Depois de um tal escândalo que encerra a
maioria das populações nos seus lares, com invisível mas não despicienda pulseira
electrónica, ainda bem que há os estudiosos e analistas, como Pacheco Pereira que vão preenchendo com as suas
reflexões os dias em que, tal como a Inês
Pereira, solteira e forçada pela preconceituosa mãe, a ficar metida em casa
a bordar, soltaremos expressões do nosso enfadamento, como ela bem fez, rebelde
à tirania:
“Renego
deste lavrar / e do primeiro que o usou / ó diabo que o eu dou, / que tão mau é
de aturar. / Ó Jesu! Que enfadamento, / e que raiva e que tormento, / que
cegueira e que canseira! Eu hei-de buscar maneira / d’algum outro aviamento.”
Longe estamos, é certo, das ânsias
juvenis da pobre Inês, que depressa se arrependeria dos desejos libertários que
um primeiro casamento com “homem avisado”
desiludirá, mas que um segundo, é certo, proporcionará, com o “asno” Pero
Marques, (aliás, seu primeiro pretendente preterido, a favor do nobre escudeiro
- de condição machista e essencialmente cavalar, que felizmente tem o bom senso
de ser morto nas “partes d’além, ainda
que por um mouro pastor). A nossa idade coronária mais se deve prender,
contudo, neste estatuto prisional, com livros de cariz filosófico, tais como “A vida é sonho”, de Quevedo, mais
condizente com o mito da caverna, de que temos cada vez mais consciência, na
prisão forçada. Talvez o façamos agora, livro várias vezes retomado e nunca
acabado, por o acharmos de difícil e canseirosa leitura. Será a altura ideal,
para acrescentar ao desprazer desta prisão, e desiludir de vez.
OPINIÃO CORONAVÍRUS
No meio da tempestade
As grandes diferenças entre 1918 e 2020 são duas: a
globalização e o tecido comunicacional. E é esse tecido que muda quase tudo
nesses cem anos de diferença.
JOSÉ PACHECO
PEREIRA
PÚBLICO, 28 de Março de 2020
A história é uma coisa muito
complicada. Permite fazer comparações e permite enganarmo-nos com as
comparações. Representa
muitas vezes o único património de experiência para vermos como foi no passado
e, ao mesmo tempo, seduz-nos com comparações que são enganosas, porque o passado
não é o presente. Mas vale
sempre a pena usarmos o único reservatório de experiência para defrontarmos uma
situação nova. A história não substitui a ciência, a biologia, a medicina, a
matemática. A ciência pode saber ainda pouco sobre
a covid-19, mas sabe bastante sobre epidemias e pandemias, e esta,
no seu desenvolvimento, não parece afastar-se dos padrões conhecidos. Já sabe
menos sobre os comportamentos sociais que estão associados a esta pandemia do
século XXI, e talvez aí a história saiba mais.
Comecemos
por uma pergunta: como é que uma pandemia, com um vírus de uma família
conhecida, altamente contagioso mas relativamente moderado nos seus efeitos, e
com uma taxa de mortalidade baixa em geral, provoca este verdadeiro cataclismo
social e económico, com o encerramento de quase todas as actividades
produtivas, as cidades vazias, os transportes parados, milhões de pessoas
confinadas em casa?
A
pergunta não serve para contrariar os esforços actuais para travar o contágio
do vírus e a importância do distanciamento social não só para impedir a
propagação da doença, mas para proteger os grupos de risco conhecidos, em
particular os mais velhos. A
pergunta não questiona a atitude dura das autoridades sanitárias e dos Estados
para tratar o maior número de pessoas, aliviar as que sofrem e impedir um
grande número de mortes nos grupos de risco. Acima de tudo, não questiona a
salvaguarda do efeito de sobrecarga dos sistemas de saúde,
talvez o mais perigoso efeito da disseminação da infecção. Mas tem sentido,
até porque é legítimo colocar a questão de saber se não estamos a ter uma overdose
de resposta, cujos efeitos perversos podem ser maiores, sem razão. A
pergunta não diz que estamos a ter excesso de resposta, diz que essa hipótese
pode ser legitimamente colocada sem pôr em causa o que se está a passar, tanto
mais que há muitos factores desconhecidos sobre a pandemia. Mas o principal
factor conhecido nas respostas sociais, o medo, provavelmente nunca daria
espaço a que se mudasse alguma coisa.
Se
tivermos em conta a pergunta, devemos analisar muitas das diferenças entre a
pandemia da covid-19 e a sua antepassada mais semelhante na dimensão, a gripe
pneumónica de 1918-9, a “gripe espanhola”. O grau de
destruição e morte da pandemia de 1918 foi enorme, na ordem de muitas dezenas de milhões de pessoas,
mas as fábricas não pararam, a quarentena severa limitou-se, em grande parte,
aos hospitais e às casernas, embora a proibição de concentrações, espectáculos
e outros ajuntamentos, assim como o uso de máscaras, aproxime a gripe de 1918
da covid-19. Um caso
grave de contágio colectivo foi uma parada em Filadélfia, com cerca de 200.000
espectadores. No dia seguinte, os hospitais estavam cheios.
Podíamos
então fazer a contrapergunta: se tivessem sido tomadas em 1918-9 as medidas
actuais, teria sido possível diminuir drasticamente o número de mortes? E,
dada a elevada taxa de mortalidade, não teria então tido mais sentido essa
quarentena rigorosa, tanto mais que os conhecimentos científicos da época já
eram suficientes para perceber os mecanismos de propagação? A
resposta é provavelmente sim, mas sem a militarização generalizada dos países,
em particular as cidades, nada de parecido com o que se passa hoje teria sido
possível. Estávamos
num tempo de grande convulsão social, com revoltas e revoluções em vários
países, violência social e política generalizada, que coincidiu com os efeitos
devastadores da Primeira Guerra e, depois, da pandemia propriamente dita. Entre
1917 e 1921, a Europa estava a ferro e fogo: levantamentos, greves, motins,
assaltos nas ruas, tudo fazia parte da vida colectiva. Mesmo em Portugal, que
militarmente sofreu o seu maior abalo nas batalhas do final da guerra, com
mortos, feridos, gaseados e prisioneiros, conheceu-se um período impar de
convulsões sociais, desde a primeira tentativa de uma greve geral, em 1918, aos
assaltos às mercearias e armazéns suspeitos de açambarcamento, aos assassinatos
políticos e bombas.
A gripe de 1918 tinha também um efeito traumático de matar mais
jovens adultos, enquanto a covid-19 mata os velhos. Na verdade, esse efeito dobrava o da guerra, onde
uma parte importante da população de jovens numa aldeia podia desaparecer numas
horas nas trincheiras do Somme e depois vir, mais lentamente, a morrer de gripe quando regressava da tropa.
Hoje, com a covid-19, verifica-se que muitos
lares de idosos são
verdadeiras incubadoras do vírus, mas uma sociedade que vive o mito
da juventude na arte, na cultura, no desporto, na vida, permanece bastante
indiferente à sorte desses alvos preferenciais do vírus.
As
grandes diferenças entre 1918 e 2020 são duas: a globalização e o tecido comunicacional, no qual são embebidas todas as acções e decisões.
E é esse tecido que muda quase tudo nesses cem anos de diferença. Por um lado, tem um enorme feito positivo de fornecer
informação, pois hoje o homem comum nas cidades sabe muito mais sobre o que
se está a passar e sobre o que deve ou não fazer, do que em 1918. Por outro
lado, dá uma dimensão individual e colectiva ao medo, cria
pela “massagem” da comunicação social, pelo monotematismo dos noticiários,
pelas reportagens casuísticas e, nalguns casos, pelo alarmismo de jornalistas
que não percebem os números, um efeito de favorecer uma pressão para os
excessos da quarentena que não é a mesma coisa do que a distanciação social.
Voltaremos
ao assunto
COMENTÁRIOS:
pronouncer:
EXPERIENTE: Tem-se insinuado na comunicação social um certo espírito, meio
desportivo, de cotejo entre a gripe de 1918 e a pandemia actual, no sentido de
tentar concluir que há 100 anos é que foi mau, isto agora é quase nada (o
artigo, apesar dos vários 'A pergunta não', e equivalentes, cai neste tipo de
argumentação). Ora a epidemia de 1918 foi nada menos que um desastre colossal.
Fez mais do dobro de mortos da I Guerra Mundial. Arrisco que o mundo em rede
que hoje temos entraria em convulsão se perdesse, de súbito, 50 milhões de
pessoas, não importando onde estivessem. Querer usar essa epidemia como termo
de comparação, para lá de todas as distorções daí decorrentes, é como querer
que o inferno seja métrica para os dramas terrenos. Um redondo absurdo.
28.03.2020
manuel.m2 INICIANTE:
A diferença fundamental entre a pandemia de 1918/20 e a
do covid 19 reside no número de vidas humanas que a Sociedade considera, em
dado momento da História, aceitável sacrificar. Fala PP na batalha do Somme: Só
no primeiro dia o exército Britânico sofreu 60.000 mortos,(seriam mais de
888.000 no final da guerra).Em Verdun, em apenas 10 meses de combates, morreu 1
milhão de soldados Franceses e Alemães. Para nós, hoje, é impossível perceber
como isto aconteceu, quando uns poucos de milhares de vítimas na Europa nos causa
tamanho abalo. E o valor que agora damos à vida humana condiciona a resposta
dos Governos. E felizmente que assim é. 28.03.2020
A
INICIANTE: Boa reflexão. Infelizmente ainda há lugares no planeta em que é
o próprio estado que mata, incluindo os seus cidadãos. 28.03.2020
TMR
INICIANTE: Boa reflexão. Na esteira de Ulrich Beck e a sua "Sociedade
de Risco Mundial", onde surge trabalhado o conceito de "dramatização
do risco", que tem um efeito paralisante de sociedades inteiras.
28.03.2020
Jose MODERADOR: A propósito da "A influenza
hespanhola" os conselhos da "da Inspectoria de Hygiene" foram
genericamente os mesmos dos da actual DGS. "Evitar aglomerações,
principalmente à noite" "Tomar cuidados hygienicos...",
"Tomar preventivos...", "Evitar toda fadiga ou excesso
physico", "O doente aos primeiros symptomas, deve ir para a cama,
evitar contágio...", "Evitar as causas de resfriamento é de
necessidade tanto para os sãos, como para os doentes e os
convalescentes...", "Às pessoas edosas devem applicar-se com mais
rigor todos esses cuidados." Passaram 100 anos e as condições de
higiene e segurança no trabalho não tomaram em conta a experiência. Daí a
necessidade de parar a economia porque o vírus mata ricos e pobres. A
consequência vai ser catastrófica. Pode um bolso de notas ser inútil. 28.03.2020
Jose
MODERADOR: Há já evidências da propagação do vírus no hemisfério Sul que
caminha para o inverno. No hemisfério Norte o regresso ao trabalho está muito
longe de ser restabelecido e vem aí o inverno possivelmente com uma recidiva.
Esta crise não é estrutural, é conjuntural, mas global e demorada. As economias
estão muitíssimo interdependentes e podemos chegar ao ponto de parar no
Ocidente por falta de abastecimento do Oriente e parar o Oriente por falta de
abastecimentos do Ocidente e igual para Norte e Sul. Se isso acontecesse o
planeta ficaria muito mais limpo e o modo de vida actual acabava. Já é
garantido que a mobilidade cairá a pique, a globalização será mudada para modo
lento. Desemprego massivo fará cair os governos em funções. O que se segue é
novo. A intervenção cívica não se fará esperar... 28.03.2020
Caetano
Brandão INFLUENTE: Muito bem PP, nada que não esteja
habituado em si no que diz respeito à profundidade dos temas, à análise
distanciada da carneirada que grassa e que sublinha no seu artigo: a grande diferença
é que agora há facebook, instagram e watsapp, para o bem e para o mal. A não
ser isso esta pandemia era mais uma, felizmente com efeitos muito menos importantes
(na saúde) do qua maioria das outras, conforme os números o mostram: taxa de
mortalidade na China, o país mais populoso e com cidades com a maior densidade
populacional do mundo, 0,0002%...As redes sociais e media fazem com que a tragédia
vá ser imensa pela devastação na economia, esse sim o verdadeiro inferno!
28.03.2020
Pedro
Manuel Pacheco INICIANTE: A globalização e a facilidade de
comunicação são também, simultaneamente, meios de contágio de ideias (e vírus)
e instrumento de controlo sanitário e cultural. É esta ambiguidade tensa que
desperta o racismo e a intolerância nas populações. 28.03.2020
Luís
F EXPERIENTE: Sempre um prazer ler Pacheco Pereira.
Sobre este texto: 1) A realidade é que a gripe já era antes
uma pandemia enorme. Em Itália o sistema já estava colapsado, como vários
papers (um deles em Nov de 2019) já indicavam. Mas como era uma coisa
"conhecida" não era visível para o grande público. E isto, diga-se,
com vacinas disponíveis que o Estado não impunha e que tinha taxas de somente
50% 2) Aos governos é muito mais fácil fechar países do que arriscar
uma gestão mais ajustada. Por exemplo, se o Algarve e o Alentejo têm taxas
muito reduzidas, não faz sentido fechar essas regiões. Se Lisboa recuperar
muito mais depressa que o Norte, as restrições deveriam ser ajustadas. Mas essa
gestão é difícil, incerta, comporta riscos, e os governos sabem que seriam
atacados por não fazerem todo o possível 28.03.2020
Joao INICIANTE: Diz uma verdade o Luís, o que acontece continuamente é a gripe
“normal” que é “uma coisa "conhecida" não era visível para o grande
público”. O homem habitua-se a tudo e a tudo se adapta. Mas já não concordo com
os “ajustes” que refere. Por uma região não ter casos contaminados não é razão
para a “abrir”, antes pelo contrário é razão para a “fechar” e isolar para
poder continuar a levar a vida normal lá dentro. Em regiões contíguas claro que
terá razão. É questão de bom senso o que os especialistas dizem, isolar,
isolar, isolar as regiões e países contaminados e isolar as regiões e países
não contaminados. Agora estamos a isolar as pessoas em casa, bloqueando a
actividade produtiva. E se os sistemas básicos colapsarem, recolha de lixo,
abastecimento de água e electricidade, enfim, é o fim 28.03.2020
Nenhum comentário:
Postar um comentário