Enriquecedora, naturalmente, dada a leitura que propõe,
de um novo “Apocalipse”, mais real, com as diversas ilações.
OPINIÃO CORONAVÍRUS: O vírus que
está a matar a globalização
Vale a pena ler, ou reler, A Peste
Escarlate de Jack London e reflectir sobre a fragilidade das sociedades humanas
que se podem esvair como “a espuma do mar”.
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES PÚBLICO, 15 de Março de 2020
1.“O
trabalho do homem é efémero e esvai-se como a espuma do mar…” Esta é uma das frases mais marcantes da distopia
escrita em 1912 por Jack London, pseudónimo literário de
John Griffith Chaney, A Peste Escarlate (The Scarlet
Plague no título
original em língua inglesa). A par do britânico H. G. Wells
(Herbert George Wells), criador
de obras como A Máquina do Tempo (1895)
ou A Guerra dos Mundos (1898), Jack
London foi um dos pioneiros do género ficção científica e de distopias que
imaginam para a humanidade um futuro pós-apocalíptico.
Na
Peste Escarlate, a narrativa ficcional decorre à volta de uma pandemia
(o termo não era usado na época) originada por uma bactéria extremamente
contagiosa e mortal, que este situou no ano 2013. O enredo tem como
personagem central um octogenário professor de Literatura Inglesa da
Universidade da Califórnia, em Berkley, James Howard Smith, um dos escassos
sobreviventes dessa catastrófica pandemia que destruiu toda a civilização
humana. Ao longo do livro, James Howard Smith relata os extraordinários
acontecimentos por si vividos no início do século XXI, aos seus vários netos.
Estes ouvem-no com um misto de curiosidade, incredulidade e incompreensão —
há muitas palavras e realidades que desconhecem totalmente. Para eles, a
realidade humana normal é o ‘estado de natureza’ uma vez já nasceram após
colapso civilizacional.
2.
Há paralelismos estranhos e algo perturbadores entre o imaginário ficcional
de Jack London de há um século e a realidade social e económica hoje vivida com
a pandemia da covid-19. No início, “ninguém se alarmou excessivamente. Houvera
poucos mortos; as mortes, porém, foram rápidas ao que parece” (A Peste
Escarlate, trad. port., Quasi, 2008, p. 37). Nessa altura, existia uma grande confiança na ciência
médica pelo que “nós, na Califórnia, assim como por toda a parte, não nos
afligíamos em excesso. Todos acreditavam que os bacteriologistas achariam meio
de aniquilar o novo germe, como já tinham feito, no passado, quanto a outras
doenças” (p.38).
Na distopia de Jack London, a
confiança da sociedade na ciência e no progresso da medicina era muito elevada
no início do século XXI. Todavia, essa confiança rapidamente se desvaneceu,
dando lugar pânico e ao descontrolo social, pelo alastrar mortífero do novo
germe, infectando cada vez mais seres humanos. “O que, porém,
se tornava inquietante era a rapidez prodigiosa com que o germe destruía os
homens; […] Podia-se estar uma noite à mesa com uma pessoa de boa saúde, e, no
dia seguinte, levantar-se cedo e chegar à janela… para ver passar o caixão do
nosso comensal da véspera!” (idem). Na
distopia, as consequências conjugadas do falhanço da ciência, dos poderes
públicos lidarem adequadamente com a pandemia e do pânico social instalado
foram aterradoras: paralisia nos transportes, ruptura do abastecimento de bens
e serviços, seguida eclosão de pilhagens e violência generalizadas que levaram
ao colapso total.
3. Uma
das coisas mais curiosas da ficção de Jack London é também a localização
dos acontecimentos na Califórnia, na cidade de São Francisco e área envolvente
— no que hoje é usualmente designado por San Francisco Bay Area. Na proximidade está também Silicon
Valley. Como é bem conhecido, esta é uma
das áreas económicas e tecnológicas mais importantes dos EUA e do mundo. Empresas fundamentais para a actual globalização e
sociedade em rede, como a Google, o Twitter, o Facebook, o eBay ou a Apple,
entre outras, têm as suas instalações centrais nessa região da Califórnia. A
Internet e revolução digital que hoje fazem parte das nossas vidas, impregnando
os nossos hábitos sociais e económicos, tiveram fundamentalmente origem na
mesma área onde decorre a distopia de A Peste Escarlate.
Jack
London não antecipou que São Francisco, cidade onde nasceu e viveu, nem o
vizinho Silicon Valley seriam, em finais do século XX e inícios do século XXI,
o maior centro tecnológico impulsionador da globalização que vivemos. Nem que a
pandemia teria origem na China e rapidamente se espalharia a partir daí dada a
sua centralidade na globalização de hoje. Mas antecipou como a civilização humana, mesmo
a mais elevada, tecnológica e sofisticada, é frágil: “o trabalho do homem é
efémero” e pode esvair-se “como a espuma do mar…”. Para além
da ameaça à vida humana, que pode ser mortal, o novo vírus SARS-CoV-2
(coronavírus), que originou a pandemia da covid-19, está a matar uma outra
criação humana: a economia globalizada em que vivemos.
4. Em
Fevereiro, no Fórum Económico Mundial um artigo assinado por John Letzing, enunciava
cruamente o problema: “A covid-19 tem implicações potencialmente graves para
a economia global”. As consequências da sua difusão estão a afectar “sectores económicos em todo o mundo, desde
os produtores agrícolas nas Américas até aos fabricantes de painéis solares na
Índia passando pelos trabalhadores de turismo na Ásia.” Notava-se no mesmo
texto que, para além das preocupantes repercussões na saúde humana da covid-19
“o impacto económico do surto deste vírus tem também implicações potencialmente
desastrosas”. Em inícios de Março tornou-se ainda mais evidente esse risco e
sua real dimensão.
A covid-19 está a afectar,
crescentemente, as cadeias de abastecimento das empresas e a atrasar, ou
interromper, operações de fabrico de produtos um pouco por todo o mundo. As
empresas e organizações mais vulneráveis começaram por ser aquelas que dependem
largamente, ou de forma exclusiva, de fábricas na Ásia, em particular na China,
mas também da Coreia do Sul e Japão. Entretanto,
a pandemia alastrou para a Europa e EUA, dando-lhe uma outra amplitude ainda
mais global. Está a levar a uma semiparalisação das suas sociedades e
economias, com particular gravidade em países como a Itália. As populações e
sectores mais globalizados — do comércio internacional ao turismo, passando
pelos estudantes Erasmus — vistos até agora como um way of life sofisticado e
modelo a seguir, estão as primeiras vítimas de um vírus que ameaça destruir a
globalização.
5. Fronteiras
fechadas, aeroportos quase vazios, circulação de pessoas drasticamente limitada
a nível internacional e no interior das cidades, cadeias de abastecimento desarticuladas
e lojas sem clientes ou encerradas. Estamos a viver uma desglobalização
acelerada de consequências potencialmente desastrosas para a economia e o
emprego. Não tenhamos ilusões. Não é uma questão de termos, ou não termos,
simpatia pelas elites globalizadas, nacionais e internacionais, que gravitam à
volta do Fórum Económico Mundial, as quais são os maiores beneficiários do sistema
económico-social-político instituído nas últimas décadas. Mas uma desglobalização nestas circunstâncias —
forçada pelo multiplicar de casos um vírus potencialmente mortal e no meio do
pânico social —, nunca irá corrigir as muitas assimetrias e injustiças da
globalização. Muito pelo contrário, provavelmente irá acentuá-las,
afectando, ainda mais, as partes da população já mais frágeis e desfavorecidas.
Na
realidade, a nível internacional, está já a desencadear-se uma
espiral de competição ainda mais predatória do que a já existente, onde cada um
tentará minimizar os danos económicos e sobreviver no mercado à custa dos
restantes. A guerra de
preços que se desencadeou nos mercados petrolíferos, numa triangulação que envolve a Arábia Saudita, a Rússia e indústria de shale oil dos
EUA é um primeiro sinal inequívoco da engrenagem em marcha. Pode
arruinar famílias, empresas e países inteiros que dependem crucialmente de
receitas do petróleo. Mas se esta competição predatória na energia pode
favorecer alguns, que a compram a preço mais baixo, chegará a outros sectores
da actividade económica, despertando os piores instintos do ser humano.
Entre um vírus potencialmente fatal e
medidas para o travar que podem deixar a economia seriamente danificada, ou
mesmo em ruínas, há nos próximos tempos decisões extraordinariamente difíceis a
tomar. Vale a
pena ler, ou reler, Jack London e reflectir sobre a fragilidade das sociedades
humanas que se podem esvair como “a espuma do mar”.
COMENTÁRIOS
ana amaro.886896INICIANTE: Óptima análise – com o bónus acrescido da pertinente
referência literária. Embora a propaganda permanente dos obscenamente ricos e
dos politicamente motivados – seus exclusivos beneficiários – tenderá não só a
manter-se, mas a intensificar-se, a globalização de cariz económico-financeiro
e o globalismo ideológico, têm os dias contados. Inevitável – c'est la vie! Paz
à sua alma. Chega a ser caricato, mas também revelador do grau patológico que a
ganância e o fanatismo podem atingir, que seja um vírus sanitário que venha
agora aplicar-lhe este golpe de misericórdia e não as suas terríveis consequências
humanas e sociais.
Fernando Ferreira, EXPERIENTE: Isto só prova que a globalização, globalizou tudo. Ou
queriam apenas naquilo que convém? 16.03.2020
Manuel Brito.205795 MODERADOR Interessantíssimo artigo e muito curioso o romance de
Jack London, que desconhecia por completo. Só não percebi exactamente o que
entende por elites desglobalizadas. 16.03.2020 Joao INICIANTE Não
mata a globalização. Sejamos sérios, é um pequeno tropeção que faz reflectir
especialmente sobre a utilidade e a fiabilidade do Estado. Mas a globalização
entendida como comércio livre entre Estados que se respeitam essa não vai parar
nem pode parar. 16.03.2020
PRO MODERADOR Parece
que estamos a viver num filme distópico. Mas tenho confiança na sociedade e
principalmente nos Europeus. Juntos conseguiremos vencer esta fase. 15.03.2020
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