamos, com que legitimidade nos queixamos?
09.03.2020
Coletivo Criatura INFLUENTE: Há uma afirmação de que sempre duvidei: deve-se pagar bem aos juízes para serem bons profissionais e não corruptos! Ora, se ganham 7 mil euros, logo querem ganhar 200 mil numa consultoria; se ganham estes 200 mil, abrem uma empresa para ganhar uns milhões por ano, etc., etc., etc. A honestidade e empenho não se compra ao dar-se para as mãos milhões de euros. Devem ganhar bem? Sim devem! Mas devem ganhar muito bem, dentro dos parâmetros deste país com salários de miséria. Quanto mais dinheiro e mais luxos, mais insaciáveis são as pessoas! E quantos mais luxos e distantes nos honorários, em relação aos restantes portugueses, mais se julgam impolutos e fora dos critérios de avaliação da restante sociedade! É o que estamos a assistir! 09.03.2020
Francis INICIANTE: Inevitavelmente o cidadão quando vê os titulares de cargos judiciais a serem aumentados de forma significativa, apesar das limitações financeiras do Estado, e do estado calamitoso do sector, dos mais improdutivos do país, só pode tirar uma conclusão - estão a ser pagos favores- …08.03.2020
Fowler Fowler INICIANTE: Este órfão do VPV, alinhado com Ventura na procura e exploração de furúnculos e pontos negros do regime democrático, confunde dolosamente a árvore com a floresta, passando, mais uma vez, um atestado imisericordioso à Justiça de portuguesa, esquecendo que as falhas humanas dos seus agentes denunciadas pela imprensa livre servem sempre de oportunidade para afinar e melhorar a qualidade dos recursos humanos do sistema judicial, reprimindo dentro da hierarquia dos tribunais qualquer violação da legalidade democrática. Mas percebe-se a intenção deste justiceiro: o Processo Marquês está na fase (final) de instrução e espera que o juiz esteja à altura de meter "a malta fandanga" na cadeia. Estado de Direito democrático não faz parte do vocabulário retórico deste justiceiro com óculos de osso. 08.03.2020
Armando Mendonça.203695 INICIANTE: não sei se está à altura... apesar de ser notória a "rebaldaria" que grassa no sistema judicial há anos; apesar da protecção corporativista; apesar das sentenças obnóxias; apesar dos dislates meramente destinados a protelar a efectiva aplicação imparcial da justiça, sem que os processos "escorregassem" inexoravelmente para a sua caducidade irremediável; apesar de ainda há poucos meses / anos toda esta gente, agora em investigação, parecer impoluta e merecedora de toda a insuspeição: os que ficam são os sãos, os idóneos, os incorruptíveis? não sei se são, mas cá estaremos para ver, porque tenho muitas dúvidas. 08.03.2020
Carlos Brígida INICIANTE: Um artigo excelente!! 08.03.2020
Ceratioidei EXPERIENTE : Acredito que a Justiça está à altura. É muito difícil combater maus hábitos, mas não é impossível. O que se está a passar é a Justiça a funcionar. É feio? Muito mais feio seria se nada acontecesse. Finalmente, digo eu. Todos temos problemas e desafios, a questão é- sempre - como se resolvem. Confio no Senhor Doutor Piçarra e na sua equipa. Força! Vale a pena. 08.03.2020
Nuno Silva EXPERIENTE: A verdade, verdadinha, é que nem o Cavaco do BPN, nem o Marcelo da TVI, deram conta do recado nesta questão dos juízes superiores corruptos e "empreendedores". Mas é para estas, e outras de gravidade tal, que elegemos um Presidente... 08.03.2020
JLourenço INICIANTE: Está mais do que na altura de se fazer a eternamente adiada reforma da justiça, do endurecimento penal da corrupção, de uma verdadeira dotação de meios para quem investiga, etc. Ou isto começa a serfeito ou a democracia vai ser engolida pelos populismos e extremismos. 08.03.2020
AA...Para a mentira ser segura ... tem que ter qualquer coisa de verdade EXPERIENTE: Os agentes da justiça são, neste momento, o problema e não a solução. Os srs juízes andavam muito incomodados com os tribunais a cair de podres. Bastou este governo lançar-lhes uns milhares de euros nas suas remunerações e nunca mais piaram. Agora descobre-se que coçam as costas e protegem-se uns aos outros, vendem sentenças e manipulam sorteios para favorecerem os amigos. A juntar a isto tudo temos uma ordem de advogados a assobiar para o lado e cúmplice em situações kafkianas de que muitos cidadãos são vítimas. Isto está sem remédio. É o país que temos. 08.03.2020
cisteina EXPERIENTE: É medonho o que se tem passado, constatamo-lo todos os dias, sem que saiam sentenças condenatórias, defensores (advogados) e fazedores da justiça (magistrados e outros), perante tal lamaçal no pântano, juntam-se para que nada aconteça, protegem-se uns aos outros: na política, na banca, no futebol, na justiça, por aí fora, os maiores poderes, alimentam-se centenas de tubarões à custa do Zé povinho e do país que vai minguando e definhando. Ninguém ajuda, pior e mais nefasto ainda, o nosso PR vestiu há muito a bata branca do anestesista, maneiras suaves e paninhos de lã, continua a pôr e a deixar-nos dormir, falta-nos o cidadão que, sabedor, competente e com mão firme, abra, observe, corte fundo e cosa para que tudo fique limpo.
08.03.2020
José Carvalho INFLUENTE: Não, não somos todos iguais, acontece é que as pessoas realmente decentes são uma minoria. É triste dizer isto, eu sei, mas.. . Mas não podemos desistir, apesar do descalabro que se aproxima.
08.03.2020
rafael.guerra EXPERIENTE: Miterrand já tinha avisado os seus ministros: "Cuidado com os juízes, eles mataram a monarquia, eles matarão a República". O estado de direito não é o estado do direito, nem é a democracia. Somente o poder político é eleito pelo povo. 08.03.2020
Pedotec INICIANTE: Fico bastante contente pelo facto de, finalmente, alguma atenção se estar a virar para a área da justiça. Sempre exercida de forma completamente desligada da realidade e das necessidades sentidas pele sociedade em geral. Autismo, pompa e, visivelmente agora, corrupção grosseira, impregnam advogados e magistrados. Em 20111 fiz queixa de uma advogada para a Ordem dos Advogados. 1 ano depois fui notificado que tinha sido aberto processo disciplinar. Agora fui informado que o processo foi arquivado por ter prescrito. Um texto de 4 paginas, em "legalês" típico, invocando vários artigos da Lei, num estilo gongórico, afirma em resumo que o processo só andou em 2019 e que verificaram que tinha prescrito 3 anos antes. Nem uma palavra sobre ter estado a apodrecer 7 anos. Esta gente não é como nós! 08.03.2020
António Cunha MODERADOR
Essa gente vive acima de nós. Faz ameaças gratuitas se não obtiver os aumentos, têm privilégios de países ultra ricos, auferem salários iguais aos praticados na Escandinávia, férias a rodos, subsídio de habitação em perto de €800, ... Enfim, um total desequilíbrio com a realidade portuguesa. Uma afronta para os cidadãos que, supostamente, defendem. Uma casta, portanto. 08.03.2020
Macuti EXPERIENTE: Aconteceu o mesmo comigo. Fiz uma participação à Ordem dos advogados, contra um advogado ( ilustre colega!) que me patrocinava e acabou a defender a parte contrária: o argumento utilizado pela Ordem para defender o seu associado foi o da prescrição. Fazer uma participação a esta Ordem é perder tempo! Acontece o mesmo com os agentes de execução. ( CAAJ). 08.03.2020
ana cristina MODERADOR: A quem interessa um aparelho judicial limpo, forte, eficaz? Certamente não ao poder político... sim, toda esta realidade é aterradora. A solução tem de começar por partidos focados no interesse público, focados na melhoria da vida dos portugueses. O que acontece é que os melhores se afastam desse lamaçal mafioso em que se tornou cada partido. Como António Barreto fez. 08.03.2020
Jose MODERADOR: Cara ana cristina Faço uma análise diferente da sua, da de AB e da de JonasAlmeida. Na minha análise entra o tempo de poderes de legitimidade revolucionária entre 25 de abril de 74 e 2 de abril de 76. Nesse período iniciou-se a "revolução democrática e nacional" como estava escrito no programa do PCP. Essa revolução democrática e nacional consistia em fazer chegar democratas a todos os postos de poder do Estado Novo de Salazar transformando-o no Estado Democrático. Esse processo foi muito rapidamente interrompido, antes de chegar à Justiça e à maior parte dos topos das hierarquias do Estado Novo. A opção foi a coligação reaccionária: PS,PPD,CDS,ELP,MDLP,Conego Melo, outros Bispos e rede bombista contra o movimento popular e militar para preservar o Estado Novo agora a mostrar o que é. 08.03.2020

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